Vários analistas contactados pela Lusa consideram que o caso de tráfico de diamantes por militares portugueses pertencentes à Missão da ONU na República Centro-Africana “é extremamente complicada” e pode mesmo “levar à saída do contingente português da Minusca”.

O incidente, que está a ser investigado pelas autoridades portuguesas, acontece num momento de extrema tensão entre as autoridades de Bangui e a Minusca – Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana.

O porta-voz da Presidência da República Centro-Africana (RCA), Albert Yaloke Mokpem, declarou à Lusa estar “ao corrente da informação”, mas reservou-se a produzir quaisquer comentários.

“Estou ao corrente da informação, mas não tenho comentários a fazer de momento. Temos as mesmas informações que vocês, que havia uma rede de tráfico de diamantes, ouro etc., na qual soldados portugueses estavam implicados, numa investigação que remonta a 2019”, disse Mokpem.

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“Penso que, até que tudo esteja esclarecido, não queremos comentar. Ainda não recebemos quaisquer documentos por parte das autoridades portuguesas sobre o assunto. A presidência da RCA não está ainda na posse de todos os elementos, e por isso reservamo-nos a fazer quaisquer comentários para já”, acrescentou o porta-voz do Presidente centro-africano, Faustin-Archange Touadéra.

Paul-Crescent Beninga, doutorado em Ciências Políticas e investigador no Centre Centrafricain de Recherche et d’Analyse Géopolitique (CCRAG), alerta para as consequências deste caso, recorda outros escândalos que envolveram tropas da Minusca e resultaram na saída de outros contingentes, como os gabonês e o congolês, entre outros, e “receia” que o mesmo possa acontecer com os portugueses.

“A minha opinião sobre as tropas portuguesas que participam na Minusca é que são eficazes no terreno. E no seio da Minusca, quando há um contingente eficaz é rapidamente alvo de acusações”, afirmou Beninga.

“Aconteceu o mesmo com o contingente congolês. Foram repatriados por causa de acusações de violações, mas no terreno eram os mais eficazes na época. Recentemente, foram os gaboneses que foram acusados, eram também muito eficazes, mas foram retirados. Agora são os portugueses”, descreveu o investigador centro-africano.

“Os comandos portugueses são muito eficazes. Na crise da CPC – Coligação dos Patriotas para a Mudança (um dos mais importantes grupos armados na RCA, liderado atualmente pelo antigo presidente, François Bozizé, principal opositor de Touadéra), foram os comandos que repeliram a ação dos rebeldes. Hoje acusamo-los. Quando os acusamos, Portugal é obrigado a retirar as suas forças. A Minusca é obrigada a retirar esse contingente. É preciso ter muito cuidado com esse tipo de acusações”, afirmou Beninga.

“Temos que perceber se se trata de vontade de resolver o problema dos ‘diamantes de sangue’ ou de diminuir a eficácia da Minusca”, rematou o investigador.

“As consequências políticas deste caso são muito importantes e isto acontece na pior altura, honestamente”, afirmou à Lusa uma fonte diplomática na RCA, sob condição de anonimato.

O diplomata sublinhou a credibilidade do contingente português da Minusca, assente num histórico de eficácia no “combate dos grupos rebeldes e na proteção das populações”.

“As tropas portuguesas são muito famosas na RCA por serem duras. Não tenho registo de outro contingente da Minusca desde 2013 que tenha participado em tantos confrontos militares diretos quanto os portugueses. Chegou a um ponto em que os grupos rebeldes sabiam que tinham que sair de onde quer que estivessem, logo que sabiam da chegada dos portugueses”, ilustrou.

Mas este escândalo traz consigo vários problemas, acrescenta a mesma fonte. Por exemplo, os comandos portugueses intervieram em Bangassou, em resposta a um massacre em que, “num dia, quase cem civis muçulmanos foram mortos. Os portugueses acorreram e salvaram muita gente. A questão agora é que há muitos diamantes em Bangassou, pelo que a questão tem que ser colocada: Há alguma relação entre uma coisa e outra? Isto é o pior que podia ter acontecido, porque desacredita aquela e outras intervenções da Minusca. É a pior parte deste caso”, ilustra a mesma fonte.

Enrica Picco, diretora para a região da África Central do Internacional Crisis Group (ICG), sublinha igualmente que a credibilidade do contingente português integrado na Minusca “foi construída, sobretudo, na sua capacidade de intervenção” e duvida que este escândalo a coloque em causa.

“Francamente, não acredito que este caso do tráfico de diamantes vá enfraquecer a credibilidade das forças portuguesas”, afirmou. A investigadora reconhece, no entando, que “o governo da RCA está numa dinâmica de aproveitar todas as oportunidades para atacar a Minusca, portanto não surpreenderia que usassem este caso, como fizeram com o Gabão”.

Dito isto, remata a diretora do ICG, “tanto o governo da RCA quanto a Minusca sabem que não podem prescindir do contingente português, que é a única força de combate que resta, e numa altura em que os ocidentais estão a discutir um mandado mais robusto da Minusca para tentar substituir no terreno as forças russas. Claro que o contingente português é imprescindível”, considera Enrica Picco.

Mohamed Diatta, investigador no Institute for Securities Studies (ISS), conhece particularmente bem a RCA e diz que não ficou “surpreendido” quando leu “a notícia das tropas portuguesas”.

“Percebo perfeitamente que tenha acontecido. Outros terão feito o mesmo e potencialmente pior ainda. Isto não é novo e dura há décadas”, afirmou.

Estas revelações sobre o contingente português são, porém, “apenas a ponta do iceberg”, na leitura deste investigador, para quem “as questões deviam ser colocadas à forma como foi isto possível”.

“Se soldados portugueses membros da Minusca conseguiram fazer o que fizeram, não devemos pensar que outros contingentes terão feito a mesma coisa?”, questiona Diatta.

“Como funciona a cadeia de comando da Minusca? Será que os outros contingentes são controlados quando se deslocam para certas áreas? A Minusca e suas tropas gozam de privilégios e de imunidades que lhes permitem entrar e sair do país e ir para toda a parte sem serem revistados. Quantos abusaram desses privilégios?”, interroga ainda o investigador do ISS.

“Para mim, o foco não devia ser colocado nos portugueses, mas em toda a operação” da Minusca, sugeriu.

O investigador do ISS prevê que o “caso português” permitirá ao Governo centro-africano uma afirmação do tipo: “Temos vindo a queixar-nos da Minusca e isto prova que estávamos certos”, e sublinha ainda que Bangui “já começou a usar a história, reclamando por um maior controlo”.

“Mas não devem ir muito para além disso. Não acredito que a Minusca saia da RCA tão cedo, mas penso também que, se a Minusca tem a intenção de ser útil, tem que reparar este ato, assim como a sua relação com as autoridades centro-africanas”, considera Diatta.

“Sim, a Minusca tem muito trabalho pela frente”, concluiu.

De acordo com dados disponibilizados na página oficial do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), estão empenhados na RCA 188 militares portugueses no âmbito da MINUSCA. Também na RCA, mas no âmbito da missão da União Europeia (EUTM-RCA) de formação e aconselhamento das forças de segurança e defesa, estão empenhados outros 20 militares.

Em 30 de setembro, a 10.ª Força Nacional Destacada (FND) para a RCA, composta por 180 militares, recebeu o Estandarte Nacional, prevendo-se que esteja operacional a partir de 15 de novembro.

O comandante desta FND, tenente-coronel Jorge Pereira, vai chefiar um grupo composto por 169 homens e 11 mulheres, sendo que, a maior parte – 91 -, são militares do Regimento de Comandos, incluindo-se também três da Força Aérea.

A RCA caiu no caos e na violência em 2013, depois do derrube do ex-Presidente François Bozizé por grupos armados juntos na Séléka, o que suscitou a oposição de outras milícias, agrupadas sob a designação anti-Balaka.