A aflição

Chego aflitinho. Desde que o Rocco abriu, aqueles toilettes chamam por mim em tentadores quadradinhos de Instagram, povoados de gente bonita, poses casuais ao espelho e outros apontamentos de glamour sanitário. É hoje. Como bom provinciano, cheguei adiantado e pediram-me que aguardasse cinco minutos no bar até o ristorante abrir. Aproveito a espera, peço duas águas, escuso-me para ir verter outras e desopilo escada abaixo.

A descida faz-se em dois lances revestidos de carpete e papel de parede com motivos tropicais, tudo amplificado até à vertigem num jogo de espelhos. A música desce comigo, o volume aumenta, o aperto também, toca “Bananeira” de Sérgio Mendes e eu sinto-me um Ivens a avançar selva adentro. Lá em baixo, descubro uma casa de banho não-binária. Nada de urinóis, só compartimentos individuais, género único, de pé ou sentado, cada um como cada qual. Sanitas negras, papel a condizer, piaçabas dourados, chão e paredes pintalgados de aves raras, seis magníficos lavatórios numa única pedra esculpida à medida, mais espelhos, mais flores, montes de toalhinhas brancas. Um luxo. Não sendo especialista em wc, tenho sólidos conhecimentos do ponto de vista do utilizador, e digo-vos que esta é uma belíssima casa de banho. A decoração é um mimo e o sítio já merecia o seu próprio hashtag.

O cenário

Com isto alonguei-me e a mesa está pronta. A reserva para dois é confirmada por uma das duas chefes de sala, fatiota Man in Black, auricular de serviços secretos, cortesia tranquila. A ideia era vir jantar, mas, pelo menos para o cidadão comum, já só havia vaga para daí a 17 dias. Conformei-me. O fine dining teve de passar a nice lunching e aqui estamos nós. Podia ter optado pelo Gastrobar, mais informal, com uma promissora carta de petiscos e alguma inspiração portuguesa, mas peixinhos da horta ao balcão já eu aviei muitos. De manhã recebi uma mensagem a pedir para confirmar a reserva, prosa em inglês, o que me fez levar a coisa a sério: “Dear costumer, your Rocco reservation is today at… 15 minutes tolerance” tal e quê. E lá veio o Arnaldo esbaforido Chiado acima.

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© Rocco

Demoramos um pouco mais no bar a apreciar as vistas. Rocco, dei-me ao trabalho de googlar, é palavra antiga para torre, coisa altiva, ‘di alta statura‘. Faz sentido, tudo aqui é upa-upa. (Rocco também é nome de filho da Madonna ou de ator porno, mas isso já não faz tanto sentido). O balcão, então, é um tratado cénico, e por mais que me digam que aquilo é um espelho no teto, continuo a ver uma mezzanine cheia de garrafas viradas de pantanas. Tudo isto tem uma índole hedonista, aristocrática, exuberante. No fundo, concluo, o Rocco tem um quê de rococó (lembrete: não usar isto como hashtag da casa de banho).

A mesa

No Rocco, até o vinho é decoração. Entre as prateleiras do Gastrobar e os armários de parede do restaurante, há uma biblioteca cuidada em volumes de sete e meio, e a própria carta dava uma edição de colecionador. São vinte páginas com muitas entradas portuguesas e amostras de todo o mundo. A copo há escolhas simpáticas por 7€ e 8€, mas também há pequenos luxos, como um Herdade do Mouchão Tonel 3-4, por 85€ — o que, pelos meus cálculos, dá uns dez euros e picos por trago. Nas garrafas, há extravagâncias pela renda de um T1 no Chiado, mas o jogo começa ali nos 20€. Ora, como é sabido, qualquer pelintra que se preze garimpa sempre os segundos mais baratos da carta, e aí descubro meia dúzia de excelentes propostas abaixo de 30€. Para o que se segue, procurei um branco da Bairrada, com boa acidez e notas cítricas. Lá se vai o passe deste mês, mas o sommelier aplaudiu a escolha e deixou-me vaidoso.

A cozinha aberta deixa ver a azáfama de barretes brancos numa coreografia sincronizada. A carta, de inspiração italiana, tem o dedo do chef Ricardo Bolas, e as carnes têm o destaque que se espera. De entrada, vamos num precioso carpaccio de lombo de novilho, com parmesão, rúcula e pistáchio (também se diz pistacho, mas isso soa a coisa para picar com bejecas, e além disso não rima). A carne em lâminas gulosas; o queijo arenoso, 15 meses de cura; o verde fresco, seco e ácido; o fruto torrado a dar uma nota de valor; mais um toque pouco evasivo de azeite de trufa branca. Simplicidade, vontade de fazer brilhar o produto, nada de grandes truques. Isto promete.

© Rocco

O primeiro principal confirma isso mesmo. Una piovra alla griglia con patate a pugno — que aqui, vá-se lá perceber, chamam apenas de “polvo”, vem grelhado e traz umas batatas a murro. O cefalópode no ponto, tenro sem ser molengas, aconchegado numa crosta húmida de tomate seco, alho, coentro e umas azeitonas kalamata, que vêm da Grécia e no prato passam por alcaparras, mais um bom par de tubérculos gentilmente espancados. Perfeito.

O serviço acompanha. Atento sem ser impositivo, expedito mas discreto, tudo orquestrado e servido na hora, e se o copo calha ficar vazio é apenas porque sou garganeiro e não há sommelier que tenha andamento para mim. Tem calma contigo, Arnaldo!

Já o segundo prato é um risotto al gamberi, que aqui chamam precisamente assim. Ora, risotto é coisa transalpina e a minha expectativa trepa como um rocco (no tal sentido da torre, bem entendido). O arroz chega bem envolvido, com aquele meloso lácteo, o sabor inteiro do caldo feito com crustáceos, lá dentro um pequeno cardume de bichos rijinhos e uns espargos frescos. Só que o bago está uns minutos abaixo do ponto, ainda um pouco farináceo e a querer namorar com os meus molares. Uma ligeira desilusão, mas nada que me impeça de limpar o prato com gosto e a garrafa também. Vou sair daqui com um grão na asa e outro no dente.

A fatura

Faltam-me duas coisas para ser rico: a primeira é jeito, a segunda é mesmo dinheiro. Mas foquemo-nos na primeira. Desde que aqui cheguei que estou com bitaites de asno que entrou num palácio, e as duas pessoas que me estão a ler podem até achar que esta experiência está inquinada pela minha falta de berço. São capazes de ter razão. Há um saber estar que às vezes me escapa. Por exemplo, se em vez de pedir para dividir a conta em duas faturas tivesse simplesmente informado que pretendia duas faturas de uma dolorosa a dividir por duas pessoas, maiores, vacinadas (conforme atestado à entrada) e contribuintes, talvez isso tivesse acontecido. Mas vamos a notas.

© Rocco

Tudo isto, mais uns couverts supimpas, ótimos pão de massa mãe e focaccia da casa, uma sobremesa que deixo fora da história e duas horas de aluguer do cenário, colocou a experiência a pouco mais de 120 merréis para dois. Não me queixo. O Rocco é bonito que se farta, pratica uma cozinha sofisticada mas descomplicada, aposta muito na qualidade do produto e na eficiência do serviço. Era rapaz para me habituar a isto.

Se não deixo cinco estrelinhas, é porque sou picuinhas e — lá está — um nadinha sovina. Mas também porque não acho que as valha. Ainda estou a tentar tirar o arroz dos dentes, a escala não me permite dar 4.5, e não vou arredondar gorjeta depois da conversa da fatura. Mais a mais, convenhamos, tenho de justificar esta coisa do implacável.

Antes de sair, volto à casa da partida. Aqui, imagino, ninguém suspeita de demoras nos toilletes: hipótese n.º 3, lá está ele armado em influencer.

Hei-de voltar, de preferência a convite.

The Ivens, R. Ivens 14, Lisboa. Domingo a quarta, das 10h30 às 00h00 e quintas, sextas e sábados das 10h30 à 01h00. Tel.: 21 054 3168

O Experimentador Implacável é uma figura fictícia criada por Arnaldo Valente, que por sua vez é pseudónimo de outro fulano. É homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.