Uma mulher tornou-se a terceira pessoa, a única do sexo feminino, a ser considerada curada da infeção pelo vírus da sida. É a primeira vez que um doente entra em remissão com recurso a um tratamento com sangue do cordão umbilical; e o único caso em que o dador não tinha uma origem racial semelhante à do recetor: a mulher é afro-americana — portanto, descendente de progenitores com origens raciais diferentes —, enquanto a origem racial do dador corresponde à de apenas um dos pais da doente.

A mulher submetida ao tratamento inovador não só está infetada pelo VIH, como também sofre de leucemia. Segundo os médicos que a acompanharam, e que expuseram o caso na Conferência de Retrovírus e Infeções Oportunistas esta terça-feira na cidade norte-americana de Denver, a mulher foi submetida a duas transfusões em simultâneo: uma do sangue do cordão umbilical do dador e outra do sangue circulante de um familiar próximo — esta última para garantir uma imunidade temporária durante o procedimento. O caso foi descrito num estudo publicado pela Associação Americana de Hematologia em 2018, mas só agora foi comunicado pela comunidade científica como um caso de cura.

As informações pessoais sobre a doente são escassos: segundo a Reuters, tem 64 anos, foi diagnosticada com uma infeção pelo vírus da sida em 2013, submetida a medicação antirretroviral e depois diagnosticada também com  leucemia mieloide aguda em 2017. A dupla transfusão aconteceu em agosto desse ano. Neste momento, segundo o The Wall Street Journal, a mulher testa negativo à presença do VIH e de anticorpos em circulação contra o vírus desde outubro de 2020, altura em que deixou de tomar os antirretrovirais. Continuará sem tomar estes medicamentos pelo menos até setembro de 2024.

Citado pelo The New York Times, que avançou a notícia, Marshall Glesby, médico infecciologista que acompanhou o caso, disse que a dupla transfusão de sangue permitiu que o procedimento fosse menos impactante para o bem estar da mulher: “O transplante do familiar é como uma ponte que a levou até ao ponto em que o sangue do cordão umbilical assumiu controlo“.

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Os outros dois casos foram considerados recuperados da infeção pelo vírus da sida após terem sido submetidos a um transplante de medula óssea que substituiu o sistema imunitário dos infetados. O primeiro doente era Timothy Ray Brown, apresentado como Paciente de Berlim em 2008, diagnosticado com sida em 1995 e com leucemia mieloide aguda dez anos mais tarde. O segundo caso foi descrito em 2019: Adam Castillejo, o Paciente de Londres, descobriu que tinha sida em 2003 e um linfoma em 2011.

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Mas o transplante de medula óssea, uma fonte de células estaminais — as que, por ainda não se terem diferenciado em células específicas dos diferentes órgãos do corpo humano, podem especializar-se em qualquer tipo —, é altamente invasiva e exige que os transplantados tomem medicação extremamente agressiva para baixar a níveis mínimos o sistema imunitário. É assim para evitar que o organismo rejeite a nova medula óssea após a operação.

Por exemplo, Timothy Ray Brown esteve entre a vida e a morte após a operação e desenvolveu doença do enxerto contra hospedeiro, em que as células da nova medula óssea atacam as células do corpo para onde foi transplantado, e morreu de cancro em 2020. Adam Castillejo perdeu quase 32 quilogramas num ano, desenvolveu dificuldades auditivas e sofreu várias infeções ao longo de um ano. Já a doente apresentada esta terça-feira teve alta 17 dias de internamento após a operação e não desenvolveu as sequelas descritas nos outros dois casos.

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Outras características tornam este caso único no mundo. O facto de ser mulher é importante por dois motivos: não só se pensa que a sida se desenvolve de forma diferente em pessoas do sexo feminino e do sexo masculino, como os casos em mulheres são menos investigados em ensaios clínicos. É que, apesar de mais de metade dos casos de infeção pelo vírus da sida serem do sexo feminino, elas só representam 11% dos voluntários em ensaios clínicos em busca de uma cura para a doença.

O facto de a doente ter origens raciais distintas também importa porque a maioria dos dadores de medula óssea — a única abordagem que tinha sido capaz de curar a sida até agora — são brancos. Só isso impedia o tratamento experimental em pessoas com outras origens raciais porque, no caso de um transplante de medula, a compatibilidade entre o dador e o recetor tem de ser a maior possível. A alternativa de uma transfusão de sangue do cordão umbilical, também ele portador de células estaminais, permite uma compatibilidade inferior.

Mas os três casos têm semelhanças: não só todos os doentes sofriam de cancro — algo que torna os benefícios das operações maiores do que os riscos para a sobrevivência —, como todos receberam os órgãos de dadores portadores de uma mutação que impede o vírus da sida de entrar nas células. Trata-se do gene CCR5, que carrega a informação genética da proteína homónima que o VIH usa para invadir determinadas células do sistema imunitário. Foi também este o gene que o investigador chinês He Jiankui tentou induzir nas células de duas bebés para as tornar imunes ao vírus em 2018.