Chamam-lhe cidade fantasma, mas a vida prospera em Chernobyl. A mesma cidade no norte da Ucrânia que há quase 36 anos foi o palco do maior acidente nuclear da História é agora também a terceira maior reserva natural da Europa, lar de cerca de sete mil pessoas que aqui passam duas semanas por mês ou quatro dias por semana. Não há crianças: são mais suscetíveis a mutações pela radiação que atravessa o ar aqui.

Os adultos são cientistas que ainda hoje estudam os efeitos do acidente nuclear; os chamados liquidadores, recrutados pelo Estado para conterem o impacto da central; antigos moradores que decidiram regressar à terra natal, alguns dos quais trabalham agora como guias turísticos; e novos habitantes que vivem nas centenas de casas deixadas ao abandono.

E não é só a vida humana que prospera em Chernobyl e na cidade vizinha Pripyat, também ela deixada para trás nas horas seguintes ao desastre nuclear — nos bares e clubes de ténis de mesa abertos pelo resistentes que ali se estabeleceram.

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Desde 1986, o número de lobos aumentou sete vezes, a flora que substituiu os pinhais é agora mais resistente às alterações climáticas e aos incêndios, as árvores têm maior capacidade de captar carbono e transformá-lo em oxigénio; há linces, bisontes e veados a vaguear pela floresta. Um cenário que contrasta com o de animais e plantas mutantes, com deficiências físicas e folhas com formatos distorcidos, que surgiram em Chernobyl pouco depois do acidente.

A vida selvagem que prospera em Chernobyl

Só um colosso abobadado de metal e cimento que se ergue aos 108 metros de altura impõe na memória de quem entra em Chernobyl o desastre que condenou até 16 mil pessoas à morte, direta e indiretamente: o sarcófago que cobre o reator número 4 da central nuclear, onde estão confinadas 200 toneladas de corium radioativo, um material com a consistência semelhante à da lava que se gerou durante o acidente nuclear, 30 toneladas de poeiras contaminadas e 16 toneladas de urânio e plutónio, elementos que também são radioativos.

Foi nas proximidades deste sarcófago que tropas russas e ucranianas batalharam na quinta-feira pelo controlo de Chernobyl, uma localização privilegiada para as tropas russas que chegaram através da Bielorrússia entrarem na Ucrânia e acederem a Kiev. As forças de Vladimir Putin venceram o confronto, conquistaram a cidade e mantêm soldados ucranianos reféns no interior da central nuclear.

Mas a Rússia não terá encontrado grande resistência: Yevgeniya Kuznetsovа, porta-voz da Agência Estatal da Ucrânia para a Gestão da Zona de Exclusão, disse à CNN na quinta-feira que o perigo de invasão russa levou muitos trabalhadores destacadas em Chernobyl a não aparecerem na central nuclear: “Quando cheguei ao escritório hoje de manhã, descobri que a administração tinha saído. Não havia ninguém para dar instruções ou defender”.

O governo da Ucrânia apressou-se a avisar que, com Chernobyl nas mãos dos russos, a segurança da central nuclear não estava garantida e a tragédia que assolou a Europa em 1986 podia repetir-se. Mas a história sugere que é improvável que se confirme o pior cenário de todos os que se colocam em cima da mesa com o estabelecimento da Rússia em Chernobyl — o da exposição do material radioativo à atmosfera.

Há 35 anos, quando uma combinação de falhas durante um teste de segurança em caso de falha de energia culminou numa explosão num dos reatores da central nuclear, entre 60% e 70% das plumas radioativas atingiram a Bielorrússia — país que faz fronteira com a Ucrânia a norte, aliado da Rússia na invasão ao país, que agora tem zonas de exclusão que nunca mais poderão ser habitadas.

Mas se isso acontecesse, por exemplo em consequência de um bombardeamento, “as poeiras nucleares radioativas podem espalhar-se pelo território da Ucrânia, Bielorrússia e países da União Europeia”, avisa Anton Gerashchenko, conselheiro para o ministro da Administração Interna ucraniano. Em 1986, as nuvens radioativas espalharam-se de facto pela Europa ao sabor do vento, mas só atingiram níveis ameaçadores para a saúde nos países mais próximos da Ucrânia — e a Península Ibérica, na ponta oeste do continente, foi mesmo a região menos atingida.

As preocupações têm estado centradas no reator número 4 da central nuclear, originalmente coberto por uma estrutura temporária que entrou em degradação no final dos anos 90 e que agora está ela mesmo protegida por uma segunda abóbada, esta concebida para durar pelo menos um século — a ideia é demolir o sarcófago original e neutralizar todo esse material.

A nova abóbada, um investimento de 27 países que custou quase 2,2 mil milhões de euros e mobilizou 1.200 trabalhadores no terreno, aguenta temperaturas entre os -43ºC e os 45ºC, sobrevive a ventos até aos 332 quilómetros por hora e confina material com uma radioatividade que atinge os 20 mil roentgens por hora — a unidade de medida de radiação ionizante (raios X e raios gama). A dose letal é uma exposição a 500 roentgens durante cinco horas. Parte continua a escapar e a espalhar-se pela atmosfera.

Mas há outras fontes de tensão: os outros três reatores nucleares de Chernobyl mantiveram-se em funcionamento mínimo até ao fim dos anos 90 e o combustível utilizado neles, que é atualmente mais radioativo do que o confinado no sarcófago do reator 4 por ter sido utilizado até mais recentemente, foi transferido para piscinas de resfriamento, sujeitas a derrames que podem precipitar a propagação de gases e poeiras radioativas.

Em 2020, este material estava a ser transferido para umas instalações secas construídas por uma empresa alemã, eliminando o risco de derrames nesses complexos. Mas estas também não sobreviveriam a um bombardeamento. E, nesse caso, o material radioativo voltaria a ficar exposto.

Neste momento, a quantidade de radiação pode ser medida através de sensores e, segundo as estimativas dos especialistas, Chernobyl só voltará a ser completamente seguro para a saúde dentro de 3.000 anos. Foram esses mesmos sensores que detetaram agora um aumento nos níveis de referência de radiação gama na zona de exclusão da Central Nuclear de Chernobyl.

Mas a Inspeção Estatal de Regulação Nuclear explicou que “tais flutuações estão associadas ao movimento de grande quantidade de equipamentos militares pesados ​​pela zona de exclusão: “A condição das instalações nucleares e de outras instalações da central permanece inalterada”, assegurou a agência.