O teatro de Mariupol era, até 16 de março, um “santuário” numa cidade já gravemente afetada pela guerra. Era ponto de distribuição de medicamentos, de água e de comida. Era o abrigo de civis à espera de serem evacuados de Mariupol, que estava sob intensos ataques por parte das forças de Putin. Em russo, lia-se nas laterais do edifício, em letras garrafais, “Crianças”.

A presença de menores não intimidou as forças russas, que lançaram bombas sobre o teatro de Mariupol pelas 10 horas daquele dia de março. O ataque originou uma grande explosão, que levou ao colapso do teto e de grande parte das duas paredes principais do edifício, lembra o novo relatório da Amnistia Internacional divulgado esta quarta-feira, 29 de junho. Contando com entrevistas a 53 testemunhos e sobreviventes, incluindo também a análise de provas digitais (fotografias e vídeos partilhados nas redes sociais e diretamente com os investigadores) e imagens de satélite, provas reunida pela ONG neste documento provam que este bombardeamento constitui um “claro” um “crime de guerra”.

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“Depois de meses de uma investigação rigorosa, análise de imagens de satélite e entrevistas com dezenas de testemunhas, concluímos que o ataque foi um claro crime de guerra cometido pelas forças russas”, declarou Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional. “Muitas pessoas ficaram feridas e muitas foram mortas no impiedoso ataque.”

De acordo com a Amnistia Internacional, pelo menos, doze pessoas terão morrido neste ataque — estimando-se, no entanto, que o número de vítimas mortais seja superior. A 25 de março, a autarquia dava conta de 300 mortos. O número de fatalidades poderia ser superior, não tivessem vários civis abandonado o teatro nos dois dias anteriores, permanecendo muitos dos restantes numa cave, protegida do ataque.

Estas mortes, acrescenta a ONG, foram causadas pela decisão “deliberada” de as forças russas estabelecerem como alvos civis ucranianos. Semanas antes do ataque já era evidente a presença de civis neste local, sendo que nada indicava que pudesse ser uma base de operações ucraniana. “A natureza do ataque — o local do ataque e a arma utilizada — e a ausência de um potencial objetivo militar por perto, sugerem fortemente que o teatro eram o alvo procurado. Como resultado, é provável que o ataque constitua um ataque deliberado a civis e um crime de guerra”, diz a ONG.

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Agnès Callamard reforça assim a importância de “o Tribunal de Crimes Internacionais e todas as outras jurisdições sobre crimes cometidos durante este conflito devem investigarem este ataque como um crime de guerra”, realçando que “todos os responsáveis devem ser responsabilizados por causarem tantas mortes e destruição.”

“Não conseguia acreditar nos meus olhos porque o teatro era um santuário. Havia dois grandes sinais a dizer ‘crianças’”

Ihor Moroz, um arquiteto de 50 anos, estava perto do ataque na altura em que as bombas foram largadas em cima do edifício. “Aconteceu à frente dos meus olhos. Estávamos a 200 ou 300 metros quando a explosão aconteceu… Conseguia ouvir o avião e o som das bombas a serem largadas. Depois, vimos o telhado a levantar-se.”

Grigoriy Golovniov também está por perto. Ouviu o barulho dos aviões mas, dado que por esta altura estes sons eram já o normal de Mariupol, não lhes prestou grande atenção. “Não dei atenção porque os aviões estavam constantemente a voar ali à volta”, conta à Amnistia Internacional. “Vi o telhado do edifício a explodir. Saltou 20 metros e depois colapso. Não conseguia acreditar nos meus olhos porque o teatro era um santuário. Havia dois grandes sinais a dizer ‘crianças’”.

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Na cave do edifício estava uma mulher na casa dos 20, junto do seu namorado e da sua mãe, no momento em que as bombas caíram: “Num segundo, tudo mudou. Tudo saltou… As pessoas começaram a gritar. Estava tudo cheio de pó. Vi pessoas a sangrar. Agarrámos no nosso documento e saímos… Algumas pessoas não tiveram a mesma sorte.”

As entrevistas conduzidas pela Amnistia Internacional resultaram também na identificação dos nomes completos de quatro pessoas que morreram no bombardeamento do teatro de Mariupol. Muitos testemunhos e sobreviventes reportaram terem visto muitos corpos de pessoas que não conseguiam identificar, destacando que há provavelmente muitas “fatalidades por reportar”.