“Adeus, Presidente amigo, adeus, Zédu. Descansa em paz, arquiteto da paz”. Terminava assim o elogio fúnebre lido pelo antigo vice-presidente do MPLA, Roberto de Almeida, a José Eduardo dos Santos, o Presidente que liderou os destinos de Angola durante 38 anos, cujo funeral se realizou este domingo, quase dois meses depois da sua morte.
“Presidente amigo”, “arquiteto da paz”, “o bom patriota”, foram expressões repetidas ao longo de toda a manhã. Bem como “independência” e “reconciliação nacional”. Ideias enfatizadas especialmente por Adão de Almeida, o chefe da Casa Civil que teve a tarefa de ler a mensagem em nome do Estado angolano: “Com invulgar sagacidade, o Presidente José Eduardo dos Santos conduziu Angola a duas das suas maiores conquistas: a paz e a reconciliação nacional”, disse, antes de destacar “a importância do perdão” defendida por Dos Santos e acrescentar que “as raízes da reconciliação nacional são firmes e sustentam-se na ideia de ‘nem mais um tiro’”.
O papel de José Eduardo dos Santos na independência de Angola e, posteriormente, no fim da guerra civil que opôs MPLA e UNITA foi o foco de todos os presentes. As mensagens lidas em nome não apenas do governo, mas também do seu partido e da Fundação que fundou repetiram uma e outra vez os mesmos episódios: a ida para o Congo, a participação na luta pela independência, os estudos no Azerbaijão. E, é claro, a chegada ao governo após a independência e, posteriormente, à liderança do MPLA e do país, “com apenas 37 anos”.
Quis a História que, face ao passamento físico do nosso fundador Agostinho Neto, fosses tu o preferido”, afirmou Luísa Damião, vice-presidente do partido no poder desde a independência.
Também o seu papel como diplomata e o apoio a outras repúblicas africanas foi destacado por muitos, em particular Sam Nujoma, primeiro Presidente da Namíbia independente, que disse não esquecer o apoio de JES: “Os namibianos sentem-se familiares do antigo Presidente José Eduardo dos Santos”, assegurou.
Estava feito o obituário político, sem um único dos participantes a fugir de tom. Exatamente como João Lourenço tinha planeado, numa cerimónia de homenagem onde nunca se referiria o combate à corrupção que o Presidente tomou como bandeira após a saída de José Eduardo dos Santos — e que visou diretamente a sua família.
Tensão entre irmãos. Presença de José Filomeno criticada por Tchizé
Foi precisamente a família que usou o momento para destacar não os feitos políticos, mas a personalidade do antigo Presidente, na mensagem lida pela filha Joseane, fruto do casamento com Ana Paula dos Santos.
Mas se as mensagens políticas foram as esperadas, envoltas num tom positivo, o discurso da família veio relembrar a tensão subjacente a este funeral, que se realiza depois de um diferendo entre o governo angolano — representado em Barcelona pela viúva Ana Paula — e as filhas mais velhas de “Zédu”, Isabel e Tchizé dos Santos. Joseane afirmou que o papel de pai foi aquele ao qual José Eduardo dos Santos “mais se dedicou” e que o pai sempre defendeu todos os filhos “como um escudo”. Mas na sequência dessa menção deixou uma mensagem que parecia ter como destinatário as irmãs: “Não deixarei que usem o teu nome em vão, para benefício próprio”, prometeu.
A tensão no seio da família Dos Santos ficou ainda mais evidente porque, sentado discretamente de óculos estrangeiros nas cadeiras reservadas à família, esteve durante toda a cerimónia José Filomeno dos Santos. O segundo filho de José Eduardo dos Santos — que diz estar impedido de sair do país por não lhe ter sido devolvido o passaporte na sequência da pena de prisão que cumpriu já no tempo de João Lourenço — tinha-se mostrado contra a vinda do corpo do pai para Angola, alinhando-se com as irmãs Isabel e Tchizé, numas secas declarações prestadas ao New York Times dizendo que a decisão sobre o funeral do pai “cabe à família”.
Agora, ali estava, aparentemente desalinhado com as irmãs. Dúvidas houvesse, a mensagem de áudio partilhada por Tchizé dos Santos na véspera por WhatsApp esclarecia as dúvidas: “Tem estado a haver grande pressão, ameaças por um lado e aliciamento por outro, a diferentes membros da família Dos Santos” para estarem presentes no funeral e que estes podem estar a aceder “por ameaça ou oportunismo”, denunciava a filha de JES.
“Quero avisar que todo e qualquer membro da família que se apresente aí a prestar vassalagem ao regime assassino, que assassinou moralmente José Eduardo dos Santos perseguindo-o até à morte, não representa José Eduardo dos Santos, não representa a família Dos Santos”, acrescentou, antes de dizer que é ela a “herdeira política do pai”, que a mandatou para apoiar o líder da UNITA, Adalberto da Costa Júnior.
José Eduardo dos Santos, Agostinho Neto e… João Lourenço. Os mais nomeados em todos os discursos
O líder da UNITA também esteve presente na cerimónia, a fazer lembrar outro ponto de tensão que ensombrou o funeral: as eleições do passado dia 24 de agosto, que deram a vitória ao MPLA e cujos resultados o principal partido da oposição contesta. E trouxe ao de cima as duas “manchas”: em declarações aos jornalistas à saída da cerimónia, afirmou que a decisão de ir ao funeral foi “difícil” devido à falta de acordo de toda a família face à cerimónia, que acusou de ter tido “algum excesso partidário”.
Costa Júnior referia-se possivelmente às várias referências feitas a João Lourenço durante a cerimónia, que não pareceram inocentes. Os sinais ali estavam desde início, quando o mestre de cerimónias abriu a homenagem agradecendo ao Presidente João Lourenço “por expressar a vontade maior do povo angolano”, deixando claro que ali se considera que a maioria dos cidadãos desejava que o funeral de JES se realizasse em Luanda e não Barcelona.
Lourenço voltou a ser invocado em alguns discursos, como o do presidente da Fundação Eduardo dos Santos. João de Deus acabaria por desmaiar a meio do discurso e teve de ser transportado de maca para o hospital — mas, antes disso, teve ainda tempo de incluir na sua mensagem a referência ao lema “Corrigir o que está mal, melhorar o que está bem”, que marcou a campanha da primeira eleição de Lourenço, em 2017.
E também Roberto de Almeida — o homem do MPLA que leu o elogio fúnebre final — não deixou JLO de fora da sua mensagem, citando as referências feitas por Lourenço a José Eduardo dos Santos na sua tomada de posse como Presidente em 2017, que destacavam o papel de JES na “independência” e “reconciliação” nacionais.
Depois de citar João Lourenço na passagem de testemunho, De Almeida citou o próprio José Eduardo dos Santos quando recebeu ele o testemunho após a morte de Agostinho Neto: “Não é uma substituição fácil, nem tão pouco me parece uma substituição possível. É apenas uma substituição necessária.”
O paralelismo estava feito. E, com o funeral de José Eduardo dos Santos terminado, Lourenço pôs finalmente o legado do antecessor para trás das costas — com uma cerimónia com pompa e circunstância e palavras elogiosas até ao fim. Exatamente como tinha planeado desde o dia 8 de julho de 2022, dia em que anunciou a morte do “Presidente emérito” ao país.