Durante quatro anos, o investigador francês Adrien Jouary concentrou-se no registo de neurónios no cérebro da larva do peixe-zebra (Danio rerio) e não deu muita importância aos movimentos da cauda desse animal. Até que, em 2020, apercebeu-se de algo.

“Ao observar, de forma mais detalhada, notei que esse movimento é específico, realizado apenas quando o peixe-zebra tenta reorientar-se depois da luz se apagar. Percebi que estávamos perante um padrão de comportamento importante para compreender o funcionamento cerebral”, explica.

Ou seja, não se tratava apenas de uma reação do animal, mas indicava que esse movimento específico “diz muito sobre o que ele está a pensar”. Além disso, mais recentemente, o bolseiro de pós-doutoramento na Fundação Champalimaud, em Lisboa, também constatou que, perante esse mesmo estímulo, outras espécies de peixes como Danio gigante e Danionella cerebrum têm um comportamento similar.

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“Pode-se pensar na sequência de movimentos de um peixe como um texto, onde os movimentos individuais são palavras de um dicionário”, afirma o cientista de 36 anos que, quando era novo, sonhou ser piloto de avião e, por isso, foi primeiro magnetizado “pelo mundo dos números”. “Se compararmos espécies diferentes, observamos que a gramática entre os peixes é muito distinta, mas parece que utilizam o mesmo vocabulário para a mesma cirscunstância.”

Em suma, nessa observação, parece haver uma sequência de comportamentos indicativa de um padrão que, “apesar de não se repetir” entre os peixes, acontece da mesma forma dentro da mesmo situação”, possibilitando “inferir a existência de uma interpretação cerebral semelhante”. E isto é novo, cientificamente, sustenta.

Na prática, é como se se tratasse de uma língua, com as suas diferentes técnicas de enunciação e de tradução semântica. “Quando lemos um texto, em línguas diferentes, não vemos as mesmas palavras escritas vezes sem conta, mas uma série de ideias que podem referir-se ao mesmo de forma similar”, compara Adrien, explicando que está a utilizar a analogia do funcionamento da linguagem porque, através da inteligência artificial, utiliza o mesmo método.

No caso da análise de comportamentos, sobretudo do peixe-zebra, por ser um peixe transparente ao qual se pode aplicar uma proteína verde para analisar claramente o que está a suceder no seu cérebro (“podemos expressar geneticamente o indicador de cálcio fluorescente”), a partir do registo prévio do seu comportamento a determinados estímulos, tenta-se antecipar o que o peixe fará de seguida.

“É o mesmo princípio quando redigimos, atualmente, os nossos e-mails: no corpo do texto, o gmail antecipa frases que queremos escrever, a partir do contexto, e sugere-as para que possamos poupar tempo”. É esse mesmo modelo no comportamento dos peixes-zebra que Adrien quer provar como sucede e como essas ações estão interligadas, antecipando como o animal irá comportar-se, de seguida, para decifrar o padrão.

Uma hipótese matricial da etologia, ciência do comportamento dos animais no seu meio natural, começa por expor Adrien Jouary, na sua proposta para bolsa de pós-doutoramento da Fundação “la caixa”, em 2020 (com financiamento de cerca de 305 mil euros durante três anos), é que “o comportamento natural [dos animais] é composto por uma série de ações estereotipadas que são orquestradas de forma flexível pelo cérebro”.

Por sua vez, “apesar de a nossa capacidade para extrair essas ações através de gravações de vídeo ter crescido, exponencialmente, nos últimos anos, falta-nos o quadro referencial para compreender como essas ações são encadeadas no tempo”. Especificamente: “como a dinâmica de 80 mil neurónios dá origem a um comportamento natural permanece por resolver” e é “um problema fundamental se quisermos compreender a cognição”. O cientista, pai há 8 meses, quer ajudar a colmatar essa lacuna, partindo da premissa que “as ações sequenciais são geradas de acordo com uma dinâmica mais lenta que integra tanto as pistas sensoriais como as ações passadas”.

A abordagem científica atual consiste em “correlacionar um neurónio com os estímulos sensoriais ou muscular, mas o cérebro não reage simplesmente”, problematiza. “Podemos ter memória e disposição que formam loops complexos ao longo do tempo entre o sensorial e as ações. Só que, para compreender isto, seria necessário saber melhor como um neurónio depende de todos os outros neurónios, bem como da sua atividade passada.”

A questão é que tal análise é, estatisticamente, avassaladora. Logo, para se apreender a dinâmica entre o sensorial e o motor, em vez de olhar para os dados neuronais, ele centra-se no comportamento do peixe-zebra que pode ser decomposto numa série de ações curtas “que se podem pensar como vocabulário natural do comportamento.”

Adrien começou por estudar Física, licenciando-se em 2009, na École Normale Supérieure de Cachan (ENS Cachan) e na Universidade Pierre e Marie Curie, em Paris. Depois, fez Mestrado em Matemática Aplicada, em 2010, na ENS Cachan. Como investigador, passou por laboratórios como Sinha Lab, no MIT, em 2009, (Psicofísica de sincronização sensorimotora), Grupo de Teoria Neural, École Normale Supérieure, em 2010, (Codificação da população da diferença interaural), Laboratório Sumbre, École Normale Supérieure (Neuroetologia do Peixe-Zebra) entre 2011 e 2016, no âmbito do doutoramento. Aí, enveredou já pela Biologia, aplicando os conhecimentos da formação de base. Ficou deslumbrado pelos detalhes complexos do cérebro, tentando estudar a série de ações encadeadas e não apenas um determinado aspecto, como tendencialmente tem vindo a ser estudado.

“Queria registar a atividade de um grande número de neurónios em simultâneo, porque pensei que, para compreender a base da cognição, precisávamos registar, ao mesmo tempo, as regiões associativas sensoriais e motoras”. Por isso, quando lhe perguntam a profissão, responde: “Sou um matemático que observa os peixes a nadar e, depois, explico melhor o que isto significa porque é preciso esclarecer que os peixes-zebra são animais inteligentes e muito interessantes de investigar”.

Quando com 30 anos, Adrien Jouary terminou o doutoramento em Cérebro, Comportamento e Cognição, em 2016, na Escola Normal Superior de Paris, com a tese “Comportamento visualmente induzido e espontâneo em larvas de peixe-zebra”, a tecnologia laboratorial disponível tinha evoluído de tal forma que já era possível gravar todo o cérebro, com uma única resolução da célula, e não apenas mil neurónios, como começou.

Além disso, “temos estes microscópios que podem seguir todos os movimentos do peixe e isso é extraordinário, pois podemos colocar uma cor para ver toda a ação neuronal e isso é muito bonito”.

Hoje, para levar a cabo a sua investigação tem todo um set no laboratório que parece uma espécie de Truman Show dos peixes-zebra. “Apagamos e acendemos a luz, movemos objetos, colocamos música e sons, por exemplo, e estamos a analisar, através de gravações de vídeo e análise ao microscópio, como esses peixes respondem e a evolução do comportamento.”

Ao compreender melhor o comportamento dos peixes e, essencialmente, o caminho neuronal subjacente para as ações, Adrien estará a decifrar a complexidade das ações cerebrais. “Veremos um padrão distinto do comportamento, analisando respostas como medo, desconforto e conforto, stress, por exemplo, e se podemos usar esse conhecimento para compreender melhor e saber mais sobre o cérebro.”

Aaron Ostrovsky, Inês Vieira, Alexandre Laborde, Adrien Jouary e Pedro Tomás Silva trabalham no laboratório orientado pelo investigador Michael Orger e estudam o cérebro do peixe-zebra

Ele nota que tal exige que não se perturbe demasiado o comportamento do animal, levando ao extremo, mas sim com experiências subtis como as que tem desenvolvido, registando o movimento livre do peixe-zebra no aquário e que é gravado pelo rastreio contínuo de um robô.

Com este estudo, ele quer também compreender os efeitos de determinados fármacos (“utilizando as moléculas de alguns deles”), sobretudo do sistema nervoso, e de acordo com estes padrões de comportamento. “Quero testar e observar o quanto melhoramos na capacidade de detetar o efeito dos fármacos e a nossa expetativa é mensurar pequenas alterações no comportamento do animal e poder aumentar o nível de sensibilidade desta forma de mensuração.”

Graças a esse conjunto de dados compilados e analisados, o cientista quer, por fim, desenvolver “um modelo interpretável que reproduz o comportamento dos peixes”, ou seja, de como a representação mista de variáveis motoras e sensoriais dá origem a comportamentos.

“Essencialmente estamos a construir uma rede neural artificial para compreender o cérebro.” Esta investigação, nota, será “benéfica para uma grande comunidade neurocientífica”. Além da compreensão das complexidades cerebrais, e da metodologia desenvolvida, “esta ferramenta irá reforçar a nossa compreensão, intervenções optogénicas, genéticas, farmacológicas”.

Depois, seria um passo em frente na investigação fundamental de neuroetologia computacional e seus possíveis desdobramentos para a aproximação evolutiva e comparativa ao estudo do comportamento animal e do seu controlo pelo sistema nervoso.

No futuro, esta investigação “poderá dar pistas para estudar o caminho complexo do cérebro humano”, cujos estudos, apesar de distintos pela sua natureza, poderão fornecer aproximações para descodificar a atividade neuronal.

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto de Adrien Jouary na Fundação Champalimaud foi um dos 45 selecionados (nove de Portugal) – entre 575 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2020 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. O investigador recebeu trezentos mil euros euros por três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática. As datas para as candidaturas para a edição de 2023 deverão ser conhecidas em breve.