Está aprovada a ida de Marcelo Rebelo de Sousa ao Qatar para ver a seleção portuguesa no Mundial de Futebol. Apesar da polémica que rodeia a ida do chefe de Estado, com vários partidos a pedirem ao Presidente da República que marcasse posição contra o regime do Qatar recusando viajar até lá, PS e PSD cumpriram o que tinham prometido e viabilizaram a viagem, contando também com a ajuda do PCP e a abstenção do Chega.

A discussão não se dividiu propriamente em relação ao que são as violações de direitos humanos no Qatar, uma vez que essas mereceram a condenação de todas as bancadas que têm representantes na Comissão de Negócios Estrangeiros (ou seja, todas menos o PAN e o Livre, que não têm assento ali). O problema é a interpretação que os vários partidos fazem sobre a autorização que a Assembleia da República deve dar para permitir as deslocações do Presidente da República ao estrangeiro.

Ora essas, lembrou o social-democrata Tiago Moreira de Sá, são uma questão de “agenda política” do Presidente, que não cabe ao Parlamento definir: “Este mundial é uma vergonha, mas para quem decidiu fazê-lo”, atirou, explicando que o PSD permitiria a deslocação para evitar o “caminho perigoso” de condicionar decisões do Presidente.

Argumentos muito semelhantes aos usados por Francisco César, do PS. “A Constituição é clara: a AR deve dar assentimento à ausência do território nacional, não um parecer sobre o objeto da deslocação”, lembrou. Ou seja, a autorização visa apenas garantir que a ausência do Presidente não “perturba o normal funcionamento das instituições” dentro de Portugal — “tudo o resto não está sob alçada da Assembleia da República”. Por isso, o PS lembrou que “mantém a condenação a todos os regimes que violem os direitos humanos”, mas separou as águas e aprovou a deslocação.

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Do lado do PCP, argumentos semelhantes: a líder parlamentar, Paula Santos, também frisou que o PCP condena “a exploração dos trabalhadores no Qatar” e as “condições desumanas” em que vivem, mas acrescentando que o PCP não alinha em “ações de boicote” nem à participação dos atletas nem ao seu “acompanhamento institucional”, e muito menos condiciona a agenda do Presidente.

E esse era, de resto, o mesmo argumentário usado pelo presidente da comissão, o socialista Sérgio Sousa Pinto, que fez questão de intervir na discussão. Tudo para recordar que, seja qual for a opinião de cada deputado ou partido, a regra que faz depender as viagens do Presidente de autorização parlamentar “não foi pensada com o objetivo de fazer avaliações de mérito e oportunidade das viagens”, até porque nesse caso ficaria “desequilibrada a relação de poder entre Assembleia da República e Presidente”.

Mundial2022: “Qatar não respeita os direitos humanos. Mas, enfim, esqueçamos isto”, diz Marcelo

Isto apesar de o próprio Marcelo ter feito depender a sua ida da votação dos deputados, tendo mesmo afirmado que esperaria para “saber qual é a posição dos vários partidos e a posição global do Parlamento nesta matéria” e garantido que, quando estiver em território qatari, fará questão de falar sobre a “situação dos direitos humanos”, depois de em território português ter feito declarações controversas.

“Este é o Mundial da vergonha”. Bloco e IL votaram contra

Ainda assim, tanto Bloco de Esquerda como Iniciativa Liberal entendem que, mesmo que a regra “obsoleta” não dissesse inicialmente respeito ao conteúdo das viagens, já que existe deve ser usada pela Assembleia, um órgão político, para marcar também uma posição política.

O bloquista José Soeiro apontou, por isso, como motivos para não aprovar a deslocação — assim como as do presidente da Assembleia e do primeiro-ministro, que não foram votadas nesta reunião — a “violação reiterada dos direitos humanos” no Qatar, os relatórios de organizações não-governamentais que apontam para milhares de trabalhadores mortos durante a construção dos estádios de futebol, a “petromonarquia” que não respeita os direitos das mulheres e dos cidadãos LBGT, os riscos ambientais e todo um processo de escolha do Qatar como anfitrião “envolto em suspeitas fortes de corrupção”.

“Este é o Mundial da vergonha e entendemos que o Estado português deve tomar posição e ser consequente com condenação, no mínimo não se fazendo representar” nos jogos, rematou. “A AR deve votar contra e recomendar ao Governo que não compareça. E a própria AR não deve fazer-se representar”.

Ao PSD, que disse que o Mundial só será uma vergonha para quem decidiu fazê-lo no Qatar, respondeu diretamente: “E para quem desvaloriza o ato simbólico de participação institucional e secundariza os direitos humanos: foi isso que fez o Presidente da República”.

Do lado da IL, o líder parlamentar, Rodrigo Saraiva, recordou que o Qatar organiza este campeonato como “uma ferramenta de geopolítica”, “porque procura ter uma validação internacional para ter uma credibilidade que não tem”.

“Quando um regime que não respeita os direitos humanos tenta ter validação internacional, as mais altas figuras de um Estado que respeita os direitos humanos não podem marcar presença”, atirou, lembrando que o país não respeitou os compromissos que assumiu quando foi escolhido como anfitrião, de reformas internas. “Alteraram zero o Código Penal, que tem penas de prisão para homossexualidade, ou para questões dos direitos das mulheres, através de uma visão fundamentalista da religião”, frisou.

O único elemento “neutro” foi o Chega, que pela voz de Diogo Pacheco de Amorim se manifestou contra a necessidade de autorização da Assembleia em si — “não faz sentido que a AR tenha de se pronunciar sobre as viagens” — mas, mesmo condenando o regime qatari, considerou que “o apoio à seleção faz sentido e é importante”. Por isso, o partido decidiu abster-se, enquanto PSD, PS e PCP votaram a favor e IL e BE contra. Também o PAN e o Livre deverão votar contra quando a votação chegar a plenário, esta terça-feira de manhã, e a aprovação ficar oficializada.

Foi durante uma reunião extraordinária da Comissão de Negócios Estrangeiros, esta segunda-feira, que os deputados deram assim a primeira autorização para Marcelo poder assistir ao Portugal-Gana, jogo que marcará a estreia da seleção neste Mundial, a 24 de novembro — de outra forma, e com os trabalhos orçamentais a condicionarem a agenda parlamentar, a reunião só poderia ter acontecido já depois da viagem, como não raras vezes acontece.

Também estão previstas para a fase de grupos presenças de Augusto Santos Silva no segundo jogo, a 28 de novembro, e de António Costa no terceiro, a 2 de novembro. O primeiro-ministro já veio, aliás, justificar a viagem dizendo que as principais figuras do Estado irão ao Qatar “apoiar a seleção, e não a violação de direitos humanos”.