Nas comemorações da Restauração da Independência de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa não quis deixar de lado o reconhecimento dos “portugueses de etnia cigana que, como reconheceu então o próprio rei D. João IV, deram a vida pela nossa independência nacional”.

E fez ainda referência ao “cavaleiro fidalgo Jerónimo da Costa e muitos dos duzentos e cinquenta outros ciganos que serviram nas fronteiras”. “Portugal lembra-os, presta-lhes homenagem e exprime a sua gratidão. Este dever de memória é de elementar Justiça e rompe com tanto esquecimento e discriminação de que os ciganos têm, infelizmente, sido alvo no nosso país”, lê-se na nota da Presidência, publicada esta quinta-feira.

Marcelo destaca papel dos ciganos na restauração da independência e lamenta “discriminação” que sofrem

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Centenas de ciganos lutaram, de facto, pela libertação do domínio da dinastia filipina castelhana, sob a gestão de D. João IV, rei que mais tarde ficou conhecido como o Restaurador, precisamente pela sua liderança na revolta que permitiu a restauração da independência. Este processo começou em 1640, mas só 27 anos mais tarde, graças à assinatura do Tratado de Lisboa, é que os espanhóis reconheceram tal independência ao reino português.

É aqui que a comunidade cigana entra: estes soldados lutaram e defenderam Portugal, mais especificamente na fronteira entre os dois países. Aliás, foi na fronteira que Jerónimo da Costa, homem que Marcelo Rebelo de Sousa mencionou esta quinta-feira, morreu.

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Mas é preciso olhar para o contexto português que rodeava os ciganos em Portugal, antes e depois da independência. A este propósito, o antropólogo José Gabriel Pereira Bastos fez, em 2007, uma cronologia das leis, regulamentos e decisões administrativas sobre ciganos. E referiu que “a situação dos ciganos, em Portugal, foi marcada por constantes tentativas de erradicação total ou parcial dos ciganos nómadas, de destruição das famílias ciganas, de apropriação dos seus bens, bem como, no extremo oposto, mas com idêntica violência, de medidas promotoras da sedentarização e da assimilação cultural compulsivas”.

E estas constantes tentativas de erradicação total ou parcial dos ciganos nómadas não pararam quando mais de duas centenas de ciganos lutavam nas fronteiras. O reino português autorizou a sua presença nas lutas, mas, ao mesmo tempo, proibia os ciganos de usar os seus trajes, de ler a sina e, em 1647, mandou “retirar os filhos aos ciganos a partir dos 9 anos de idade”, como indica José Gabriel Pereira Bastos, num artigo para o Centro de Estudos de Migrações e Minorias Étnicas.

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E a propósito da morte de Jerónimo da Costa, D. João IV aprovou um parecer para que a sua “mulher e filhos sejam havidos como naturais do reino”, que Jerónimo da Costa “seja feito cavaleiro fidalgo” e que os seus “descendentes não tenham ofício mecânico” e “sirvam como soldados”.

Por breves períodos, os ciganos que aceitaram sedentarizar-se, depois de conseguirem obter as chamadas cartas da vizinhança, e aqueles que lutaram contra Castela foram “aceites e legalmente protegidos”. No entanto, durante o período da restauração da independência, foram aprovadas leis e normas que, muitas vezes, eram resultado de um “pressão popular”, como referiu João Pedro Gomes no seu estudo “Redefinições identitárias, xenofobia e exclusão racial em Portugal em meados de seiscentos”.

À parte daqueles que estavam legalmente protegidos, muitos eram levados para Angola e Cabo Verde. “Desterrar de todo o modo de vida e memória desta gente vadia, sem assento, nem forro, nem paróquia, nem ofício mais que os latrocínios de que vivem”, referia um alvará escrito em 1649. Estes ciganos que não tinham trabalho, nem habitação fixa seriam “embarcados e levados para servirem nas conquistas”.

Já depois da restauração da independência, as políticas especificas destinadas aos ciganos continuaram. E aqui há um ponto interessante: é que os ciganos eram discriminados pela sua cultura e por terem uma cultura itinerante, já que mantinham as suas viagens entre Portugal e Espanha, atravessando a fronteira, mesmo depois de os dois reinos terem cortado relações.