Uma lei que vá mais longe, reforce o acompanhamento psicológico e obrigue as escolas a criar casas de banho neutras. São algumas das conclusões a que o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) chegou, depois de analisar os projetos de lei apresentados por PS e Bloco de Esquerda (embora o PAN também tenha apresentado uma proposta entretanto) para regulamentar a lei da autodeterminação de género e aplicá-la às escolas — com elogios aos projetos, mas também alguns reparos, sobretudo à versão do Bloco de Esquerda.

Um dos aspetos que o parecer, primeiro noticiado pelo Público, refere e que quer que a lei concretize melhor é a questão polémica das casas de banho. Mais especificamente, as casas de banho e balneários que as crianças e jovens transgénero (que se identificam com um género que não o de nascença) poderão usar.

[Ouça aqui as declarações de Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Escolas Públicas]

Casas de banho neutras? “Isso não é um problema para as escolas”

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Os projetos de bloquistas e socialistas não identificam uma solução específica, prevendo apenas que “as escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade”. Ou seja, o espírito da lei prevê que a criança ou jovem em causa deva poder aceder às casas de banho em que se sentir mais confortável.

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De resto, em outubro, a deputada socialista Isabel Moreira explicava ao Observador que o artigo previa que os alunos pudessem “pedir ao professor um pouco de privacidade” — segundo os partidos, isto poderia passar por soluções como a criança ou jovem ir vestir-se a um balneário diferente, fazê-lo mais cedo enquanto os outros colegas ainda não chegaram, usar a casa de banho dos professores, entre outras opções.

Ora o que o parecer considera é que a lei não deve ser vaga neste ponto nem deixar as escolas decidir caso a caso. Para o CNECV, o artigo pode “gerar dificuldades de interpretação e mesmo práticas”; por isso, “alguns conselheiros”, incluindo os relatores do parecer, sugerem que seja obrigatório por lei acrescentar casas de banho e balneários neutros, “acessíveis de forma indiscriminada”, mesmo que para isso não sejam feitas obras e os espaços que já existem sejam simplesmente “reafetados”.

Outros conselheiros, revela o parecer, sugerem uma nuance: permitir “espaços reservados” nos balneários masculinos e femininos para que as pessoas trans também possam lá entrar. Nas casas de banho, a ideia é “descaracterizar” os espaços atuais, “tornando-as neutras”, e assim eliminar a separação por género nessas instalações.

Lei deve incluir bullying nas redes sociais

Por entre elogios aos projetos, que visam, “de forma positiva”, contribuir para a “luta contra a discriminação”, com normais relativas ao respeito pelo nome que as crianças e jovens se autoatribuem (e uso desse nome na documentação da escola) e a livre escolha da roupa que vestem, o parecer encontra, ainda assim, outros aspetos mais “controversos”.

Por um lado, para o CNECV esta oportunidade devia ser aproveitada para se criar uma legislação mais “abrangente” para criar uma escola mais inclusiva, que não seja focada apenas na questão da autodeterminação de género (apesar de esse ser o objetivo da lei original que estes projetos tentam regulamentar nas escolas).

Assim, os conselheiros acreditam que deve ser desenhada uma lei a pensar noutros tipos de discriminação, bullying e violência nas escolas, tendo em conta “outras dimensões relevantes do desenvolvimento biopsicológico e social das crianças e dos jovens que potencialmente afetam de forma severa e por vezes irreversível a constituição da sua identidade pessoal”.

O parecer lembra manifestações de “intolerância” e de violência, incluindo no namoro, para sugerir que a atual abordagem é “redutora” e “pode correr o risco de se tornar estigmatizante, não dando a devida atenção à complexidade identitária da pessoa (para a qual concorrem, entre outras, a etnia, a cultura, a religião, a nacionalidade, etc)”. E lembra que o bullying deve ser combatido também nas redes sociais, “considerando que este não é um espaço exterior à vida das escolas, prolongando-se para além do horário letivo nas redes sociais”.

Opinião do jovem deve ter mais peso na adolescência

Outro ponto que o parecer aborda é a questão da idade: estando em causa, segundo os projetos, “crianças e jovens”, será importante separar essas fases do desenvolvimento, que nessas idades é muito rápido, lembra o parecer, e ter assim em conta na lei a importância que a opinião dos pais terá neste processo.

Os projetos dizem que os pais são envolvidos na decisão sobre o início do processo de transição social de género; aqui, o texto lembra que se está a falar de crianças e jovens com idades muito diferentes e que “quanto mais crescida e sobretudo mais madura for a criança ou jovem, mais peso deverá ter a sua autonomia em desenvolvimento nos processos que lhe digam respeito, e menor deverá ser a intervenção dos pais nos processos relativos à sua saúde e, nomeadamente, à formação da sua personalidade”.

“Assim, entendemos que a regulamentação deve ser mais detalhada, distinguindo as várias fases de desenvolvimento das crianças e jovens: i) respeitando o papel dos pais ou representantes legais nas fases mais precoces do desenvolvimento; ii) considerando a opinião do jovem de forma mais relevante a partir da adolescência e, iii) a opinião do jovem torna-se ainda mais determinante, a partir dos 16 anos”, diz o parecer.

Equipas devem incluir psiquiatras e psicológos

Outra das questões mais discutidas no que toca a estes projetos de lei é a não obrigatoriedade de acompanhamento psicológico. O parecer defende que este deve ser “promovido”, nomeadamente junto das crianças que sejam vítimas de discriminação, bullying ou disforia de género (“resultante do sofrimento emocional resultante da incongruência entre o género vivenciado e/ou expresso e o sexo atribuído à nascença”).

“Não se trata de proceder a uma procura ativa de situações de indefinição de género – um processo que cada pessoa desenvolverá a um ritmo próprio –, mas de a escola estar atenta a situações de violência e sofrimento das crianças e jovens, acompanhando-os e prestando-lhes o devido apoio”, avisa o texto.

Por isso, o parecer refere, apoiando-se em recomendações do Colégio de Pedopsiquiatria da Ordem dos Médicos, que a abordagem a crianças e adolescentes nestes casos “deverá ser realizada por equipas especializadas, constituídas por psiquiatra da infância e da adolescência, psicólogo clínico, endocrinologista pediátrico e assistente social”.

Formações não devem ser dadas só por associações LGBTIQ

O texto critica ainda, em dois pontos, o projeto do Bloco de Esquerda: por um lado, o ponto do projeto que prevê a organização de ações de formação regular dirigidas ao pessoal docente e não docente “em parceria com as universidades e associações na área dos direitos LGBTIQ”, que tem sido o mais criticado pela direita, também levanta aqui reservas — “afigura-se demasiado impositivo ao prever, na própria lei, os tipos de associações que devem fazer estas formações, afigurando-se como pouco aberto à pluralidade e à diversidade, preconizadas pela Lei de Bases do Sistema Educativo”.

Por outro lado, o parecer considera que este projeto vai demasiado longe ao impor o dever de comunicação logo no momento “em que se detetem prática de atos lesivos do bem estar e do desenvolvimento saudável do estudante menor”, argumentando que se isto for exigível a crianças e jovens “poderia incentivar a uma orientação de ação – a delação“. Além disso, prevê a comunicação direta à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens. Para o CNECV, será “mais harmonioso” que a direção da escola seja informada das situações problemáticas e fale com as entidades externas necessárias.