Saber que Gil Mendo teve um papel fundamental na dança em Portugal, que ajudou a erguer um setor pós-25 de Abril, que inspirou gerações de bailarinos e coreógrafos enquanto professor, que deixou um lastro graças à forma como pensava e programava, que desempenhou cargos vários, alguns públicos, que ajudaram a definir políticas culturais, será fácil de descobrir nos livros ainda por escrever da história da dança portuguesa.

O que será mais difícil encontrar é o que não cabe no sintetismo das linhas biográficas, mas que é presente do discurso de quem com ele contactou ao longo da vida. “O Gil tinha uma capacidade sobrenatural de consenso e de um grande afeto à volta dele. Além desta pessoa muito multifacetada neste campo [a dança], era uma pessoa absolutamente querida pela comunidade inteira, pelos seus alunos e alunas, colegas e todos os artistas com quem se cruzou e trabalhou”, diz Pedro Pinto, investigador e artista, atualmente a fazer “trabalho de arquivo sobre a historiografia da dança independente em Portugal”.

Gil Mendo, professor e programador da área da dança, esse “ser humano maravilhoso que traduzia essa sua capacidade no trabalho com os outros”, morreu em março do ano passado. Um ano depois, a Culturgest, em Lisboa, é o palco para uma homenagem que começa esta quinta-feira e prossegue até sábado, com conferências e apresentações. “Partiu da comunidade de dança contemporânea e das artes performativas de um modo mais abrangente, logo após a morte do Gil”, continua Pedro Pinto, que descreve “uma bola de neve” de gente que se quis juntar ao tributo a esta figura essencial na história da dança contemporânea portuguesa. De 23 a 25 de março, há mais de 60 performances e quatro conversas e um arquivo aberto para descobrir um mestre. “Mostra essa capacidade de o Gil tocar às pessoas de diferentes idades e com diferentes histórias e caminhos”, reflete.

Gil Mendo

Gil Mendo foi programador de dança na Culturgest, entre 2004 e 2017, casa em que é agora homenageado.

A “bola de neve” ganhou forma e estruturou-se num programa recheado que se espraia em três dias. Quinta e sexta-feira estão preenchidos com conferências para celebrar o legado e o alcance da ação de Gil Mendo, desde a sua “visão livre e fluída” sobre o ensino (“Corpo-Educação”, 23 de março, às 16h), à forma como batalhou pelo desenvolvimento e consolidação da internacionalização da dança contemporânea portuguesa (“Network e internacionalização”, 23 março, às 18h30) ou a extensa atividade enquanto programador (“Programação”, 24 de março, às 16h). Não são momentos para deambular pelo baú de memórias, mas antes pistas para convocar reflexões sobre o presente. O calendário de conferências culmina numa conversa a partir do papel de Gil Mendo enquanto “empenhado e fundamental interlocutor com o campo responsável pelas políticas públicas”, para lançar a discussão sobre a construção de políticas culturais para a dança hoje (“Que políticas para a dança?”, 24 de março, às 18h30).

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Sábado ficou reservado para uma maratona de criações. Durante todo o dia há uma série de peças curtas em jeito de homenagem, num programa resultante de uma open call que junta “pequenas coreografias, fragmentos de espetáculos, intervenções musicais, spoken word, fragmentos de vídeo e performances”, lê-se na nota informativa. Arranca às 11h30 e termina às 23h30, e inclui obras de João dos Santos Martins, João Fiadeiro, Vera Mantero, João Galante, Ana Borralho ou Sílvia Real e Sérgio Pelágio.

Da programação, toda ela de entrada livre, destaca-se também um arquivo que se abre ao público com documentos relacionados com a prática profissional de Gil Mendo. Ali se encontra um acervo videográfico, com entrevistas e apresentações públicas, registos de notação de movimento, mas também fotografias “que documentam o período em que o Gil foi aluno do centro de estudos de bailado no Teatro Nacional de São Carlos, e onde permaneceu antes de ir estudar para Inglaterra”, explica Pedro Pinto, que coedita um caderno especial do jornal Coreia com uma seleção de entrevistas e textos produzidos por Gil Mendo entre 1984 e 2017. Esses textos e reflexões poderão ser consultados, bem como todo o material disponibilizado neste “arquivo para o Gil”, durante os três dias, das 14h às 22h na quinta e na sexta-feira, e das 14h às 23h30 no sábado.

Gil Mendo

Em 1969, quando estudava no Centro de Estudos de Bailado do Instituto de Alta Cultura, sob direção de Anna Ivanova e David Boswell.

Gil Mendo (1946-2022), estudou no Centro de Estudos de Bailado do Instituto de Alta Cultura (Teatro Nacional de São Carlos), entre 1969 e 1972, sob direção de Anna Ivanova e David Boswell, antes de ingressar no Benesh Institute of Choreology, em Londres. O coreógrafo, professor e programador, foi um dos fundadores da Escola Superior de Dança e do Fórum Dança, marco incontornável na história da dança contemporânea portuguesa. Foi programador de dança no CCB e na Culturgest. Fez parte da Comissão Instaladora do Instituto Português das Artes do Espetáculo (IPAE), antecessor da atual Direção-Geral das Artes. Participou em mostras de dança portuguesa, conferências e júris internacionais.

Morreu em março do ano passado, aos 76 anos, vítima de cancro. “De perfil discreto, atento e observador, devemos a Gil Mendo um cuidado permanente para com a dança portuguesa, tanto no seu ensino e estudo, como na programação e no desenho de políticas culturais”, recordou a então ministra da Cultura Graça Fonseca, na nota de pesar. “Gil Mendo foi um professor modelar, mas também um exemplo de generosidade e de uma vida dedicada a ajudar outros a fazer da dança um lugar de partilha. Pelo seu percurso, pelas suas qualidades pessoais e profissionais e pelo seu papel central no desenvolvimento da dança contemporânea portuguesa, como herdeiro e continuador de outros grandes nomes da cultura portuguesa, como Margarida Abreu, Anna Mascolo e Jorge Salavisa, a história da dança em Portugal não se pode escrever sem que o nome e a memória de Gil Mendo sejam celebrados”, comparava a então governante.

Na nota deixada na página da Escola Superior de Dança, do Instituto Politécnico de Lisboa, também se destaca a “imensa humanidade” do professor e fundador da instituição. “Ajudaste a erguer a escola onde, agora, tantos outros constroem o seu lugar na dança”, lê-se sobre Gil Mendo. “Pela tua procura do bem comum, pela tua dedicação a todas as causas, foste parte da nossa história na dança e da nossa história na vida”, remata o comunicado.