Esperar que uma dupla de criadores se reencontre criativamente após mais de uma década a explorar variações daquilo que a tornou famosa pode soar a injustiça. Séries, minisséries e filmes encostados a uma ideia comercial próxima de formatos ou géneros menores podem deixar dúvidas sobre a qualidade. A indústria engole, a pança fica maior e é complicado encontrar a resposta para o porquê de arriscar. Talvez Josh Schwartz e Stephanie Savage nem tenham arriscado muito ao escolher “City On Fire” como novo projeto, porque o romance de Garth Risk Hallberg em que é inspirada é ótimo e iria resultar em televisão entusiasmante. Mas arriscaram ao subverter tudo isto para os seus códigos. Isso importa, dá uma vitalidade que faltava ao entretenimento televisivo recente e que esta aposta da Apple TV+ tem.
Schwartz e Savage ganharam fama com “The O.C.”, mas conquistaram o mundo com “Gossip Girl”. Nuns Estados Unidos e numa Nova Iorque ainda a recuperar do 11 de setembro, num momento em que a publicidade da American Apparel fazia-nos questionar para onde olhar, surgia em 2007 uma série no formato clássico de adolescentes ricos, perversa, altamente sexual e a roçar com frequência a moralidade. Junte-se a esta receita uma dose de drama de telenovela, atores que estavam longe de saber que teriam ali o melhor papel das suas vidas e está criada a televisão que possibilitou, anos mais tarde, “Euphoria”, “Outer Banks”, “Pretty Little Liars”, “Bridgerton” e, claro, “Dynasty”, criada pela mesma dupla e talvez a série em que mais tentem replicar “Gossip Girl”.
“City On Fire” não é uma série de adolescentes (embora os tenha) nem é uma sucessora de “Gossip Girl”. Uma viagem à Nova Iorque do início do século, após o 11 de setembro, ali em 2003, ouvindo com frequência The Rapture, LCD Soundsystem, Interpol – a banda-sonora é uma bomba de nostalgia. Schwartz e Savage roubam o título ao romance de Hallberg e, entre muitas outras coisas, a ideia de uma cidade em transformação.
[o trailer de “City on Fire”:]
O romance acontece nos anos 1970, durante uns meses; a série acontece nos 2000s também durante meses e reflete sobre alteraçõs urbanas, a cidade que estava a ser construída quando Hallberg termina o romance e que começa a conhecer o início do fim após o 11 de setembro, com a gentrificação. São sítios diferentes, entre o livro e a série, mas o sentimento é semelhante.
Eis a história: no final do primeiro episódio alguém tenta matar uma rapariga universitária no Central Park. Sam (Chase Sui Wonders) fica em coma e os episódios seguintes envolvem diversas personagens — algumas diretamente à volta de Sam, outras menos — que andam atrás do suposto assassino. Há personagens para todos os gostos e é isso que é fascinante em “City On Fire”.
Comecemos por Charlie (Wyatt Oleff), o adolescente encantado com Sam que sonha que ela um dia poderá ser sua namorada. Isso está a milhas de acontecer e ele é o único que não o vê. No dia em que ela é alvejada, nas celebrações do Dia da Independência, tinha saído à noite com ela para ir ver o concerto de uma banda que Sam adora e lhe estava sempre a falar. Charlie é dos primeiros a saber o que aconteceu – Sam deixa-o sozinho no concerto e ele eventualmente vai à procura dela. Desamparado, refugia-se nos amigos dela que conhece nesse concerto.
Nicky Chaos (Max Milner), Sewer Girl (Alexandra Doke) e Sol (Alexander Pineiro) surgem nos primeiros episódios como uma espécie de culto que tem uma paixão por ver coisas a arder. E é isso que fazem, incendeiam prédios em Nova Iorque e percebe-se, desde o início, que Sam sabia algo que não deveria saber. Charlie junta-se a eles como maneira de sobreviver e de tentar descobrir quem quer matar Sam.
Noutro plano, há a família Hamilton Sweeney, ricos, donos de uma sem fim de património imobiliário em Nova Iorque e não só. Quando os conhecemos, o patriarca da família irá ser investigado pelo FBI por fraude, e o negócio anda mais ou menos a mando de uma figura sinistra, Armory Gould (John Cameron Mitchell). Regan (Jemima Kirke) é a futura herdeira do negócio e está prestes a divorciar-se de Keith (Ashley Zukerman), que tinha uma relação com Sam. No meio disto tudo, surge William (Nico Tortorella), irmão de Regan, que saiu do berço de ouro e não vê a família há quinze anos, embora tenha vivido grande parte do tempo muito perto deles. Era o vocalista da banda favorita de Sam e, atualmente, é um artista em vias de extinção e toxicodependente. Ao longo da série, William ganha uma importância que sabe conquistar.
Existem mais personagens, mas vale a pena ficar por aqui. O grande leque de boas personagens, com um elenco impecável, que dá um balanço entre o respeitável e o cheesy nos diferentes contextos, facilita a forma como Schwartz e Savage estão em constante mudança de ritmo e de género ao longo da série. Há pouco escreveu-se que não era uma série de adolescentes, mas é. Ou melhor, também tem disso, não no esqueleto e sim por evocação. “City On Fire” tem uma dose frequente de imaturidade, seja na forma rebelde com que descarta frequentemente assunções de género televisivo ou pela essência impulsiva e descuidada de muitas personagens: apesar de adultos, vivem e agem como adolescentes.
É a assinatura típica de Schwartz e Savage, então o que muda? “City On Fire” é, na essência, uma história de detetives, com os detetives em plano secundário e com quase todas as restantes personagens a fazerem esse papel. Cria-lhe um dinamismo puro, não deve nada a outros, e também não se encosta a géneros ou fórmulas durante muito tempo: até se pode dizer que cada um dos oito episódios tomou um comprimido diferente. Leve, entretida e a recuperar a dinâmica de uma cidade que teve os seus melhores anos nas últimas décadas. Era o fim e o início de algo, tal como aconteceu no final da década de 1970 e 1980. A Nova Iorque que às vezes queremos ver já não existe, mas está ali em “City On Fire”. E já há três episódios para ver.