Em “Indiana Jones e o Marcador do Destino”, de James Mangold, quinto filme da série sobre o arqueólogo do chicote, Indy (Harrison Ford) luta com nazis dentro e no tejadilho de um comboio em andamento, monta-se num cavalo da polícia para perseguir um bandido de mota nas ruas e no Metro de Nova Iorque, guia um “tuk-tuk” pelas ruelas de Tânger para fugir a mafiosos marroquinos, é atacado por enguias gigantes quando mergulha em águas gregas, vê-se coberto de aranhas e centopeias numa gruta na Sicília, apanha um balázio num ombro e despenha-se num avião alemão da II Guerra Mundial no meio de uma batalha no mundo antigo.

Parece rotina para Indy, cujo filme original, o glorioso “Os Salteadores da Arca Perdida”, se estreou em 1981, faz agora 42 anos. Mas entretanto, o tempo, que não perdoa, passou, os cinco filmes previstos no contrato que Steven Spielberg e George Lucas assinaram então com a Paramount demoraram muito mais a fazer do que estava previsto (entre o terceiro, “Indiana Jones e a Última Cruzada”, e o quarto, “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal” mediaram quase três décadas), o cinema de ação e aventuras assente nos “duplos” e em trucagens tradicionais deu lugar aos filmes de super-heróis escorados em efeitos digitais, e Harrison Ford envelheceu e é agora octogenário.

[Veja o “trailer” de “Indiana Jones e o Marcador do Destino”:]

Por isso, em “Indiana Jones e o Marcador do Destino”, Ford teve que ser rejuvenescido digitalmente para a vertiginosa sequência inicial passada na II Guerra Mundial (um ator mais jovem deu o corpo à personagem, e para a cara de Indy, foram usados planos da de Harrison Ford selecionados entre as fitas da Lucasfilm em que ele entrou quando era mais novo, e acrescentados àquele), e mesmo apesar de toda a agitação em que o argumento do filme, passado no final da década de 60, logo após a chegada do homem à Lua, o envolve posteriormente, o herói nunca corre perigo significativo, ao contrário do que acontecia nas quatro aventuras anteriores. Ou seja, o outrora enérgico e destemido Indiana Jones só o é aqui na verdade quando está remoçado por computador.

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[Veja uma entrevista com Harrison Ford:]

A esta indignidade digital, “Indiana Jones e o Marcador do Destino” acrescenta ainda a indignidade de Indy estar mais por baixo que sola de sapato. A mulher divorciou-se dele, o filho morreu no Vietname, acrescenta uísque ao café de manhã para se aguentar ao longo do dia, dá aulas numa universidade menor de Nova Iorque e as alunas já não escrevem mensagens de amor na pálpebras, porque adormecem a ouvi-lo. Nem Indiana Jones escapou à tendência masoquista da Hollywood contemporânea de apoucar, fragilizar e vulgarizar os seus ícones mais bem-amados e figuras lendárias. É que não havia mesmo necessidade. Que vergonha, Steven Spielberg e George Lucas.

[Já saiu: pode ouvir aqui o último episódio da série em podcast “Piratinha do Ar”. É a história do adolescente de 16 anos que em 1980 desviou um avião da TAP. E aqui tem o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto e o quinto episódios.]

Além de condicionar o herói e o ator que o personifica, o tempo está também no centro do enredo de “Indiana Jones e o Marcador do Destino”, que mais uma vez tem como motor um artefacto ancestral dotado de capacidades sobrenaturais ou características científicas que desafiam a razão e as leis da física. Desta vez, é o Marcador do Destino do título (e que devia ter sido corretamente traduzido por “mostrador”…), inventado por Arquimedes, um instrumento que permite detetar fissuras temporais e viajar nos milénios através delas. O matemático, engenheiro e inventor grego dividiu-o em dois pedaços para evitar que caísse em mãos erradas, fazendo-se enterrar com um deles.  

[Veja uma entrevista com o realizador James Mangold:]

Um grupo de nazis e seus capangas, liderados pelo Dr. Voller (Mads Mikkelsen no vilão mais baço, entediado e entediante de todos os “Indiana Jones”), um cientista nazi que os americanos aproveitaram para trabalhar no programa espacial da NASA que levou o homem à Lua (uma referência tão canhestra como óbvia a Wernher von Braun), quer apoderar-se do marcador para voltar aos anos 40 e ganhar a guerra para o Terceiro Reich; tal como Helena Shaw (Phoebe Waller-Bridge), afilhada de Indy e filha de um seu falecido amigo e colega, e arqueóloga reconvertida em traficante de antiguidades, que gosta é de dinheiro e o quer vender a quem fizer a maior oferta.

Waller-Bridge e a sua personagem são dois dos maiores problemas deste filme. Se a atriz é medíocre e indistinta, Helena Shaw é metida a martelo na história para que haja uma personagem feminina “poderosa”, como é agora obrigatório no cinema americano. E como Indy já não é o que era, é nela que assentam boa parte das obrigações do enredo que deviam normalmente ser cumpridas por ele (o herói chega ao ponto de depender dela para se salvar). E tudo sem que entre Waller-Bridge e Harrison Ford haja a menor suspeita de química, um sobressalto de empatia, uma faísca de magnetismo mútuo que seja. Shaw traz ainda a reboque como comparsa um miúdo marroquino, Teddy (Ethan Isidore), que devia funcionar aqui com Indy da mesma forma que o Minorca em “Indiana Jones e o Templo Perdido”. Mas nada feito.

[Veja uma cena do filme:]

James Mangold realiza com alguma atrapalhação e falhas de coerência visual, transformando “Indiana Jones e o Marcador do Destino” numa contrafação zelosa mas mecânica e deficiente em dinamismo, entusiasmo e arrebatamento, dos filmes da série, revisitando e repetindo, em tom menor, temas, situações, personagens, tropos aventurosos, sequências extremas de perseguição, de confronto e de fantasia, e dispositivos narrativos que compõem o ADN da saga (até o Sallah de John Rhys-Davis é reduzido à esmola de uma fugaz participação). E aquele final sem ponta de nexo e de um ridículo de pasmar, após o salto temporal, faz o do filme anterior, e muito gozado, “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal”, parecer um modelo de coerência interna e de inventiva em registo fantástico.

Um herói com os longos pergaminhos, o vibrante carisma, o reluzente lustro de lenda cinematográfica, a ampla mochila carregada de boa nostalgia e o inestimável capital aventuroso de Indiana Jones, devia despedir-se em alta e em glória, com uma derradeira aventura empolgante, jubilatória, inesquecível. Mas 42 anos depois de ter feito estalar o chicote pela primeira vez na tela e conquistado de imediato a adesão entusiástica dos espectadores, Indiana Jones sai de cena na mó de baixo e pela porta de trás. Que vergonha, que grande vergonha, Steven Spielberg e George Lucas.