Os cânones da ficção dividiram as prostitutas em essencialmente dois grandes grupos. Tomemos o cinema como veículo. De um lado, a prostituta sofrida, desgraçada, moída pela rua e pelo vício como em Leaving Las Vegas. Do outro, a meretriz com um coração de ouro, ansiosa que um príncipe encantado a afaste daquela vida, como em Pretty Woman. Aqui, a ficção fica de lado. Estamos perante uma autobiografia que não pede desculpa por existir logo a partir do título: Puta Feminista — Histórias de Uma Trabalhadora Sexual. A voz é a de Georgina Orellano, argentina, nascida em 1986, trabalhadora sexual desde os 19 anos e, desde 2014, secretária-geral da AMMAR, Asociación de Mujeres Meretrices de Argentina. A recém-chegada edição portuguesa da Orpheu Negro, com prefácio de Joana Canedo (ativista e cocriadora do coletivo Manas/ GAT), tradução da premiada Helena Pitta.

Orellano é uma exímia contadora de histórias, que conta o seu passado sem se distanciar dele no presente. Continua orgulhosamente a sua atividade nas ruas, a par com a militância. Quem pega no livro não vai ao engano: esta é uma obra assumidamente panfletária, que não olha para a questão da prostituição como um problema para ser resolvido, mas sim como uma realidade para ser aceite — “nem abolicionismo, nem regulamentação: despenalização”.

Independentemente do modo como se encara a a prostituição, uma coisa é certa: para a compreender, é preciso ouvir quem dela vive. A autora repete a ideia várias vezes, em passagens como “consultaram todos menos as putas. O sujeito político a quem se dirigia a proibição nunca foi convidado a participar na tomada de decisões. Imaginam o escândalo que seria se numa concertação social chamassem especialistas de todo o tipo menos xs trabalhadorxs?”.

“Somos essas esquinas e esses bairros por onde tens medo de transitar, somos as excluídas que só têm licença para habitar as noites e os lugares onde a nossa putaria não dê tanto nas vistas”. Aqui, o objetivo é mesmo dar nas vistas, partindo de vários episódios específicos para o geral. Na Argentina, o sindicalismo das prostitutas é já possível e faz parte do debate. Em Portugal, tal como o prefácio de Joana Canedo contextualiza os meandros, o corporativismo é ilegal. Naquela que é a parte mais técnica do livro (o restante tom, sendo certeiro, é muito mais coloquial), é possível traçar paralelismos, nem sempre abundantes, entre ambos os países.

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Título: “Puta Feminista”
Autora: Georgina Orellano
Tradução: Helena Pitta
Editora: Orfeu Negro

Páginas: 264

Outro dos objetivos da autora, como se torna óbvio pelo título, é o de se apoderar da palavra puta, despindo-a da ofensa e usando-a com orgulho (“que acontece se a puta que te pariu é de facto uma puta?”). Mas também prevalece a importância de se autoproclamarem trabalhadorxs sexuais (a opção pela linguagem neutra é de Orellano), dado que “a referência ao trabalho sempre estivesse estado presente: as frases ‘hoje vou trabalhar até às x horas’, ‘amanhã não venho trabalhar porque tenho o espectáculo do meu filho na escola’ (…) ou ‘até que horas trabalhas?’ faz parte dos diálogos quotidianos entre colegas”.

Apesar de ser uma óbvia peça de ativismo (à qual, por certo, muitas pessoas não darão sequer uma oportunidade de folhear exatamente por isso), não é por isso que Georgina Orellano deixa de ter uma capacidade desbragada de contar histórias que mantém a leitura escorreita e emocional (não confundir com piegas). Além da história da própria, há relatos sobre todo o tipo de clientes (incluindo os que se tornam amigos, amantes ou simplesmente os iludidos) e sobre a constantemente mencionada sororidade entre prostitutas, sendo o livro dedicado “às companheiras de esquina, pela amizade que construímos na rua”.

Georgina começou na prostituição aos 19 anos, puxada pela emancipação financeira — “é uma opção tentadora, embora ser puta não seja para todas. Como também não o é ser ama, explicadora, empregada doméstica ou caixa de supermercado”. Escondeu da família durante oito anos. De fora do livro estarão, certamente, momentos mais duros, sobretudo porque Orellano não gosta que lhe perguntem pelo medo (que diz ser geral às mulheres nas mais variadas situações), pelo mudar de vida, pelo ser “boa demais” para aquela profissão. Considera que é na sua profissão, essencial numa sociedade capitalista, que está o seu contexto pessoal no qual melhor sabe gerir a sua força e emancipação (“com o cliente negoceio tudo, mas com o tipo com quem ando, nada”).

Mais do que se autodenominar de puta, o mais difícil para a secretária-geral da AMMAR foi mesmo afirmar-se feminista, já que durante anos o viu como inimigo das suas escolhas de vida, um refúgio de mulheres privilegiadas que a queriam libertar de algo de que não queria ser libertada. O livro aborda também esse caminho, sempre a braços com as consequências da clandestinidade e a relação atribulada com a polícia. “O meu trabalho não é indigno, indignas são as condições em que temos de exercê-lo.”

Puta Feminista — Histórias de Uma Trabalhadora Sexual não convencerá todos, já que não se afasta um milímetro sequer do mote ativista que quer lançar. Porém, quem queira ver uma perspetiva diferenciada e na primeira pessoa pode, concordando ou não, encontrar aqui vários motes para reflexão. Sempre ancorados numa capacidade de contar histórias que é e continuará a ser melhor o motor para nos metermos nos sapatos (de salto alto) de outra pessoa.