Cinco meses depois da publicação da lei da morte medicamente assistida, e numa fase em que o governo garante que a regulamentação da lei “está em desenvolvimento” — ao mesmo tempo que assume que o processo vai transitar para o próximo governo —, nenhuma das entidades que representam os profissionais diretamente envolvidos no processo foi ainda ouvida, confirmou o Observador junto das Ordens dos Médicos, Enfermeiros e Psicólogos, da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

A proposta de regulamentação não nos chegou, e, por isso, não fomos ouvidos“, diz a presidente do Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos. Margarida Silvestre sublinha que a posição deste órgão “foi sempre a que não poderíamos ver a eutanásia como um ato médico”. “O ato médico é um ato a bem da saúde ou da prevenção da doença. A nossa posição foi sempre negativa em relação à descriminalização da eutanásia”, relembra a médica.

Já a ainda bastonária dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, confirma também que a entidade que lidera não foi consultada nesta fase, embora garanta que a Ordem está pronta a colaborar.

Bastonário da Ordem dos Médicos recusa designar um representante para a comissão da eutanásia

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“Estamos disponíveis para nomear um representante [para a Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida, que será a entidade responsável por confirmar o cumprimento dos processos legais da eutanásia], algo que ainda não nos foi pedido”, diz a bastonária dos enfermeiros.

Ana Rita Cavaco aponta críticas à lei, sobretudo tendo em conta as conhecidas carências no acesso dos doentes aos cuidados paliativos. “Defendemos sempre que tem de haver um reforço grande do acesso a cuidados paliativos — a grande maioria das pessoas ainda não tem acesso. Temos de acautelar que as pessoas tenham ao seu dispor todas as ferramentas que lhe evitem o sofrimento”, diz a responsável.

Psicólogos criticam atraso na regulamentação

Para a Ordem dos Psicólogos, “a lei já devia ter sido regulamentada”. Depois de vários vetos de Marcelo e de chumbos do Tribunal Constitucional, a lei foi aprovada no Parlamento em maio, promulgada por Belém e finalmente publicada em Diário da República, devendo ser regulamentada no prazo de 90 dias. Esse prazo terminou no final de outubro. Depois, surgiu a Operação Influencer, António Costa apresentou a demissão e Marcelo apontou eleições legislativas antecipadas para 10 de março.

Foi neste contexto que, esta sexta-feira, o Ministério da Saúde disse ao Observador que o processo de regulamentação nunca estaria concluído até às eleições de março. “O processo de regulamentação da lei está em desenvolvimento e será parte integrante do dossier de transição”, assumiu o ministério de Manuel Pizarro. À margem do congresso da Ordem dos Médicos, em declarações à Rádio Observador, o ministro defendia que “a regulamentação não é isenta de complexidade nem da necessidade de audições e de debate”. Pizarro sublinha a ideia de que “seria um erro regulamentar à pressa uma lei, que, sendo muito importante, é também muito delicada”, acabando por confirmar que “o processo vai ter mesmo de esperar pelo próximo ciclo político.”

O presidente Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos concorda com essa visão mais cautelosa. “Se pergunta se agora, à pressa, conseguiriam regulamentar, acho que não”, ressalva Miguel Ricou. E confirma que, na fase da regulamentação, a Ordem nunca foi contactada. “Eu acho que o processo de regulamentação ainda não começou. Fomos chamados, sim, durante o processo legislativo, mais que uma vez”, realça. Miguel Ricou diz que é importante a Ordem ser ouvida nesta fase, uma vez que a lei que foi publicada em maio em Diário da República prevê que seja assegurado aos doentes, “ao longo de todo o procedimento, o acesso a acompanhamento por parte de um especialista em psicologia clínica”.

Sem se querer alongar em comentários, o presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, João Bessa, confirma também ao Observador que não foi “auscultada nesta fase” da regulamentação, mas que espera que isso venha a acontecer em breve.

Já a presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida tece críticas ao atraso na regulamentação da lei. “Convém que a regulamentação se siga à publicação da lei. O prazo está estabelecido. Ou é alterado para ser cumprido ou é cumprido sem ser alterado”, diz ao Observador Maria do Céu Patrão Neves. A responsável confirma também que, desde maio, a entidade que lidera não foi ouvida. “Na fase da regulamentação, nunca fomos contactados. Não nos chegou nenhum diploma, presumimos que não exista nenhum”, afirma, realçando que o Conselho espera que a regulamentação lhe seja enviada para apreciação.

Conselho Nacional de Ética diz que recomendações que fez “nunca foram atendidas”

Maria do Céu Patrão Neves recorda que muitos das recomendações feitas pela Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida no decurso do longo processo legislativo, que resultou na publicação da lei, “nunca foram atendidas”. “O problema mais grave é que no texto há uma abrangência maior das pessoas que podem solicitar o suicídio assistido. As primeiras propostas referiam-se a doença fatal e na última versão está sofrimento profundo. Isto significa um alargamento dos candidatos, na chamada vertente deslizante”, diz a também professora universitária.

Outro problema, frisa, está relacionado com a garantia de cuidados paliativos a quem solicita o suicídio assistido. De acordo com a lei, a eutanásia só é despenalizada se o suicídio assistido não for possível. “A formulação é estranha porque direito a cuidados paliativos todos os cidadãos têm. Espero que uma leitura enviesada da lei não estabeleça uma prioridade a quem peça o suicídio assistido“, defende Maria do Céu Patrão Neves.

Eutanásia não avança para já. Ministério da Saúde deixa regulamentação para o próximo governo

Outro ponto que o Conselho quer ver melhorado diz respeito ao princípio da autonomia, que estrutura a lei. “O que verificamos é que a pessoa tem sempre de ter uma autorização do médico assistente para escolher as pessoas que quer ter à sua volta. É difícil de entender. O médico também decide quem, do ponto de vista clínico, vai estar presente — para além dele — e o local onde vai decorrer o suicídio. A autonomia está diminuída“, alerta a responsável, que, ainda assim, espera que, no decorrer do processo de regulamentação (quando ele vier a ter lugar), estes aspetos “sejam acautelados”.