Depois de em finais de 2021 ter publicado Cadernos do Dominguizo. Receituário da família Leal Castello Branco, início do século XIX, oriundo da Casa Espírito Santo, da Covilhã, Ana Marques Pereira ocupa-se agora de dois livros de família com registos culinários que Álvaro Teixeira de Queiroz, da Casa do Outeiro, em Ponte de Lima — classificada como imóvel de interesse público desde 1986 —, pôs à sua disposição, num gesto de ampla e justa patrimonização e difusão cultural que importa elogiar. “Quiseram valorizar uma cultura oitocentista regional e preservar a memória deixada pelo rasto desta família” (da Introdução, p. 17) que, vivendo sobretudo no Porto e em Vila Nova de Gaia, passava os períodos de vilegiatura nas suas Casas em Viana do Castelo e em Ponte de Lima, em que “a compilação e cópia dos registos foi efectuada” (p. 16). “Agora, que se encontra à frente de uma das casas da família, […] e apreciando a responsabilidade das famílias proprietárias na preservação do património cultural, tanto edificado como imaterial, interessava-lhe [referindo-se a Álvaro Teixeira de Queiroz] trocar impressões sobre esse assunto, uma vez que pretendia recuperar alguns dos elementos tradicionais das cozinhas da região e reviver as tradições culinárias da Casa” (p. 13). Outros cuidados são dignos de nota: a Casa e Quinta de Nossa Senhora da Boa Viagem, em Viana, classificada desde 2014, foi recentemente “adaptada a turismo, com construção de um novo jardim, sob projecto do arquitecto paisagista Ilídio Araújo e orientação da arquitecta paisagista Cristina Castel Branco, também ela da família” (p. 25).

Os dois receituários, datados de 1835-61 e de 1855, foram recolhidos ou transcritos por João Coelho de Castro Villasboas e Sá (1803-83) e por José Luís da Silva Freitas Menezes e Vasconcelos, naturais de Caminha e do Porto. São, portanto, anteriores ao fim dos morgadios, decretado em 1861, e foram escritos, ao menos de início, com uma diferença temporal de apenas 20 anos. O primeiro contém 221 receitas, o segundo 209 (95 delas copiadas do anterior), mas nem todas são de cozinha (pratos, sobremesas, licores para “os dias especiais”, p. 38), pois também as há medicinais — contra a cólera e a raiva, contra o fastio, a dor da gota, os sezões, o reumatismo e a enxaqueca, etc., e, outras ainda, para a produção caseira de tinta de escrever e de tira-nódoas, ou o mais prosaico “matar percevejos” (pp. 140-42). “Apesar de existirem repetições, contabiliza-se um total de 428 receitas, no conjunto das duas obras, um número significativo e esclarecedor, que nos ajuda a elucidar sobre os hábitos alimentares e sociais de uma família da região Norte do país, na primeira metade do século XIX” (p. 39). “Trata-se de registos masculinos, destinados às mulheres da família ou ao pessoal de cozinha em serviço” (p. 33), antes que, pelo fim do século, as mulheres assumissem diretamente essa função no contexto das casas senhoriais.


Título: “Receitas Particulares e Curiosas. Manuscritos do século XIX da família Coelho Villasboas”
Autores: Ana Marques Pereira e Álvaro Teixeira de Queiroz
Prefácio: João Gomes d’Abreu
Editora: Ficta Editora
Páginas: 255

Assinalam-se os nomes dos que, fora do meio doméstico estrito, contribuíram com receitas, e a erudição da historiadora da alimentação Ana Marques Pereira permitiu-lhe identificar a origem imprensa de algumas outras, como é o caso do Formulário para Cozinha e Cópa coordinado por um curioso da província do Minho, de 1860 (p. 38) ou do Thesouro do Cozinheiro, Confeiteiro e Copeiro, que em 1863 divulga as mesmas receitas de lampreia grelhada e lampreia guisada, ou à Bordalesa (p. 225). Mas é sobretudo no seu longo comentário a cada uma das receitas que o seu conhecimento da bibliografia da época e da historiografia alimentar europeia se revela mais consistente e apurado, fixando o ponto certo para se saborear a qualidade ou a originalidade destes registos minhotos. Será o Pão-de-Ló à Espanhola da p. 53 o chamado “Castella”, levado para o Japão no século XVI e que ali deu origem ao Kasutera, bolo “idêntico, com muitos ovos e batido longamente”? E o pudim de tutano — feito em lume muito brando com o dito, toucinho, amêndoas, ovos e canelas —, que não deixou rasto em tratados de gastronomia entre 1680 e 1788 (pp. 58-59)? E os biscoitos de Valongo (p. 71), cuja receita só aparecerá em 1923, num célebre livro de Emanuel Ribeiro, ...O Doce Nunca Amargou…? E o Leite Espuma, de que, diz Pereira, “não encontrámos receitas idênticas em livros anteriores” (p. 104)? Absolutamente originais parecem ser também os colinetes da p. 198, pois, “apesar de a designação parecer familiar, não conseguimos detetar outras receitas com este termo”.

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Quando é caso disso, a autora não se poupa a dar-nos amplas explicações históricas, por exemplo quanto ao Manjar Branco (pp. 114-16), “um doce feito e apreciado em toda a Europa desde a Idade Média”, hoje produzido em especial em Portalegre e em Coimbra, ou sobre as Morcelas de Arouca (pp. 221-23), morcelas doces, com peito de galinha e lombo, pão, amêndoa, canela e açúcar, que aparentemente já não se fazem mais — como os salpicões de arroz da p. 197 —, ou sobre o maçapão (pp. 176-78), a geleia de mão de vaca (pp. 191-93) e o pudim de maranta (pp. 180-81), planta tropical herbácea de cujo rizoma se aproveita uma fécula, dita araruta. Com os “brasileiros de torna-viagem”, veio também a receita de chouriças (doces) de farinha de pau (ou mandioca), às pp. 204-5.

No prefácio, João Gomes d’Abreu assinala: “É preciso não esquecer que estas casas, por maior que fosse o seu aparato, eram casas de lavoura”, e eram com os “produtos gerados pela própria exploração que se preparavam as refeições do pessoal, ainda que complementadas com provisões conseguidas no mercado, como o bacalhau e a sardinha. Mas o cardápio das refeições da casa não se esgotava nestes produtos, e alguns nem sequer eram admitidos à mesa dos senhores. — É precisamente aí que o conhecimento das receitas faz a diferença. Elas incluíam outros géneros, que era necessário adquirir, alguns nas mercearias e vendas locais, outros encomendados e até importados do estrangeiro. || As casas do Minho não tinham todas a mesma disponibilidade e algumas conheceram até períodos muito restritivos por toda a ordem de razões. Aliás, foi precisamente […] com as limitações impostas pela extinção dos morgados, com o infortúnio das opções políticas e com a debandada para os centros urbanos, que muitas destas casas foram relegadas para residência secundária ou ficaram entregues às tias solteiras, que faziam milagres para as conseguir manter. || É um pouco neste quadro de decadência económica e são provincianismo que as relações familiares e sociais se estreitam, para mitigar as desventuras e estimular a capacidade de sobrevivência” (pp. 10-11).

Segundo ele, a partilha de receitas avulsas, por cedência ou permuta, ou já coligidas como nestes dois livros, além da transmissão geracional de saberes domésticos num certo contexto familiar, testemunha relações de amizade e de deferência e pode ser entendida como uma forma de cumplicidade social em tempos difíceis. Mas é, acima de tudo, um índice do “quotidiano da cozinha nas casas da sociedade evoluída oitocentista” (sic, p. 12), ainda que, como afirma Álvaro Teixeira de Queiroz (p. 9), essas receitas culinárias não sejam tantas “como seria de supor nos registos familiares das casas deste Alto Minho, mas as suficientes para se conseguir perceber as preferências da sua gastronomia”. Devemos, todavia, estranhar a pouca presença de pescado na dieta das elites de Viana do Castelo, terra de bravos pescadores e marinheiros, ou de Ponte de Lima, a escassos 30 km, perante uma trintena de pratos com carne. Temos a ilustre lampreia, já referida, linguados guisados com vinho branco (p. 226), recheio à inglesa para peixe (p. 128) e nada mais. Quem diria…

O livro será lançado a 20 de dezembro, pelas 17 h, com apresentação de Ana Isabel Buescu, em sessão na Biblioteca – Espaço Cultural Cinema Europa (Rua Francisco Metrass, 28 D), em Lisboa