“Cautela máxima” e “gestão de recursos de forma sensível” são as palavras de ordem para lidar com a seca no Algarve. Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente, falou esta quarta-feira aos jornalistas depois de presidir à 18.ª reunião da Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca, em Faro. Foi anunciada a redução de 15% do consumo de água no setor urbano e de 25% no setor agrícola, dos quais 15% são para aplicar na redução da captação de água para rega. Ainda assim, no que diz respeito à agricultura, valores distantes dos 70% que chegaram a ser pensados aplicar.

“Esta reunião resulta de duas semanas de trabalho em que os intervenientes da área governativa e das entidades regionais trocaram impressões e estabilizaram cenários e necessariamente, apresentaram propostas em relação ao contexto em que estamos”, informou Duarte Cordeiro, que aponta o “reforço da capacidade de captação de água nos aquíferos” como uma das principais medidas.

Segundo o ministro do Ambiente, “se nada fosse feito relativamente à moderação do consumo, se chegaria ao final do ano sem água para abastecimento público” no Algarve. Na reunião, que durou quase quatro horas, foram decididos cortes menores que os que estavam inicialmente previstos para a agricultura.

Duarte Cordeiro destacou a “situação assimétrica” da seca em Portugal, com as albufeiras no Algarve a 25% da sua capacidade e explicou o método utilizado para determinar a quantidade de água a ser poupada para evitar escassez deste recurso para consumo. “Olhamos para as reservas que temos nas albufeira e, depois, olhamos para o registo de precipitação nos últimos anos e temos em conta o pior dos últimos 10 anos”, esclarece.

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O ministro anunciou ainda a criação de um grupo de trabalho composto por “cinco grupos técnicos a acompanhar as medidas nos vários setores”. Entre as iniciativas previstas para colocar em prática a redução do consumo de água estão “campanhas de sensibilização junto da população” e a “fiscalização de furos ilegais”.

“Estas alterações climáticas deviam ter sido previstas há mais tempo”

Num ponto todos estão de acordo: a situação é dramática e, atendendo aos efeitos das alterações climáticas, não vai melhorar. O Algarve chega a 2024 na maior situação de seca de que há registo — o que levou à preparação de medidas que irritaram os responsáveis dos vários setores desde o primeiro minuto. A polémica começa quando se fala em causas — sendo que agricultores e responsáveis da região apontam o dedo à “inação” do Governo — e medidas: se por um lado a agricultura diz estar a ser “injustamente” castigada com cortes mais pesados, também há quem argumente que os utilizadores domésticos vão ser prejudicados. Pelo meio há quem se queixe dos maus usos que a água continua a ter, incluindo a rega ligada em rotundas algarvias em dias de chuva.

Ao Observador, na manhã desta quarta-feira — enquanto se preparava para a referida reunião — o presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve, António Pina, adaptou um conhecido ditado popular para explicar a situação de passa-culpas: “Em casa onde não há água, todos ralham e ninguém tem razão”. Por outras palavras: “Estas alterações climáticas deviam ter sido previstas há mais tempo. Estamos a falar num novo normal“.

“É preciso um novo plano de abastecimento de água”

Para António Pina, que se junta neste ponto ao coro de protestos contra as ações alegadamente tardias do Governo (especificamente a “parte técnica” do Ministério do Ambiente, que junta a Agência Portuguesa do Ambiente e o seu domínio sobre as Águas do Algarve), o Executivo tinha “obrigação de ter há muitos anos previsto esta situação e não ter obstaculizado novas fontes de acesso à água” como a construção de um açude na Foupana (Alcoutim) ou o uso de dessalinizadoras, que é agora considerado no leque das possíveis soluções.

“A outra solução é ficar à espera de que chova”, ironizou o responsável, frisando que é preciso um novo plano de abastecimento de água e lembrando que a lei protege o uso urbano da água. Perante as críticas dos agricultores aos municípios e ao desperdício de água que é da sua responsabilidade, Pina deu um exemplo positivo — “Olhão reduziu 20% do consumo de água nos últimos três anos” — mas admitiu que “nem todos” o fizeram, havendo verbas previstas no Plano de Recuperação e Resiliência para investir na modernização destas redes, evitando mais desperdício — “são redes com 40, 50 anos em que a água sai e nós nem nos apercebemos”.

Também ao Observador, o presidente da Associação dos Beneficiários do Plano de Rega do Sotavento do Algarve, José Macário Correia, um dos maiores críticos das medidas que já tinham sido antecipadas, deu o exemplo das reuniões que tem tido “de manhã, à tarde e à noite” com o Governo no último mês e meio para dizer que as decisões são atrasadas por burocracias e a multiplicação de reuniões ou comissões.

Seca. “O Governo não vai apresentar soluções”

“Estamos a sofrer com falta de decisões em tempo oportuno”, apontou também, lamentando que não tenha havido mais água armazenada ou medidas tomadas a tempo (de novo o exemplo da Foupana e das dessalinizadoras, assim como da instalação de um ponto de captação de água no Pomarão e da reativação de furos municipais) e atirando culpas ao ministro do Ambiente anterior, João Pedro Matos Fernandes, por uma postura que disse ser “ilógica” e que atrasou as soluções: “Estamos a sofrer com inação”.

Entre as várias causas apontadas para a falta de água — e as culpas que se passam entre setores — encontram-se também os exemplos dados por Macário Correia sobre o mau uso de água para uso urbano, nos municípios.

“Ainda há instantes estava a chover em Faro e estavam a mostrar-me fotografias de rotundas inundadas de chuva com rega ligada. Quando está a chover estão a regar rotundas”, contou em declarações ao Observador. Uma das medidas que defende é que os furos municipais sejam reativados para que as câmaras municipais retirem água dali e não das barragens, “que são precisas para o regadio” e para “produzir alimentação”. “As câmaras estão a perder 30 hectómetros cúbicos de água por inoperância de reparação das redes” — uma perda que esta semana já tinha classificado, em declarações ao Público, como “um crime”.

Agricultores dizem que medidas de combate à seca vão “acabar com a agricultura”

Essas queixas têm sido recorrentes do lado dos agricultores. Quando ainda se apontava para a reduções na ordem dos 70%, José Oliveira, da AlgarOrange (a maior associação portuguesa de operadores de citrinos) dizia esta semana numa conferência de imprensa em Loulé que os cortes ao abastecimento de água para o setor são “incomportáveis” e que, no que toca à agricultura, são “medidas de calamidade”, o que disse contrastar com outros setores.”Aquilo que nós vemos é que as políticas ou os cortes anunciados para os outros setores muitas vezes levam-nos a pensar que o objetivo é acabar com a agricultura”, disparou, citado pela Lusa.

Ao Expresso, esta semana, o presidente da Associação de Regantes e Beneficiários de Silves, Lagoa e Portimão, João Garcia, contava que as condutas naquela zona “estão vazias” e que a água não chega aos cerca de 1800 agricultores da associação (e que produzem sobretudo laranjas) desde novembro. “Já não falamos em produção, porque a produção vai ser nula. Só queremos tentar salvar as árvores”, dizia ao semanário, prevendo “uma catástrofe” e um prejuízo de 12 milhões de euros.

Do outro lado, ouvem-se acusações semelhantes: ainda esta semana o ministro do Ambiente e a ministra da Agricultura foram recebidos em Odemira, numa altura em que Duarte Cordeiro assumiu estar a ponderar a continuação das captações de água na Barragem de Santa Clara para a agricultura em 2024, com protestos e gritos que, como relatava a Lusa, reclamavam “água para todos” e “água para o povo”.

Entre os cerca de 100 manifestantes havia pequenos agricultores que diziam temer que os custos com energia para pôr electrobombas a funcionar de maneira a ir buscar a água fossem elevados e só acessíveis para “grandes produtores”, assim como movimentos cívicos que criticavam o “lobby da agricultura intensiva”, pondo em causa a qualidade e o volume da água para os consumidores domésticos.

O que todos reconhecem é que a água escasseia e a situação não vai, por meios naturais, melhorar: ao Expresso, o vice-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente, José Pimenta Machado, veio dizer que as albufeiras algarvias se encontram a 25% da sua capacidade — “este ano temos menos 90 hm3 que no ano passado, quando só para consumo urbano vão 75 hm3”, explicou, justificando estes números com uma redução de 20% na precipitação no Sul do país nas últimas duas décadas, com tendência a piorar.

Num artigo de opinião no Público intitulado “É preciso terminar com o estado de negação“, o ex-presidente do IPMA Miguel Miranda fazia um diagnóstico semelhante, explicando que não vale a pena esperar por um “pico quase milagroso de precipitação que traga alívio”.

“Esta dependência do sistema natural é excessiva“, defendia, lamentando que apesar de se conhecer a origem do problema não se estar a demonstrar “ação suficiente” para o resolver”. Nesse texto, Miranda dizia que coletivamente “nos recusamos objetivamente a aceitar” o cenário atual” e que, mais do que “demonizar” a agricultura, os “usos que parecem menos relevantes” (como campos de golfe) e os atrasos na dessalinização, é preciso “revisitar todas estas áreas com pragmatismo” e “consciência de que o clima está a mudar”.

“Pior do que isso, de que não temos nenhum fator que nos indique que estejamos numa situação de estabilidade climática. Pelo contrário, os últimos anos, os últimos modelos, as últimas análises independentes, confirmam que a mudança climática irá prosseguir inexoravelmente”, avisava nesse artigo, alertando para o “crime” do desperdício e para a necessidade de se apostar numa utilização “eficiente” e monitorizada “sem contemplações”.

A perspetiva futura continua a ser preocupante: como escrevia o Público esta semana, com base numa resposta do Governo, o Algarve pode ter reservas de água até ao fim de 2024 (dependendo da precipitação que entretanto se verificar”. O horizonte de segurança é curto, como explicava o jornal, e embora as medidas previstas para tentar que seja mais sólido possam ser orçamentadas com recurso ao PRR, algumas podem só estar prontas em 2025 ou 2026, o que complica os planos mais imediatos para salvar a situação. Resta saber se as medidas agora anunciadas pelo Governo serão suficientes para o fazer.