É o segundo romance de Douglas Stuart, autor que, com Shuggie Bain, venceu o Booker Prize em 2020. Logo nas primeiras páginas, as semelhanças entre Um lugar para Mungo e o seu antecessor são evidentes. Quase sem dar por si, o leitor está mergulhado numa narrativa que mostra, em concomitância, a mentalidade e a vida de uma cidade, isto além de um certo determinismo provocado pela classe social em que se nasce. Estamos nos bairros operários de Glasgow, lugar onde, pela visão apresentada por Stuart, ninguém faz festinhas a ninguém.

Ao longo da narrativa há um equilíbrio permanente na utilização dos recursos frásicos. Por um lado, temos um narrador funcional, quase lírico, que vai dando o que o discurso directo não dá. Não que este não dê muito – já lá vamos –, mas temos, através desta voz não participante, parágrafos que são janelas abertas para o mundo, que mostram e explicam em simultâneo, que metem também o leitor dentro da cena. Por sua vez, o discurso directo não pretende a esterilização da língua. Em vez disso, as personagens falam como gente, característica que, existindo, deve ser sempre sublinhada. Os erros estão lá, as grosserias também. Abre-se o livro e vê-se gente a falar, não uma representação de um conceito além que não chega a ter sabor ou voz de pessoa. E muito menos há uma conceptualização linguística que faça com que o lirismo vença a realidade.

E nisto vai surgindo a história de Mungo e James, dois adolescentes de 16 anos. O primeiro é protestante, o segundo é católico – diferenças que são qualquer coisa, mas que entre os dois sabem a coisa pouca, e coisa menor ainda quando comparada com o mundo envolvente. Ainda assim, esta coisa pouca só existe entre ambos, uma vez que a própria cidade faz entre as duas realidades religiosas dois grupos intransponíveis que não podem ser misturados.


Título: “Um Lugar Para Mungo”
Autor: Douglas Stuart
Tradução: Nuno Quintas
Editora: Alfaguara
Páginas: 480

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O amor surge ali, tacteando, entre uma realidade violenta que impõe uma certa ideia de masculinidade que, para lá da violência, parece passar pelo desligamento do afecto e, claro, pela assunção da heterossexualidade como marca de um homem. A narrativa desenrola-se após as reformas políticas de económicas de Margaret Thatcher, e isto não existe apenas como pano de fundo. Em vez disso, temos o cinzentismo de um país que vê a sua classe operária atacada pelo desemprego e, portanto, pela incerteza. Tudo isto vai fazendo de Um lugar para Mungo um lugar de múltiplas camadas. Douglas Stuart não cai no erro de se focar meramente na história de amor nem de a usar só como engrenagem para mostrar a paisagem à volta. Pelo contrário, texto e contexto fundem-se numa unidade orgânica, e o que parece paisagem da narrativa é, afinal, um dos seus elementos internos mais poderosos e funcionais.

A narrativa foca-se primordialmente em duas linhas temporais. Numa, vamos tendo a vida doméstica de Mungo, com a mãe alcoólica, Mo-Maw, a irmã, Jodie, e o irmão, Hamish, líder de um gangue local protestante que persegue os católicos locais. Ou seja, do núcleo de uma casa, já vamos tendo uma visão caleidoscópica da vida, com marcas de género, classe e religião. Temos, por exemplo, a habituação ao alcoolismo da mãe e à violência circundante. Eis um exemplo, a abrir o segundo capítulo:

A mãe de certeza que tinha morrido. Mais de três semanas se tinham passado desde que os filhos a tinham visto, e Mungo só conseguia imaginar o mais macabro dos cenários. A Mo-Maw Hamilton fora violada e esventrada com uma faca das de carne, comprada por um qualquer camionista de longo curso com vales de desconto das estações de serviço. Fora amarrada, as pontas dos dedos arrancadas, antes de o seu corpo nu deslizar pelas águas frias e salobras do rio Clyde.” (p. 39)

Noutra linha temporal, vamos seguindo os passos de Mungo numa viagem de barco com dois amigos da mãe, que não só vai servindo para mostrar o lugar que Mungo ocupa naquela realidade, como a expectativa de que passe a ocupar outro – mesmo que à força:

Ela tem nojo de ti, sabes disso, não sabes? Quase nos pedia de joelhos que a gente te trouxéssemos. Tá cheiinha de medo que acabes frouxo como o feniano com quem andavas metido.” (p. 294)

Nestes traços, vamos vendo parte da fórmula do romance anterior, e por isso Um lugar para Mungo não chega a surpreender o leitor. Os contornos familiares são demasiado parecidos (a mãe alcoólica, responsável sozinha por três filhos, irresponsável pelo consumo de álcool; o ambiente de Glasgow, com uma divisão quase a bisturi entre católicos e protestantes; a violência no trato), o que faz com que, comparando-se um ao outro, se sinta, com este segundo romance, que se abdica da experiência de se conhecer – ou, da perspectiva do autor, de se atingir – uma voz narrativa ou uma forma de dizer. Em vez disso, é a repetição da fórmula, ainda que possa haver aprimoramento.

Ainda assim, o romance vai mostrando um equilíbrio permanente. Por um lado, a descoberta do amor por parte de um adolescente traz a surpresa e a ternura das primeiras vezes, assim como a sensação de segurança que um momento certo traz. Por outro, as cenas de violações são cruas, mesmo quando o autor opta por, em vez de descrevê-las, mostrar-lhes a página seguinte. Aí, o leitor cai sem pára-quedas na sensação posterior de Mungo, que se adensa e alonga e o enoja – e que também enoja o leitor.

De resto, o autor aposta na caracterização das personagens, e com isto nota-se, aqui e ali ao longo do romance, uma narrativa que vai tocando em pontos distintos, compondo um todo – gente e vida social. Lidos os capítulos, a narrativa, por ser abrangente, vai dando ao leitor a sensação de estar perante um todo orgânico, compostos por fios entrelaçados que blindam o enredo.

A autora segundo o antigo acordo ortográfico