O ministro das Finanças convocou em cima da hora uma conferência de imprensa esta segunda-feira para esclarecer a polémica sobre as declarações de rendimento dos gestores da Caixa Geral de Depósitos. Debaixo de alta pressão do PSD e do CDS, e depois de se ter encontrado com Marcelo Rebelo de Sousa, Mário Centeno prometeu esclarecimentos sobre o tema, naquela que não foi a primeira tentativa de explicação de um dossiê que o Governo insiste estar a correr bem.

Mas afinal o que é que Centeno esclareceu? E foi esclarecedor? Para o Presidente da República, a conferência de imprensa contém um elemento que fez questão de sublinhar num comunicado ao fim da noite: o ministro admitiu “erros de perceção”.

Eis as respostas de Centeno “descodificadas” para seis questões essenciais.

Declaração de rendimentos. Governo deu ou não isenção a gestores da Caixa?

A verdade é que nunca neguei que houvesse acordo, só que ele não envolvia a eliminação do dever de entrega das declarações — matéria prevista noutro diploma não revogado ou alterado.”

“(…) Acordo do Governo para alterar estatuto do gestor público houve, acordo do Governo para isentar da entrega de declarações ao TC (Tribunal Constitucional) não houve”.

Mário Centeno garante que não. Diz que o único acordo foi no sentido de excluir a Caixa Geral de Depósitos do estatuto do gestor público, com todas as consequências que isso implica, nomeadamente em termos de remunerações, incentivos e incompatibilidades. Mas não em termos de isenção de escrutínio perante o Tribunal Constitucional.

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Ora não é esta a versão do antigo presidente da Caixa, António Domingues. E os documentos escritos trocados entre o gestor e o Ministério das Finanças sugerem que, pelo menos de forma tácita, o Governo aceitou as condições de Domingues, o que para este incluiria também a não entrega de declarações de rendimentos. Mas até agora, este compromisso da parte do Governo não apareceu escrito, preto no branco. Mas também há informações (mais uma vez reveladas por Lobo Xavier) de que há mais documentos ainda por divulgar e SMS.

Então foi António Domingues que percebeu mal?

“Ao analisar todo este longuíssimo e complexo processo admito que possa não ter afastado do entendimento do dr. António Domingues, por eventual erro de perceção mútuo, a ideia de que o acordo poderia cobrir de alguma forma a eliminação do dever de declaração”.

“Os erros de perceção têm a ver com leituras que são feitas das consequências da alteração legislativa e do seu alcance. Noutras ocasiões, quando os governos legislaram matérias que se revelaram inconstitucionais, esses governos não estavam genuinamente a atacar a Constituição.”

“(…) Pode ter havido erros de perceção sobre o alcance da alteração legislativa”.

Mário Centeno admite que sim, que pode ter havido “erros de perceção mútuos” que tenham levado António Domingues a assumir que, ao criar uma exceção para a CGD no estatuto do gestor público, o banco estaria também isento de entregar declarações de rendimentos e património ao TC.

Apesar das eventuais interpretações, o ministro garante que as alterações acordadas ao estatuto de gestor público nunca visaram fragilizar o escrutínio ao banco do Estado. Centeno defendeu até que as alterações introduzidas na lei iam no sentido contrário, que reforçavam os mecanismos internos de controlo e de auditoria.

O ministro volta ainda a repetir a tese de que as alterações ao estatuto de gestor público, e que reforçaram também a independência da gestão da Caixa em relação às ordens do acionista Estado, não eram apenas uma condição de António Domingues. Também a própria Comissão Europeia queria garantias de que a Caixa passaria a ser gerida com as regras de um banco privado para afastar o fantasma da ajuda de Estado.

Governo e Domingues nunca falaram sobre a declaração de rendimentos?

A primeira vez que esta matéria [das declarações] me é comunicada de forma formal é no dia 15 de novembro, numa carta em que António Domingues informa o Governo de que alguns membros do conselho de administração não se poderiam conformar em entregar essas declarações.”

“Há conversas ao longo do tempo sobre matéria diversas, e entre elas declarações, sim. Há um conjunto de matérias centrais no estatuto do gestor público que concentraram a atenção dessas conversas e reuniões. Estas são as questões que são de facto levantadas nas comunicações que António Domingues tem com o Ministério das Finanças. Mas as questões mais relevantes eram de rendimentos e incentivos.”

“Houve um processo negocial em que o Governo apresentou essas intenções, que passavam precisamente pela alteração das condições de remuneração e de incentivos, e pela adequação da governação interna da CGD. Mas a matéria que tem vindo a ocupar recentemente [as declarações de rendimentos e património] não era matéria central. A matéria que era central era a da exclusão do estatuto do gestor público.”

Falaram, formal e informalmente. O ministro das Finanças assegura que António Domingues só coloca o tema da não entrega da declaração, pelo menos em comunicação formal, no dia 15 de novembro. Ou seja, já depois de rebentar a polémica sobre o regime de exceção concedido aos gestores da Caixa (no final de outubro) e depois de o presidente do banco ser confrontado com a pressão política crescente para a entrega das declarações de rendimento e património no Tribunal Constitucional.

Mário Centeno admite, contudo, que o tema das declarações também foi tratado em conversas informais, mas não especifica de que declarações está a falar. Um dos mails trocados entre Domingues e as Finanças, e referido pelo jornal Público, menciona a não entrega de declarações de rendimentos à Inspeção-Geral das Finanças, como é regra para os gestores públicos. Mas nos documentos que vieram a público até à tal comunicação de novembro, não é referido explicitamente o Tribunal Constitucional. Mas é referido que não deveria haver “publicidade” e “transparência” relativamente às declarações de rendimentos, o que é uma referência implícita à regra do Tribunal Constitucional.

Ao longo da conferência de imprensa, o ministro repete várias vezes que as prioridades de Domingues nas negociações para excluir a Caixa do estatuto do gestor público passavam mais pela eliminação do limite às remunerações e por uma política de incentivos.

Isenção de declarações. Porque disseram as Finanças que não havia lapso?

A questão colocada nessa altura ao Ministério [pelos jornalistas] tem a ver com um conjunto vasto de obrigações declarativas. Há um conjunto de regras profundas no setor financeiro a que todos os bancos estão sujeitos e foi respondido [a 25 de outubro] que fazia sentido retirar a Caixa do estatuto do gestor público. Não era lapso porque foi reforçado o escrutínio declarativo [ao nível dos supervisores]. Também é verdade que a exclusão do estatuto de gestor público era condição essencial da negociação e do acordo de princípios de recapitalização da Caixa Geral de Depósitos.”

“Foi esse o acordo feito com o dr. António Domingues e é a esse respeito que se referem todas as comunicações.”

É a esta contradição que Mário Centeno e Ricardo Mourinho Félix não dão resposta. Quando, no final de outubro, Marques Mendes lançou, na SIC, a suspeita de que ao isentar a CGD do estatuto do gestor público o Governo estaria também implicitamente a isentar os gestores das obrigações declarativas, o gabinete das Finanças respondeu aos jornalistas que “não tinha havido lapso” porque “o escrutínio já era feito” por outra via. “A ideia é a CGD ser tratada com qualquer outro banco e essa foi a razão para que fosse retirada do Estatuto do Gestor Público. Está sujeita a um conjunto de regras mais profundo, como estão todos os bancos. Não faz sentido estar sujeita às duas coisas”, responderam na altura as Finanças.

No dia seguinte, a 26 de outubro, o secretário de Estado, Ricardo Mourinho Félix, reforçou ao Diário de Notícias que a exceção tinha sido intencional: “Sabíamos que isto [o fim do escrutínio público dos rendimentos dos novos gestores da CGD] seria uma consequência da sua retirada do Estatuto do Gestor Público”. E acrescentou uma justificação: “Como todos os outros gestores bancários privados, os gestores da CGD terão obrigações de escrutínio de idoneidade maiores do que os políticos ou os titulares de altos cargos públicos”, mas com a diferença de que, para os gestores da CGD “não haverá acesso do público em geral às suas declarações de rendimentos. Será um processo entre o gestor e o regulador [Banco de Portugal]”.

Foram estas as respostas dadas na altura aos jornalistas, que se apressaram a questionar o Ministério sobre se o Governo tinha isentado, de forma intencional, os administradores da CGD da obrigação de declararem rendimentos. No entanto, a pergunta dos jornalistas, pelo menos a que foi feita pelo Observador, referia-se apenas ao regime de exceção que teria sido permitido aos gestores da Caixa, livrando-os de entregarem as declarações de rendimento e património, em particular ao Tribunal Constitucional, onde podem ser consultadas. A resposta dada então pelas Finanças correspondia apenas a esta questão porque as outras exceções eram conhecidas. A isto, o ministro e o secretário de Estado Mourinho Félix não responderam esta segunda-feira.

Esta segunda-feira, Mourinho Félix reconheceu que, quando o questionaram sobre a isenção dos administradores de declararem rendimentos ao Tribunal Constitucional, disse que não era um lapso. Porquê? “Essa não era uma questão fundamental que nos preocupasse porque o quadro regulatório a que estavam sujeitos já cobria o escrutínio”.

E lembra que, quando foi questionado sobre a obrigação prevista na lei de 1983, sobre o controlo público da riqueza dos titulares de cargos públicos, respondeu que os gestores da Caixa “obviamente não estavam dispensados de qualquer lei que vigorasse e que não tivesse sido alterada”.

Centeno vai divulgar mais informação e SMS trocados com Domingues?

Todas as comunicações privadas que tenho com o dr. António Domingues são comunicações privadas”.

“A acusação de falsas declarações corresponde a um comentário de uma resposta do meu ministério a um requerimento da comissão de inquérito. Já foi esclarecido que a resposta que demos correspondia exatamente ao entendimento que tínhamos desse mesmo requerimento, e nesse contexto referimos a não existência de comunicações no âmbito da questão levantada (as condições de António Domingues para aceitar o cargo de presidente da Caixa). Foi essa a acusação que nos foi feita de falsas declarações. E não corresponde de todo a verdade.”

Questionado sobre o facto de, ao contrário de Domingues, as Finanças nunca terem divulgado à comissão de inquérito a correspondência trocada, os emails e cartas e agora os SMS (pedidos recentemente pelo CDS), Centeno diz que são comunicações privadas. Apesar de tratarem, alegadamente, de assuntos públicos.

O ministro não revela mais do que tem sido a posição do Governo sobre o alcance do acordo fechado com o ex-presidente da Caixa Geral de Depósitos. Reafirma que em todas essas comunicações garantiu que o estatuto do gestor público iria ser alterado e que a CGD iria ficar isenta, sem nenhuma restrição adicional, em questões como remunerações, contratos de gestão, incompatibilidades.

Mário Centeno aguenta-se no cargo?

De tudo isto dei conhecimento ao primeiro ministro e pedi audiência ao Presidente da República a quem tive oportunidade de explicar o processo.

Não pedi a minha demissão — disse obviamente que o meu lugar está sempre à disposição e reiterei isso ao primeiro-ministro. Considero que a ação governativa é uma ação exigente. Este Governo tem pautado a sua ação pelo diálogo, é evidente que o ministro da Finanças tem de estar dotado dessa confiança de todos os agentes económicos e sociais nacionais e quando isso não acontece eu agirei sempre da mesma forma.

Há um ano, neste salão, um colega fez-me a mesma pergunta [se estava fragilizado] sobre o processo orçamental de 2016. A fragilização de um ministro da Finanças faz-se com os resultados que ele tem e que são auditáveis por todos. O assunto que nos traz aqui hoje sustenta-se num dos maiores sucessos de Portugal junto da Comissão Europeia.

“Não encontram um processo na banca europeia que tenha sido concedido com a celeridade e a eficácia deste processo.”

“Podemos dizer que a origem destes ataques tem uma dimensão política que está claramente associada a objetivos que também têm a ver com a fragilização das instituições financeiras e com que aqueles que queriam uma CGD privada e não conseguem compreender como é que podemos ter uma CGD publica e mais forte”.

Apesar das respostas, Mário Centeno reconheceu, de forma implícita, que está numa situação frágil. Não terá sido por acaso, que o ministro começou por revelar as diligências que fez junto de António Costa e do próprio Marcelo Rebelo de Sousa por causa dos ataques de que tem sido alvo a propósito da Caixa. E que lembrou o óbvio: o seu lugar está sempre à disposição do primeiro-ministro.

O ministro não assume contudo que se sente fragilizado. Diz que não pediu a demissão e os “auto-elogios”, de resto, foram uma constante na sua intervenção, congratulando toda a equipa — Domingues incluído — pelo sucesso das negociações feitas “em tempo recorde” com a Comissão Europeia no sentido de a capitalização da Caixa ser considerada uma operação de mercado, sem ajudas de Estado.

Se Centeno estava fragilizado, o comunicado de Marcelo Rebelo de Sousa deixa-o numa posição ainda mais delicada. Esta quarta-feira, o ministro estará no Parlamento a responder aos deputados da Comissão Parlamentar de Finanças.