Carlos Carvalhal, que nesta altura até se encontra sem clube (e que, poucos se recordam, chegou a ser jogador pelo FC Porto), teve um percurso interessante em Portugal que incluiu a conquista da primeira edição da Taça da Liga pelo V. Setúbal ou a passagem por um dos “grandes” (Sporting), esteve na Grécia e na Turquia, aceitou um novo projeto nos Emirados Árabes Unidos e chegou depois a Inglaterra, onde começou no Sheffield Wednesday e atingiu o Swansea na Premier League. Foi nessa condição que, no ano passado, recebeu e venceu o Liverpool que chegaria à final da Liga dos Campeões. E foi também nesse momento que teve uma das tiradas que lhe valeram um estatuto diferente (numa ótica positiva) por parte da imprensa britânica.

Liverpool goleia FC Porto no Dragão por 4-1 e está nas meias-finais da Liga dos Campeões

“O Liverpool é uma equipa de topo, um Fórmula 1. Mas a verdade é que, no meio do trânsito de Londres, às quatro da tarde, esse Fórmula 1 não anda, não consegue andar. Foi isso que tentámos fazer: obrigar o Liverpool a jogar de uma forma que não gosta”, explicou com graça o técnico português. Sobre o bólide em si, Sérgio Conceição não mostrou muitas dúvidas que se tratava de “um dos melhores do mundo”, como admitiu na antecâmara do encontro. “Gosto da dinâmica deles, do modelo de jogo, vai de encontro à forma como vejo o futebol. O controlo do espaço vai ser fundamental”, argumentou. A dúvida passava por saber se conseguiria fazer do Dragão uma VCI em hora de ponta. E, a seguir, fazer do seu topo de gama um Fórmula 1 como o do adversário. Até certo ponto, isso foi uma realidade; depois, acabou por redundar num injusto “atropelamento”.

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A passagem do Liverpool às meias-finais é inteiramente justa. Foi a melhor equipa, a mais eficaz e a que mais conseguiu fazer para seguir em frente. Ponto. O resultado na segunda mão, esse, traz consigo demasiada injustiça. Quem olha para um 4-1 pensa em goleada, em domínio total, quase em passeio. Não foi bem isso que aconteceu. E aquilo que o FC Porto sofreu pode também alastrar-se à restante realidade nacional – entre Primeira League e Premier League, a diferença é tudo menos a língua com que se diz e escreve. Enquanto teve gasolina no tanque, o conjunto azul e branco só ficou atrás no capítulo da eficácia; no decorrer da segunda parte, também com a natural frustração de quem muito tenta e vê o adversário acertar à primeira pelo meio, o depósito ficou vazio. Não foi pela greve, não foi pelos patrões. Por muito competitivo que se queira pintar o Campeonato, as equipas que jogam a Champions têm com sorte um compromisso por mês com uma intensidade parecida a um jogo da Liga dos Campeões; já os ingleses, se tiverem sorte, fazem só um desses por semana. Aí entronca a grande décalage.

Ficha de jogo

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FC Porto-Liverpool, 1-4 (1-6 na eliminatória)

2.ª mão dos quartos de final da Liga dos Campeões

Estádio do Dragão, no Porto

Árbitro: Danny Makkelie (Holanda)

FC Porto: Iker Casillas; Éder Militão, Felipe, Alex Telles; Danilo, Herrera; Corona (Fernando Andrade, 78′), Otávio (Soares, 46′), Brahimi (Bruno Costa, 81′) e Marega

Suplentes não utilizados: Vaná, Maxi Pereira, Óliver Torres e André Pereira

Treinador: Sérgio Conceição

Liverpool: Alisson; Arnold (Gomez, 66′), Matip, Van Dijk, Robertson (Henderson, 71′); Fabinho, Milner, Wijnaldum; Sadio Mané, Salah e Origi (Firmino, 46′)

Suplentes não utilizados:Mignolet, NabyKeita, Shaqiri e Sturridge

Treinador: Jürgen Klopp

Golos: Sadio Mané (26′), Salah (65′), Éder Militão (69′), Firmino (77′) e Van Dijk (84′)

Ação disciplinar: cartão amarelo a Sadio Mané (32′) e Pepe (36′)

A entrada do FC Porto mostrou que não é preciso colocar um autocarro à frente da baliza nem povoar em demasia o meio-campo para fazer das quatro linhas uma hora de ponta capaz de travar um carro de alta cilindrada como o do Liverpool; basta, “apenas”, ter a arte de conseguir surpreender em termos táticos com o posicionamento dos jogadores. E foi isso que aconteceu esta noite com Sérgio Conceição, num conjunto titular onde não entrou Soares mas que teve Corona recuperado e a pisar terrenos mais interiores como segundo avançado, nas costas ou ao lado de Marega, tendo Brahimi e Otávio a partir das alas para o meio sempre que os laterais conseguiam dar profundidade ao jogo ofensivo da equipa. Durante 25 minutos, o jogo foi dos dragões.

Corona, logo a abrir, teve um remate muito perigoso a rasar a trave. Se o ambiente já estava bom, tornou-se infernal. Os adeptos puxaram pela equipa na entrada em campo, a equipa puxou pelos adeptos no arranque do encontro. E seguiu-se uma tentativa de Brahimi ao lado (8′). E um cruzamento com muito perigo da esquerda desviado para canto (9′). E uma bola parada onde Danilo conseguiu tocar de cabeça ao primeiro poste mas Pepe não teve a impulsão suficiente para empurrar para a baliza (10′). E um tiro de primeira de Marega após cruzamento de Alex Telles que passou perto do poste de Alisson (15′). Entre tudo isto, o Liverpool tinha menos bola, menos posse e muito menos verticalidade do que é normal. Klopp mostrava-se preocupado.

Não havia uma única oportunidade perdida pelo FC Porto para tentar chegar rápido à baliza contrária, incluindo lançamentos laterais onde se tentava esticar de imediato a bola para as costas da defesa inglesa. Conceição pedira perfeição e a equipa teve uma resposta muito próxima disso mesmo, faltando apenas a eficácia que faz toda a diferença neste tipo de jogos grandes. A eficácia que o Liverpool mostrou na primeira vez que chegou à área contrária, no primeiro remate tentado à baliza de Iker Casillas: Salah teve demasiado espaço na área (talvez até pelo receio em cometer falta), cruzou de pé direito para o lado contrário e Sané, que surgiu sozinho em frente a Casillas, desviou para golo. Um golo que foi anulado numa primeira instância (sem protestos dos reds) mas validado por ação do VAR – e tudo por causa de um pé de Felipe que colocou em linha o senegalês (26′).

O FC Porto acusou o golo inaugural mas, no início do segundo tempo, ainda tentou um regresso à fórmula original para sonhar com algo mais no jogo. E voltou a entrar melhor, com tentativas do recém entrado Soares e do companheiro de ataque Marega, que terminou esta eliminatória com mais de dez remates feitos sem sucesso. No entanto, com o passar dos minutos, foi faltando alguma coisa. Ou paciência, ou discernimento, ou capacidade física. E o Liverpool, bem mais estável em vantagem, cresceu e colocou o encontro mais a seu jeito para um golpe final que estava apenas a uma distância de dois passes verticais certos – na primeira vez que os vice-campeões europeus conseguiram sair em transição colocando com êxito a bola de saída no espaço que os portistas deixavam, Arnold isolou Salah em profundidade e o egípcio, isolado, aumentou para 2-0 (65′).

Se já era impossível, tornou-se naquele momento impossível… de vez. Ato contínuo, os adeptos colocaram-se de pé. Aplaudiram. Entoaram cânticos. Puxaram pela equipa. O golo de Salah anulou as hipóteses até de muito provavelmente tentar ainda ir à procura do resultado na segunda mão mas houve um reconhecimento por parte dos azuis e brancos de tudo o que tinha sido feito anteriormente pela equipa. E mais se fizeram ouvir quando Éder Militão, no seguimento de um canto apontado por Alex Telles, subiu mais alto na área e cabeceou para o 2-1 quando havia quase meia parte para jogar. Durante 12 minutos, o Dragão ouviu aquilo que se vê em especial desde que Sérgio Conceição assumiu o comando dos azuis e brancos: a comunhão contínua entre equipa, jogadores e adeptos, qualquer que seja o resultado, o contexto ou a classificação. Aos 77′, a onda acabou.

Jordan Henderson, que entrou para agarrar no jogo sozinho a meio-campo, teve demasiado espaço numa saída à direita, não viu ninguém a sair na pressão ao portador da bola e cruzou de forma milimétrica para o desvio oportuno de Firmino, o avançado que faltava (e que até começou o jogo no banco, entrando ao intervalo para o lugar de Origi) e que quis também deixar a sua marca no encontro. A seis minutos do final, na sequência de um canto, foi a vez de Van Dijk aproveitar um desvio ao primeiro poste de Mané para apontar o 4-1. Ao longo da eliminatória, e sem culpas nos golos sofridos, Casillas fez duas defesas e viu seis vezes a bola entrar na sua baliza. A eficácia fez a diferença. Mas a intensidade, ou a falta dela no segundo tempo, não ficou atrás.