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Cristiano Ronaldo estreou-se no Sporting em 2002, foi para o Manchester United em 2003, mudou-se para o Real Madrid em 2009 e assinou pela Juventus em 2018. Pelo meio, foi o primeiro capitão a ser campeão europeu pela Seleção Nacional. São 20 anos, duas décadas, sempre ao mais alto nível. E o futebol, como tudo na vida, muda muito em 20 anos. Mas Cristiano Ronaldo adaptou-se. E quem o diz é o próprio.
“Não sou o mesmo jogador que era há 18 anos, há dez ou há cinco. Vamo-nos adaptando. A inteligência de um jogador vê-se na capacidade que tem em adaptar-se a uma realidade diferente. O jogo está diferente, a minha capacidade está diferente, a maturidade é diferente. Um jogador capaz de ter longevidade é o que consegue adaptar-se aos diferentes momentos do futebol. Se vocês analisarem, e os números falam por si, tenho-me adaptado sempre, dos 18 aos 36 anos”, disse o jogador na antevisão da partida contra a Hungria, ainda esta segunda-feira, deixando desde logo a ideia de que sabe que não é o mesmo Cristiano Ronaldo do Euro 2016 ou até mesmo do Mundial 2018.
Mas adapta-se sempre. E esta terça-feira, em Budapeste, voltou a mostrar uma descontração digna de um jogador de 18 anos misturada com a frieza dos 36 que tem. Depois de uma época em que falhou quase todos os objetivos coletivos com a Juventus, Cristiano Ronaldo chegou à Seleção para ter desde já uma semana que lhe salvou a época e que pode ainda tornar-se uma das mais importantes da carreira. E tudo começou quando se juntou à equipa de Fernando Santos.
Um ano em que a Juventus não foi campeã, não ganhou a Liga dos Campeões e não convenceu ninguém
Existem campeonatos europeus que, devido à história recente, têm um vencedor anunciado ainda antes de a época começar: o Bayern Munique na Alemanha, o PSG em França e a Juventus em Itália. Nesta temporada, porém, dois fugiram à regra e viram Lille e Inter Milão roubarem os troféus aos crónicos campeões. E na Juventus, ainda mais do que no PSG, esse facto pode mesmo significar o fim de um ciclo e o início de outro.
O ano começou com uma mudança de treinador, tal como tinha acontecido na temporada anterior: Andrea Pirlo, cuja experiência enquanto técnico se limitava simplesmente a alguns meses nos Sub-23 bianconeri, substituiu Maurizio Sarri e prometeu restaurar a identidade de um clube que parecia perdido entre a hegemonia interna e o fracasso europeu. Sem contratações sonantes mas com reforços importantes e interessantes como Arthur, McKennie, Kulusevski e Chiesa e ainda o empréstimo de Morata, a Juventus voltou a apontar baterias à reconquista da Liga dos Campeões e descurou a Serie A. O problema foi que, mesmo na liga milionária, nada correu bem.
A equipa de Pirlo foi eliminada logo nos oitavos de final pelo FC Porto e só conseguiu garantir a presença na Liga dos Campeões da próxima temporada na última jornada do campeonato, beneficiando de um empate do Nápoles contra o Verona. Apesar de ter conquistado a Taça de Itália e a Supertaça italiana, esta versão da Juventus desenhada por Pirlo nunca teve uma ideia de jogo, nunca conseguiu mostrar exatamente qual era o objetivo de cada movimento e nunca soube elevar-se. E Cristiano Ronaldo, ao longo de um ano inteiro, acabou perdido nisso mesmo.
O internacional português foi um dos mais criticados depois da eliminação frente ao FC Porto, pela forma como saltou na barreira durante o livre decisivo de Sérgio Oliveira, e voltou a receber comentários menos positivos pelo mesmo motivo depois de se baixar e permitir um golo também de livre contra o Parma. Ainda assim, Ronaldo conseguiu terminar a época como melhor marcador da Serie A, algo que ainda não tinha alcançado desde que chegou a Itália. Um registo que não estancou os rumores de que o capitão da Seleção Nacional está de saída da Juventus.
Pirlo já saiu, Massimiliano Allegri já voltou e existe novamente a ideia, pela terceira vez nos últimos três anos, que a Juventus vai começar um novo projeto. A dúvida, ou pelo menos a dúvida que se desdobra em duas, é a seguinte: será que Ronaldo faz e quer fazer parte desse novo projeto? Por agora, ninguém sabe. Era praticamente certo que o avançado português já tinha decidido deixar os bianconeri caso a qualificação para a Liga dos Campeões não tivesse ficado assegurada, já que mantém a liga milionária como uma prioridade na carreira, mas tudo ficou menos previsível com essa garantia após o quarto lugar da Serie A.
Em Allegri, Cristiano Ronaldo vai reencontrar o treinador que o recebeu no clube italiano e volta a ter em perspetiva uma temporada em que o objetivo é recuperar o Scudetto e voltar a lutar de forma prática pela Liga dos Campeões. Mas todas essas decisões, como o próprio disse, estão adiadas até ao final do Euro 2020. “Já jogo a um alto nível há 18 anos. Isso nem me faz cócegas. Se eu estivesse a começar, se tivesse 18 ou 19 anos, se calhar nem dormia e ficava à noite a pensar no meu futuro. Mas como devem calcular, agora com 36 anos… O que vier vai ser para bom, independentemente de ficar ou sair. O foco mais importante é na Seleção. Uma competição desta magnitude não se joga todos os dias. É o meu quinto Europeu mas para mim é como se fosse o primeiro”, disse o capitão da Seleção também na antevisão da partida contra a Hungria.
A Seleção: uma zona de conforto, entre o amigo Pepe e a boa disposição nos treinos
Ora, foi neste contexto, depois de uma época pouco feliz ao serviço da Juventus, que Cristiano Ronaldo chegou à concentração da Seleção Nacional. Uma concentração que começou na Cidade do Futebol, que teve dois encontros particulares (Espanha e Israel) e que se mudou depois para Budapeste, já com a preparação da fase de grupos do Europeu a decorrer. E para Ronaldo, cada vez mais, chegar à Seleção é chegar a uma zona de conforto.
A trabalhar com uma Federação Portuguesa de Futebol que dá total e completa prioridade ao bem-estar físico e psicológico dos jogadores, o avançado de 36 anos é o ex libris disso mesmo. Ronaldo é o líder dentro e fora de campo, é a extensão de Fernando Santos e está sempre protegido de todas as eventuais circunstâncias, tendo total liberdade e à vontade para designar o que quer ou não fazer. Exemplo disso mesmo foi o facto de, logo após o jogo particular contra Espanha em Madrid, ter pedido autorização para ficar na capital espanhola e celebrar o quarto aniversário de Eva e Mateo, os filhos gémeos.
Os treinos, tanto na Cidade do Futebol como já em Budapeste, são o exemplo disso mesmo. O capitão da Seleção surge no relvado sempre sorridente, algo que nem sempre acontece na Juventus, e é um dos principais dinamizadores da boa disposição dentro do grupo. Quase sempre acompanhado por Pepe, que é claramente o grande companheiro de Ronaldo no atual plantel de Fernando Santos — ainda que também esteja curiosamente próximo de João Palhinha –, o avançado é sempre dos primeiros a sair do túnel e começa a brincar com alguma bola assim que a encontra. Provoca os elementos do staff da Seleção, conversa com o selecionador e, como aconteceu no último treino no Puskás Arena, salta até para as cavalitas de Pepe, numa imagem que fez parecer que tem menos 15 anos.
O particular com Israel e a importância do golo logo depois do livre desastroso
Depois do particular contra a Espanha em Madrid, que acabou sem golos, Portugal recebeu Israel em Alvalade, naquele que foi o último jogo de preparação para o Euro 2020. Na véspera da viagem para Budapeste, onde montaria o quartel-general para a fase se grupos da competição, a Seleção goleou uma equipa inferior, coletiva e individualmente, e assinou uma boa exibição.
Nesse jogo, ainda que se tenha tratado de um particular, Cristiano Ronaldo acabou por dar um passo importante para recuperar alguma confiança e continuar a afastar os momentos menos positivos para procurar o sucesso. A cerca de cinco minutos do intervalo, num livre direto, o capitão português pegou muito mal na bola e atirou-a para a bancada, numa imagem para lá de rara no jogador. Ainda antes do final da primeira parte, porém, conseguiu marcar e acrescentar mais um golo à conta que leva na Seleção, apagando a memória do livre desastroso instantes antes.
Em retrospetiva e mesmo sem uma proximidade temporal semelhante, a verdade é que também isso aconteceu esta terça-feira contra a Hungria. Na primeira parte, depois de um cruzamento de Bruno Fernandes na esquerda, Ronaldo falhou de forma inacreditável um golo feito quando já só tinha a baliza deserta pela frente. Ficou incrédulo, colocou as mãos à cabeça e vingou-se nos últimos instantes, com uma grande penalidade e um golo na sequência de uma enorme combinação com Rafa e uma finta sobre o guarda-redes.
Seis recordes em 90 minutos, a possibilidade de chegar ao maior de todos e o sonho de voltar a ganhar o Europeu
Com esta vitória perante a Hungria, Portugal colocou-se em posição privilegiada para passar aos oitavos de final do Euro 2020, apesar de ainda ter de defrontar Alemanha e França, e vai continuar a caminhada que tem como objetivo final voltar a conquistar a competição. Em 90 minutos e com dois golos, Cristiano Ronaldo bateu mais seis recordes:
- tornou-se o primeiro jogador de sempre a participar em cinco fases finais da competição, a primeira das quais em Portugal com 17 anos em 2004 e depois em 2008 (Suíça/Áustria), em 2012 (Polónia/Ucrânia), em 2016 (França) e 2020;
- ultrapassou também o número de jogos realizados em fases finais de grandes competições (neste caso Europeu e Mundial) de Bastian Schweinsteiger, antigo médio da Alemanha, juntando os 22 jogos em cinco Europeus aos 17 encontros entre os Mundiais de 2006 (Alemanha), 2010 (África do Sul), 2014 (Brasil) e 2018 (Rússia), a única prova que ainda não ganhou depois do Europeu e da Liga das Nações;
- tornou-se o melhor marcador de sempre em fases finais de Europeus, superando os nove golos de Michel Platini numa só edição, no fatídico ano (pelo menos para as cores nacionais) de 1984: marcou dois em 2004, um em 2008, três em 2012, três em 2016 e mais dois em 2020 – que ainda agora começou;
- conseguiu mais um feito histórico no plano coletivo, passando a ser o jogador com mais vitórias em jogos da fase final do Campeonato da Europa (12), superando os 11 triunfos dos espanhóis Cesc Fàbregas e Andrés Iniesta – e mais uma vez como supracitado, ainda agora começou a edição de 2020;
- já tinha bisado à Hungria em 2016, tinha bisado em 2012 diante da Holanda e voltou agora a marcar dois golos no mesmo encontro frente à formação magiar, passando assim a ser o primeiro na história de fases finais de Europeus a bisar em três edições, superando Gerd Müller (1972), Michel Platini (1984), Rudi Völler (1984 e 1988), Wayne Rooney (2004) e Antoine Griezmann (2016);
- e conseguiu também tornar-se o primeiro jogador europeu com dois ou mais golos em pelo menos quatro fases finais do Europeu, ultrapassando o registo do sueco Zlatan Ibahimovic (2004, 2008 e 2012) com dois golos em 2004, três golos em 2012, três golos em 2016 e agora dois golos (pelo menos) em 2020.
Por conquistar e completamente à mão de semear, está o recorde mais apetecível de todos: o que implica superar o iraniano Ali Daei e tornar-se o melhor marcador de sempre de seleções. Neste momento, depois dos dois golos que marcou à Hungria, só lhe faltam três. E entre Euro 2020, qualificação para o Mundial 2022, jogos particulares e a fase final desse Mundial, onde ainda deve marcar presença quase com 38 anos, esse registo irá obviamente chegar.
Ronaldo marcou dois golos. Ronaldo bateu seis recordes. Já não há números para descrever Ronaldo
Depois de uma época ao nível de clubes em que falhou os principais objetivos e só encontrou algum alento no facto de ter sido o melhor marcador da Serie A, Cristiano Ronaldo chegou à Seleção Nacional e já bateu seis recordes, tem um outro mesmo ali e deu o primeiro passo para atingir o sonho de voltar a conquistar o Campeonato da Europa. Caso aconteça, esta será uma das melhores temporadas da carreira do capitão português. E tudo mudou numa semana.