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epa09416519 Taliban fighters are seen on the back of a vehicle in Kabul, Afghanistan, 16 August 2021. Taliban co-founder Abdul Ghani Baradar, on 16 August 2021, declared victory and an end to the decades-long war in Afghanistan, a day after the insurgents entered Kabul to take control of the country. Baradar, who heads the Taliban political office in Qatar, released a short video message after President Ashraf Ghani fled and conceded that the insurgents had won the 20-year war.  EPA/STRINGER
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Os acontecimentos dos últimos dias mostram a derrota dos EUA, que abandonam apressadamente um país entregue aos seus inimigos, mas também contam a história de como os europeus saíram atrás dos americanos sem terem sido consultados ou terem podido fazer diferente.

STRINGER/EPA

Os acontecimentos dos últimos dias mostram a derrota dos EUA, que abandonam apressadamente um país entregue aos seus inimigos, mas também contam a história de como os europeus saíram atrás dos americanos sem terem sido consultados ou terem podido fazer diferente.

STRINGER/EPA

A UE olha para o Afeganistão e vê Biden igual a Trump

As imagens de Cabul só aprofundam a crise na relação transatlântica. Se Trump insultou os europeus, Biden ignorou-os e desiludiu-os. É o caminho para a autonomia europeia? Ensaio de Henrique Burnay.

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“Não foi a União Europeia que decidiu deixar o Afeganistão. Essa decisão foi tomada pelo Presidente [Donald] Trump e implementada pela administração americana seguinte. E poderia ter sido melhor gerida, com certeza”, disse por estes dias Jospeh Borrel, vice-presidente da Comissão Europeia e Alto-Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança da União Europeia a um jornalista afegão em Bruxelas. Cristalino.

Quando os Estados Unidos da América foram atacados pela Al-Qaeda, a 11 de Setembro de 2001, o governo americano invocou, pela primeira e única vez na História, o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte, que considera que o ataque a um membro da NATO é um ataque a todos. Foi assim que os países europeus entraram na Guerra do Afeganistão. Por solidariedade e dever, e não tanto por causa da sua própria avaliação do risco ou do interesse da missão. Embora existisse. Agora, quando os Estados Unidos da América decidiram sair, não pediram apoio nem se organizaram com os aliados europeus. Foi uma decisão unilateral. De todas as consequências da retirada e evacuação (e fuga) dos americanos do Afeganistão, este afastamento entre os aliados transatlânticos será, muito provavelmente, o facto que terá maiores consequências para a Europa. E para a NATO.

Para o resto do mundo, em particular para os Estados Unidos e para a Europa, o resultado futuro desta retirada dependerá, em grande parte, do respaldo que o novo regime afegão volte a dar, ou não, a grupos terroristas que ataquem a Europa e a América

Os Estados Unidos não entraram no Afeganistão por razões humanitárias. Entraram para destruir a ameaça terrorista que a Al-Qaeda representava e que os Talibãs acolhiam no seu território. De resto, primeiro exigiram que os Talibãs lhes entregassem Bin Laden, só depois disso não acontecer é que invadiram. E saem apesar das circunstâncias humanitárias que deixam atrás de si. Foi isso que o Presidente Biden quis recordar quando afirmou que o objectivo da missão estava cumprido e que nunca tinha sido propósito americano construir um estado viável (nation building) naquele país.

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É sabido que Joe Biden pensa assim há muito tempo, mas o presidente americano parece ter confundido a sua opinião com os factos. Se fosse apenas para destruir a Al-Qaeda, não haveria nenhuma razão para os americanos e os aliados terem ficado depois da morte de Ossama Bin Laden, em 2011. E, no entanto, ficaram mais dez anos e dois presidentes e para além dos biliões de dólares e de euros e dos mortos. Há vários cálculos, nem todos exactos, mas os números conhecidos dão conta de mais de 2 biliões de dólares, 2.500 mortos americanos, 1.100 entre os aliados, 70.000 militares e polícias afegãos e 50.000 civis. Além de mais de 50.000 combatentes talibãs.

Foi uma guerra muito longa, muito pesada em custos humanos e materiais, e se os Talibãs forem, como a maioria dos analistas estima que serão, tão brutais como foram no passado, para os afegãos só valeu a pena enquanto durou. A menos, claro, que se tenha a esperança de Mario Draghi, que acredita que a morte de 54 soldados italianos não foi em vão. “Eles defenderam os direitos fundamentais, os direitos das mulheres e evitaram ataques terroristas … fazendo o bem por meio de milhares de atos humanitários que, tenho a certeza, deixarão uma marca profunda na sociedade afegã”. Ouvindo e lendo os relatos dos afegãos, essa esperança parece ter pouco fundamento, mas, aparentemente, as pessoas, seja qual for o seu contexto cultural, querem, de facto, liberdade. Não se trata de impor o modelo ocidental, trata-se de não ser relativista e achar que alguns povos não estão feitos para serem livres ou democráticos. Nós, portugueses, devíamos ser cautelosos com esse argumento. Já houve um tempo em que se dizia isso precisamente sobre os povos católicos do sul da Europa.

Para o resto do mundo, em particular para os Estados Unidos e para a Europa, o resultado futuro desta retirada dependerá, em grande parte, do respaldo que o novo regime afegão volte a dar, ou não, a grupos terroristas que ataquem a Europa e a América. Como no passado.

epa09417420 Taliban fighters patrol in Jalalabad, Afghanistan, 17 August 2021. Taliban co-founder Abdul Ghani Baradar on 16 August  declared victory and an end to the decades-long war in Afghanistan, a day after the insurgents entered Kabul to take control of the country. Baradar, who heads the Taliban political office in Qatar, released a short video message after President Ashraf Ghani fled and conceded that the insurgents had won the 20-year war.  EPA/STRINGER

Ainda os soldados americanos não tinham partido e já o governo apoiado pelos aliados desertava e os talibãs conquistavam, sem particular esforço, a capital afegã

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Quando a evacuação americana e aliada começou, havia apenas 3.000 tropas do exército americano no terreno, sem vítimas mortais há mais de um ano e meio. Do lado dos aliados, havia mais. Não havia paz, nem nada que se parecesse, mas não estava em curso uma guerra de combates intensos.

A declaração de que o objectivo estava cumprido e era hora de sair é difícil de compreender. Sobretudo quando ainda os soldados não tinham partido e já o governo apoiado pelos aliados desertava, os talibãs conquistavam, sem particular esforço, a capital afegã, milhares de pessoas tentavam desesperadamente fugir e os americanos abandonavam à pressa a sua embaixada. Poucas missões de sucesso se terão parecido tanto com um enorme fracasso.

Juntos à chegada, separados na saída

Em 2003, quando os Estados Unidos invadiram o Iraque com o pretexto de que Saddam Hussein tinha armas de destruição maciça e apoiava o terrorismo, houve vários países que se recusaram a acompanhar Bush e os americanos, entre eles França e Alemanha. Mas, em 2001, não. Aquando do ataque ao Pentágono e às Torres Gémeas, nenhum aliado europeu recusou apoiar os americanos na ida para o Afeganistão. Isso, agora, valeu-lhes de pouco.

Em Berlim, Angela Merkel terá dito que nunca seria possível às forças alemãs ou europeias, que estiveram sempre dependentes das decisões do governo americano, terem um papel autónomo. E reconheceu que o caos causado pela saída americana foi “amargo, dramático e horrível”. Decepcionados e impotentes, portanto.

“Parece que a NATO foi completamente dominada pelas decisões unilaterais americanas. Em primeiro lugar, a decisão de Trump de começar a falar com os Talibãs sobre a saída e, em seguida, a decisão de Biden de definir um calendário”
Lord Peter Ricketts, ex-conselheiro de segurança nacional do Reino Unido, ao Financial Times

Segundo as informações públicas partilhadas pela Casa Branca, Boris Johnson foi o primeiro aliado com quem Biden falou, três dias depois do início da retirada caótica e da derrocada do governo afegão. E fê-lo porque o primeiro-ministro britânico é, este ano, o líder do G7. Não foi por nenhuma questão de alinhamento estratégico ou sequer cortesia. Com a chanceler alemã só falou no dia seguinte.

Se Donald Trump insultou os europeus, Biden ignorou-os. O anterior presidente disse publicamente que a Alemanha estava no bolso da Rússia, considerou a NATO obsoleta, que a Europa era um inimigo em matéria de política comercial e, segundo relatos confidenciais, terá mesmo chamado estúpida a Angela Merkel, em conversas telefónicas entre os dois. Joe Biden não fez nada disso. Assim que foi eleito declarou que a América estava de volta e escolheu a Europa como destino da sua primeira viagem ao estrangeiro, mas o reforço dos laços transatlânticos ficou-se por aí. Na hora de decidir executar a decisão de saída do Afeganistão, alterando apenas ligeiramente o calendário que Trump tinha acordado, fê-lo sem perguntar aos aliados ou sequer coordenar-se com eles.

Ian Bremmer, o influente director do Eurasia Group, considerou que “a decisão de como e quando partir foi tomada unilateralmente pelos americanos, e não é assim que se tratam os aliados”. O Secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, tentou ser eufemístico, sem grande sucesso: “Entrámos juntos, ajustámos a nossa presença juntos e agora partimos juntos, após consultas entre todos os 30 aliados,” afirmou. Mas também reconheceu que “a decisão dos EUA, é claro, moldou ou criou as condições para a decisão da NATO”. Estamos conversados sobre quão partilhada foi a resolução de partir. Como, de resto, é amplamente reconhecido.

Lord George Robertson, o britânico que era secretário-geral da NATO precisamente quando foi accionado o artigo 5.º, considerou que  “o princípio de ‘entrar juntos, sair juntos’ parece ter sido abandonado tanto por Donald Trump quanto por Joe Biden”. Lord Peter Ricketts, ex-conselheiro de segurança nacional do Reino Unido, confirma. “Parece que a NATO foi completamente dominada pelas decisões unilaterais americanas. Em primeiro lugar, a decisão de Trump de começar a falar com os Talibãs sobre a saída e, em seguida, a decisão de Biden de definir um calendário”, disse por estes dias ao Financial Times.

Há um mês, Joe Biden dizia que não havia qualquer hipótese de vermos cenas de pessoas a serem retiradas de helicóptero da embaixada americana em Cabul, como em 1975 em Saigão. Afinal, foi exactamente isso que aconteceu. Agora, em entrevista a George Stephanopoulos da ABC News, o presidente americano diz: “A ideia de que era possível sair sem caos (…) não sei como é que isso aconteceria”. Um dos dois Joe Bidens mentiu descaradamente. Aos americanos, aos aliados e aos afegãos.

epa09416575 A US Black Hawk military helicopter fly over the Kabul Airport, after Taliban took control of Kabul, Afghanistan, 16 August 2021. Several people were reportedly killed at Kabul airport on 16 August as Afghans were attempting to hang on a moving US military plane leaving the airport. Taliban co-founder Abdul Ghani Baradar earlier in the day declared victory and an end to the decades-long war in Afghanistan, a day after the insurgents entered Kabul to take control of the country. Baradar, who heads the Taliban political office in Qatar, released a short video message after President Ashraf Ghani fled and conceded that the insurgents had won the 20-year war.  EPA/STRINGER

As comparações com a retirada de Saigão, em 1975 — que Biden recusou terminantemente em julho — foram imediatas

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A Europa ataca

O Presidente dos Estados Unidos da América pode recusar-se a reconhecer que a saída está a ser desastrosa e que poderá ter consequências graves interna e externamente, mas não está acompanhado pelos os aliados.

Por estes dias, uma das reacções mais violentas veio de um dos aliados mais próximos. No Reino Unido, que já não está na União Europeia mas está na NATO, Tom Tugendhat, presidente da comissão parlamentar de Negócios Estrangeiros, deputado pelo partido conservador, ex combatente no Afeganistão e Member of the Order of the British Empire, a terceira mais importante condecoração britânica, foi demolidor. Falou da sua experiência militar no Afeganistão, dos mortos em combate, das raparigas que passaram a ir à escola, chamou abandono à decisão americana, falou de derrota e disse que um comandante em chefe que não esteve na guerra não pode chamar cobardes a quem lutou com risco de vida. E disse ainda que, de futuro, os aliados terão de garantir que não estão dependentes de um só.

Num discurso de sete minutos, comoveu, explicou o verdadeiro impacto da presença militar aliada no Afeganistão, arrasou Joe Biden e pôs em causa a fiabilidade do aliado americano. Enquanto isso, o presidente dos Estados Unidos da América, confrontado com a imagem de afegãos que se agarravam aos aviões militares que descolavam de Cabul nos últimos dias e acabavam por cair já durante o voo, numa imagem que faz lembrar os corpos em queda das Torres Gémeas em chamas, dizia que “isso foi há quatro ou cinco dias”. É preciso ser muito ingénuo, ou ter muita convicção, para acreditar que uma potência sai incólume daqui.

Vários líderes europeus têm falado sobre a decisão de Biden. Poucas vezes os europeus criticaram tão convicta e publicamente o aliado americano.

Na Europa continental ouvem-se críticas igualmente fortes ao processo, à falta de coordenação e aos resultados. “A operação no Afeganistão iria sempre terminar em algum momento, nunca iria durar para sempre, mas a maneira como aconteceu foi humilhante e prejudicial para a Nato”, disse o Lord Peter Ricketts. E não é, de longe, o único. Armin Laschet, herdeiro de Angela Merkel na liderança da CDU e principal candidato à sua sucessão na chancelaria alemã, não hesitou em considerar a retirada o maior fiasco da história da NATO. O presidente da comissão parlamentar de negócios estrangeiros do Bundestag, Norbert Röttgen, afirmou que “a retirada antecipada foi um erro de cálculo sério e de longo alcance do actual governo [americano, que] causa um dano fundamental à credibilidade política e moral do Ocidente”. Na mesma linha, o ministro da Defesa da Letónia explicou que a retirada gerou caos, que o caos gera sofrimento adicional e que, de futuro, seria pouco provável que se voltassem a repetir missões de longa duração.

Ou seja, os americanos mostraram que não estão disponíveis para ir além dos seus interesses directos e imediatos, e os aliados ficaram a sabê-lo. “O Ocidente, e a Europa em particular, está a mostrar ser menos forte globalmente”, acrescentou o ministro báltico. Exactamente de um daqueles lugares que contam com os americanos para manter os russos à distância.

Em Portugal, o Ministro da Defesa escreveu no Diário de Notícias que “as notícias e imagens, profundamente preocupantes e trágicas, que nos chegam do Afeganistão lembram-nos novamente de que nos tempos que vivemos nenhuma parte do globo se pode considerar imune às grandes dinâmicas internacionais”. Considerando que as notícias e imagens a que João Gomes Cravinho se refere são da retirada apressada dos aliados e dos afegãos em desesperada tentativa de fuga e não, ainda, do regresso das atrocidades que os Talibãs costumavam cometer contra crianças, mulheres e homens, o ministro da Defesa português só pode estar a querer dizer que a saída americana foi responsável por um cenário que o preocupa.

Poucas vezes os europeus criticaram tão convicta e publicamente o aliado americano. Resta saber o que se segue.

Refugiados e terroristas, dois problemas europeus

Tal como o seu antecessor, com quem afinal terá mais em comum do que os europeus gostariam, Joe Biden parece acreditar que os interesses estratégicos dos Estados Unidos passam pela saída de cena de algumas geografias, como o Médio Oriente e o Afeganistão, para se concentrarem na Ásia e no Pacífico. Isso ao mesmo tempo que a China expande a sua influência no resto do mundo, em geral, e nesses lugares em particular. Poucas semanas antes da chegada dos Talibãs a Cabul, o Mullah Abdul Ghani Baradar, um dos líderes do grupo e potencial futuro presidente do Afeganistão, encontrou-se em Tianjin, no norte da China, com o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, a quem terá assegurado que o Afeganistão dos Talibãs não seria utilizado como base para ataques terroristas contra a China, nomeadamente pelo East Turkestan Islamic Movement, combatentes uigures que se opõem à repressão chinesa em Xinjiang. No papel, os Talibãs fizeram promessa idêntica aos americanos. E embora não se tivessem obrigado a um cessar fogo, também não era suposto conquistarem militarmente o país, e não cumpriram.

Alguns acreditam que os talibãs se moderaram ou modernizaram e fazem fé nas suas declarações de que as mulheres terão direitos “no contexto da lei islâmica”

REUTERS

Há muitos especialistas, militares, políticos e comentadores a favor da decisão de Joe Biden. Falam do acordo que Trump já tinha negociado, dizem que era preciso acabar com uma guerra que durava para sempre, recordam que o Afeganistão é um cemitério de Impérios, invocam a rendição sem combate dos afegãos e acreditam que o importante no confronto com a China é ter a economia saudável e o exército disponível. A isso tudo acrescentam que o Médio Oriente e as rotas do petróleo já não interessam, num mundo dominado pela economia da transição climática. E ainda há os que acreditam que os talibãs se moderaram ou modernizaram, e os que fazem fé nas suas declarações de que as mulheres terão direitos “no contexto da lei islâmica”.

Caberá aos americanos avaliar se Joe Biden é ou não um bom presidente e se a sua é uma boa estratégia. As sondagens diziam, até há dias, que os eleitores queriam a retirada. Embora, entretanto, e perante as tais imagens de que fala o ministro da Defesa português, muitos estejam a mudar de opinião. Mas Biden acredita que, assim que elas saírem da abertura dos telejornais, a opinião pública esquecerá o tema e ficará agradecida pelo fim da guerra. Na Europa, porém, o problema pode demorar mais tempo a desaparecer.

A principal voz a falar em nome da União Europeia tem sido o vice-presidente da Comissão e Alto-Representante, Joseph Borrel, que anunciou um reforço provisório da delegação europeia em Cabul, que está a trabalhar para garantir o asilo imediato a cerca de 400 afegãos que colaboravam com os europeus e, mais revelador, que vai ser necessário falar com os talibãs, que são quem, de facto, estará no poder. Deles dependerá a evolução das duas maiores preocupações dos líderes europeus: migrações e terrorismo.

A primeira preocupação é com o risco de um enorme fluxo de refugiados – não são imigrantes, são refugiados; não fogem por razões económicas, fogem porque temem, com razão, pela sua vida. É certo que, antes de chegarem à Europa, terão de passar por vários países e os refugiados tendem a ficar no local seguro mais próximo de casa, mas a verdade é que os afegãos já são o segundo maior grupo de requerentes de asilo na Europa, logo a seguir aos sírios. Considerando o desespero a que assistimos nos últimos dias, é muito provável que esse número cresça.

E é verdade que, no meio de uma avalanche de gente, será difícil saber quem é quem e vem porquê. Isso, previsivelmente, preocupa os líderes europeus. Por mais que afirmem que é nosso dever acolher quem foge das perseguições e das violações aos direitos humanos, os governantes europeus acreditam que os seus eleitores não gostam de ver muitos estrangeiros a chegar desordenadamente aos seus países. De resto, prometem acolher refugiados – centenas, não milhares -, ao mesmo tempo que falam, como Macron falou, da necessidade de evitar alimentar novas rotas de imigração ilegal.

epa09417769 Afghans including those who worked for the US, NATO, Europe Union and the United Nations in Afghanistan wait outside the Hamid Karzai International Airport to flee the country, after Taliban took control of Kabul, Afghanistan, 17 August 2021. Several people were reportedly killed at Kabul airport on 16 August as Afghans were attempting to hang on a moving US military plane leaving the airport. Taliban co-founder Abdul Ghani Baradar earlier in the day declared victory and an end to the decades-long war in Afghanistan, a day after the insurgents entered Kabul to take control of the country. Baradar, who heads the Taliban political office in Qatar, released a short video message after President Ashraf Ghani fled and conceded that the insurgents had won the 20-year war.  EPA/STRINGER

Milhares de afegãos que trabalharam e apoiaram as forças norte-americanas, europeias e da NATO juntaram-se no aeroporto de Cabul na esperança de poderem fugir do país com os aliados

STRINGER/EPA

A outra preocupação europeia é o terrorismo. Há algum tempo que quase não se fala do tema na Europa. Depois dos atentados de Paris e de Bruxelas, que não foram assim há tantos anos, a derrota do Estado Islâmico, no final de 2017, tirou o assunto do centro das atenções. Como se subitamente estivesse assegurada uma paz perpétua com os radicais islâmicos. Não é provável. Mas é possível recordar que o Estado Islâmico nasceu na retirada americana do Iraque e deu origem a ataques terroristas sobretudo na Europa, não nos Estados Unidos da América.

Sozinhos e rodeados de problemas

Em Dezembro de 2002, Romano Prodi, o então presidente da Comissão Europeia, dizia que o objectivo da política externa e de vizinhança era criar um anel de amigos (a ring of friends) em torno da União Europeia. Apesar dos ataques terroristas do 11 de Setembro terem, então, acontecido havia pouco mais de um ano, o italiano que antecedeu Durão Barroso acreditava que a União Europeia poderia prometer “tudo menos as Instituições” a alguns dos vizinhos que sabiam que nunca iriam entrar, mas que queriam estar tão próximos quanto possível da Europa. Basta olhar à volta do continente para ver onde foi parar esse círculo de amigos.

A Europa, de Prodi e não só, acreditou sempre que podia ser uma potência normativa. Que as suas boas leis, boas práticas, bons exemplos, e o incentivo do seu dinheiro, seriam a melhor arma de política externa. E que seria suficiente. A Turquia é, de todos os casos, aquele que melhor ilustra o falhanço dessa convicção. A Bielorússia, a invasão da Crimeia ou a Primavera Árabe também dão bom testemunho dessa ilusão.

Donald Trump tinha dito aos europeus, praticamente em forma de insulto, que não podiam continuar à boleia dos americanos e que tinham de gastar mais com a sua defesa. Joe Biden disse-lhes que iam ser amigos para sempre e depois virou as costas. Face à retirada americana e à insuficiência do seu poder normativo, os europeus são agora confrontados com a necessidade de assumirem maiores e mais pesadas responsabilidades pela sua segurança. É a realidade a impor-se, e está a relançar o debate sobre a autonomia ou não dos europeus face aos americanos.

Os europeus não querem intervenções militares e menos ainda ocupações, mas horrorizam-se com a brutalidade do regime de Lukashenko, dos talibãs e com a invasão russa da Crimeia. Querem receber refugiados, mas votam em quem promete parar as migrações. São uma espécie de alta burguesia das relações internacionais.

Emmanuel Macron, que liderará a presidência rotativa da União Europeia no próximo semestre, tem sido o grande entusiasta da “autonomia estratégica” europeia. Nunca ninguém definiu exacta e definitivamente o conceito, mas percebe-se o que quer dizer: os europeus e os americanos não têm os mesmos interesses, por vezes têm interesses divergentes; os europeus não devem seguir sempre os americanos; e, em vez da NATO, deveriam ter uma capacidade militar própria comum. Há mesmo quem acredite que, no limite, a Europa não tem de ser aliada dos Estados Unidos face à China e que pode mesmo ser uma potência neutra entre as duas potências.

Claro que a autonomia estratégica não tem de ser assim. Não tem de ser oposição. Os europeus não precisam de ser os “não alinhados” do século XXI. Pode querer dizer que a Europa tem de ser capaz de assumir responsabilidades pela sua segurança, e isso implica ter uma capacidade militar comum disponível e estar disposta a usá-la, mesmo sem a protecção americana, ainda que até possa ser no âmbito da NATO. Mas será que os europeus, além do dinheiro, têm a disponibilidade necessária para isso?

Os europeus não querem intervenções militares e menos ainda ocupações, mas horrorizam-se com a brutalidade do regime de Lukashenko, dos talibãs e com a invasão russa da Crimeia. Dizem ser hipócrita o comércio com países que desrespeitam ostensivamente os direitos humanos, mas consideram as sanções uma punição injustificada das populações. Querem receber refugiados, mas votam em quem promete parar as migrações. Os europeus são uma espécie de alta burguesia das relações internacionais. Cheios de dificuldades que os restantes adorariam ter.

Lord George Robertson disse ao Financial Times que “se este é um alerta para os europeus (de que), no futuro, eles terão que salvaguardar a sua própria segurança muito mais do que antes, porque… o polícia global americano não estará necessariamente por perto o tempo todo, então terá servido um propósito”. Essa é a interpretação optimista do resultado do que aconteceu em Cabul. Mas pode não ser assim.

Buildup To June's G7 Summit In Carbis Bay

Emmanuel Macron, que liderará a presidência rotativa da União Europeia no próximo semestre, tem sido o grande entusiasta da “autonomia estratégica” europeia

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Muito antes de se começar a falar em autonomia estratégica, exército comum ou capacidade militar partilhada e votos por maioria em vez de unanimidade, será necessário que os europeus sintam que o território à sua volta lhes é comum, que o risco de ataque a uns é o risco de ataque a todos e que defendê-lo vai ter um custo. Sem isso, não vale a pena falar de aprofundar instituições ou de autonomia, estratégica ou não.

Joe Biden poderá querer apenas que os europeus assumam maiores responsabilidades, como Donald Trump deveria ter querido. Mas, como Trump, pode ter provocado muito mais do que isso.

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