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No quarto onde existia um beliche foram encontradas as duas vítimas mortais deste incêndio
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No quarto onde existia um beliche foram encontradas as duas vítimas mortais deste incêndio

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

No quarto onde existia um beliche foram encontradas as duas vítimas mortais deste incêndio

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Beliches na cozinha, portas tapadas, famílias amontoadas e a última visão da mãe que perdeu o filho. A reconstituição do fogo na Mouraria

Aconteceu no passado sábado, mas ainda há muitas dúvidas sobre o incêndio na Mouraria. Moradores estavam ali há pouco tempo. Dizem que uma pessoa fugiu quando começou o fogo.

No meio das centenas de pessoas que se juntavam para ver um apartamento do rés do chão em chamas, ouviam-se os gritos de uma mãe. A voz ia em direção aos bombeiros que estavam na estreita rua do Terreirinho, na Mouraria, a tentar apagar o fogo que começou ao final da tarde do passado sábado: “Falta-me um filho, falta-me um filho. Ele vinha a correr atrás de mim e ficou lá dentro.”

[Ouça aqui a reportagem da Rádio Observador no bairro da Mouraria]

A noite em que ninguém dormiu nas “camas-quentes” da Mouraria

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Com uma carrinha da junta de freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, os bombeiros começaram a tirar os armários, lixo e estruturas de maior dimensão de dentro daquela casa. Mas rapidamente perceberam que o jovem de 14 anos — e que era procurado pela família — não tinha ficado debaixo daquilo que restou do incêndio. Foi encontrado deitado, na cama superior de um dos cinco beliches da casa. As autoridades que estiveram no local – proteção civil e bombeiros – admitem que possa ter morrido intoxicado, enquanto dormia. Foi a última pessoa a ser encontrada e a segunda vítima mortal. Junto ao mesmo beliche, foi também encontrado um homem com cerca de 40 anos, agachado, no chão, entre a cama e uma porta de acesso à rua, fechada à chave e bloqueada pelo beliche. Estaria a tentar proteger-se das chamas e do fumo e terá morrido pela mesma razão. O resultado das autópsias, no entanto, ainda não foi revelado.

O jovem e o homem que morreram naquela noite eram indianos, tal como as restantes pessoas que ali viviam. Tiago Bento, da Unidade Local da Proteção Civil da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, aponta para “cerca de quinze moradores”, que se dividiam entre os beliches e colchões colocados no chão, espalhados por três quartos e uma cozinha. Não se sabe, ainda, se viviam mais pessoas naquela casa, mas este é, de resto, o retrato das centenas de habitações espalhadas pela Mouraria e concentradas nas ruas do Terreirinho e do Benformoso: milhares de migrantes, vindos, sobretudo, do Bangladesh, Paquistão e Índia, distribuídos por beliches que se vão acumulando em quartos, muitas vezes, improvisados.

Uma fuga sem aviso

O quarto onde foram encontrados os corpos das duas vítimas mortais do incêndio tinha uma porta que dava acesso para a rua. No quarto ao lado, o mesmo cenário: dois beliches, com um espaço muito pequeno entre eles, a bloquear uma porta semelhante, que dava também acesso para a rua. Do lado de fora, as portas trancadas mostram os números 57 e 59, todos pertencentes à mesma habitação.

Foi nessas duas portas que Luís Encarnação, filho da dona de um restaurante a poucos metros do edifício em chamas, ouviu as pessoas que ali viviam baterem em desespero, quando perceberam que estavam encurraladas pelas chamas. Sem janelas, as duas portas que no passado davam acesso direto à rua, quando aquele espaço ainda era uma mercearia e um armazém, estavam agora bloqueadas e a única escapatória possível era mesmo a porta principal, que dava acesso para a entrada do prédio.

Entrada do rés do chão, onde aconteceu o incêndio

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Esta porta principal, na zona da cozinha, mesmo em frente à bancada onde se preparavam refeições, estaria aberta quando as chamas começaram a espalhar-se pelo pequeno apartamento. “Segundo o relato de alguns residentes do rés do chão, estaria alguém a confecionar comida na cozinha e, em princípio, terá sido essa a origem do fogo”, explicou Tiago Bento ao Observador.

Também de acordo com estes moradores, a porta principal foi aberta por uma das pessoas que ali vivia e que terá fugido quando percebeu que o espaço estava a ser consumido pelas chamas. “Um indivíduo que pernoitava aqui, e que foi o primeiro a saber do incêndio, veio para o exterior sem avisar os restantes no interior da habitação”, relatou ao Observador o responsável da Proteção Civil da junta de freguesia. Ainda assim, mesmo tendo ficado aberta, as chamas e o fumo intenso impediram a saída das restantes pessoas, precisamente pela proximidade.

Sobre a pessoa que terá fugido, a Proteção Civil diz não ter mais informações e a investigação da Polícia Judiciária está ainda em curso e, para já, em segredo de justiça, segundo apurou o Observador.

Fotografias no interior do rés-do-chão que ardeu e que provocou duas vítimas mortais

DR

Ainda antes dos bombeiros, os vizinhos conseguiram ajudar os moradores

À medida que os gritos e as pancadas no interior daquelas duas portas aumentavam, o fumo saía e invadia a rua do Terreirinho. Passava pouco das oito da noite, muitas pessoas estavam a jantar e o primeiro alerta foi dado no restaurante Casa da Isilda, o único restaurante português daquela rua. Aliás, aqui, em língua portuguesa, só se somam mais duas lojas: uma de peles e outra de molduras.

Dentro do restaurante “só ficaram dois senhores de idade”, contou a proprietária do restaurante, Isilda Encarnação. Todas as pessoas quiseram perceber o que se passava. Outras quiseram ajudar.

Luís Encarnação, filho da dona do restaurante, tentou entrar pela porta principal, mas era impossível — nessa altura, já as chamas impediam a entrada ou saída. A solução seria então abrir as duas portas dos dois quartos onde estavam os moradores.

Os bombeiros "tiveram muitas dificuldades a chegar ao local por causa das pessoas que estavam aqui a filmar e a fotografar. Temos imagens em que estimamos que estivessem entre 100 e 150 pessoas aqui à volta a filmar"
Tiago Bento, da unidade local da proteção civil

Tentou abrir essas portas, deu-lhes pontapés, mas “umas barras de ferro” impediam a abertura. “Corri para o armazém, para ir buscar o arranca pregos, e abrimos uma janela”, contou Luís. Com isso, “já dava para sair e entrar gente”. E a janela de que Luís fala não é mais do que a parte superior das portas, pedaços de madeira que cederam às pancadas de que acorreu aos gritos e que permitiram a saída da maioria dos moradores, ainda antes da chegada dos bombeiros.

É aí que residem as maiores dúvidas: por que razão aquelas portas, que davam um acesso imediato à rua, nunca puderam ser abertas naquela noite? Por um lado, os vizinhos, como Luís, garantem que “as portas tinham umas trancas” e, por isso, era impossível abri-las. O chefe-principal do regimento de sapadores bombeiros de Lisboa, José Caetano, confirma esta versão: “As portas do lado de dentro estavam não só fechadas como, também, estavam forradas a pladur e tinham umas trancas de ferro. Quem estava lá dentro, muito dificilmente conseguiria sair para a via pública por estas duas portas.”

Por outro lado, a proteção civil não considerou esta hipótese. “No interior, não vimos trincos nenhuns, só os beliches aqui encostados”, explicou Tiago Bento, acrescentando que as portas não abriam por falta de espaço entre a parede e os beliches.

Um dos três quartos deste rés do chão tinha dois beliches, com um espaço muito reduzido entre eles

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Uma coisa é certa: a vontade de tirar fotografias e de filmar a tragédia que ali se vivia dificultaram a ajuda. Os bombeiros demoraram menos de quatro minutos a chegar à rua do Terreirinho e encontraram dezenas de pessoas. “Tiveram muitas dificuldades a chegar ao local por causa das pessoas que estavam aqui a filmar e a fotografar. Temos imagens em que estimamos que estivessem entre 100 e 150 pessoas aqui à volta a filmar”, explicou Tiago Bento. E o chefe dos bombeiros acrescentou que, nestes casos, o alerta aos bombeiros pode ser dado mais tarde, precisamente, porque existe a pressa de gravar tudo o que está a acontecer.

Na Mouraria, não se arrendam casas, mas sim camas. E fiscalização?

Depois deste incêndio, ficaram a descoberto as condições em que estas viviam aqueles imigrantes. Estariam ali, mais ou menos, 15 pessoas e nem todas se conheciam. Está apenas confirmado que existia uma família: o jovem que morreu, a sua irmã de 9 anos e os seus pais. Quanto aos restantes moradores, pelas identificações, a proteção civil diz que não serão todas da mesma família, sendo provável que o cenário naquele rés do chão fosse semelhante ao que se vê em tantas outras casas espalhadas pela Mouraria: o arrendamento de camas em beliches.

Todos os dias entram e saem pessoas nestes apartamentos. Arrendam camas ao dia, numa lógica de "cama quente"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Estes moradores estariam em Lisboa há pouco tempo e o jovem de 14 anos estudava na Escola Secundária Gil Vicente desde Dezembro do ano passado, segundo apurou o Observador. Alguns dos moradores do número 55 da rua do Terreirinho já tinham contactado a Associação Solidariedade Imigrante, com pedidos de ajuda relativos à documentação que muitas vezes é pedida pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Aliás, tinham chegado a este apartamento, segundo o presidente desta associação, Timóteo Macedo, trabalhadores das estufas de Odemira, que durante os meses de inverno ficaram sem trabalho na agricultura e decidiram tentar a sua sorte em Lisboa.

Neste momento, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa garante o alojamento temporário dos moradores que estavam naquela noite naquela casa, assegurando também o seu acompanhamento psicológico. O Observador tentou contactar as famílias, mas não foi possível.

Este cenário precário multiplica-se pelas ruas próximas daquele apartamento: prédios onde só existem beliches e anúncios para arrendar camas, numa lógica de “cama quente” — quando um morador se levanta, há logo outro que ocupa a mesma cama. Por ali circulam, sobretudo, homens — não é habitual ver mulheres ou crianças — e o tráfico de droga é também uma realidade. No entanto, basta perguntar aos moradores destes prédios pelas condições em que vivem para perceber que existe medo. Mostram o sítio onde dormem, mas preferem não dar muita informação. Foi o caso de Fahid, que veio do Bangladesh para a rua do Benformoso e que aceitou mostrar o T0 onde dorme e onde estão instalados três beliches. Ali, dormem “apenas sete pessoas”, conta. Mas assim que surgem perguntas sobre pagamentos, senhorio e casas com demasiadas pessoas, Fahid escapa-se a mais explicações.

Casa na rua do Benformoso, onde vivem, segundo um dos moradores, sete pessoas

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Quem fiscaliza, ou se existe fiscalização às condições em que milhares de migrantes vivem num dos bairros históricos de Lisboa, é outra das dúvidas. A junta de freguesia de Santa Maria Maior atribui responsabilidades à Câmara Municipal de Lisboa e também ao setor privado, responsável pelo arrendamento destes espaços. Primeiro, é o município “que passa as licenças de habitação”, adiantou Miguel Coelho, presidente da junta. “Talvez agora a Câmara deva fazer agora vistoria geral aos prédios deste território, sobretudo aos bairros populares, para perceber se elas têm condições de habilidade ou não. Mas criamos um problema a jusante: é que, se não estiverem [a cumprir as condições exigidas], essas pessoas vão para a rua e vão dormir na rua“, alertou.

Depois, em relação aos privados, “se há uma pessoa que aluga uma casa a outro e esse outro lhe dá um uso indevido, essa pessoa tem obrigação, em primeiro lugar, de impedir isso, cessando o contrato, ou fazendo uma participação disso”. Era precisamente este o caso do rés do chão que ardeu no passado sábado: a senhoria, que vive na Suíça, arrendou o espaço a uma pessoa de nacionalidade indiana e, posteriormente, aquele espaço foi arrendado a migrantes que chegam a Lisboa e não têm onde ficar.

Miguel Coelho diz nunca ter visto situação semelhante: “Em habitação, nestas proporções, devo dizer que, em nove anos de junta, esta foi a primeira vez que aconteceu.” E os bombeiros também não: “Com tanta gente e num espaço tão pequeno, não me recordo de ter acontecido qualquer incêndio com esta dimensão.”

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