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Como o ex-patrão de José Sócrates conseguiu dominar o negócio do sangue em Portugal

Ex-líder da farmacêutica Octapharma foi acusado de alegadamente ter corrompido o ex-líder do INEM, uma médica e uma farmacêutica para ganhar o domínio de um negócio de mais de 120 milhões de euros.

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O gestor milionário de uma multinacional farmacêutica suíça, um dos mais conceituados dirigentes do Serviço Nacional de Saúde, uma médica do Hospital de São João do Porto e uma simples farmacêutica — são estes os protagonistas de uma história rocambolesa que rendeu o domínio do mercado nacional de plasma e medicamentos hemoderivados à Octapharma entre 2000 e 2012 e uma receita superior a 120 milhões de euros.

No centro da acusação que o Ministério Público deduziu esta sexta-feira no âmbito da Operação O Negativo está um conceito que muitos portugueses ainda não dominam (conflito de interesses) e um gestor (Paulo Lalanda e Castro) que, de acordo com o Ministério Público, colocou na sua dependência económica Luís Cunha Ribeiro, ex-presidente do INEM e da Administração Regional de Lisboa e Vale do Tejo, e de mais dois júris de concursos milionários ganhos pela Octapharma. Só Cunha Ribeiro é acusado de ter recebido alegadas contrapartidas de cerca de 914 mil euros para alegadamente favorecer a farmacêutica suíça.

Mais: Lalanda e Castro, ex-patrão de José Sócrates, é ainda acusado de ter tentado alegadamente levar a cabo uma operação branqueamento de cerca de 3,6 milhões de euros de comissões que recebeu da Octapharma pelas vendas em Portugal.

Este é um inquérito que começou em 2015 com uma investigação jornalística da TVI, sendo que a esmagadora maioria dos factos foram comprovados pelas diligências do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). A investigação acabou por passar por várias vicissitudes, nomeadamente a mudança de procuradores titulares do inquérito e a falta de recursos humanos que continua a marcar a vida da Polícia Judiciária, o que atrasou a conclusão do despacho de encerramento de inquérito.

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Lalanda e Castro. Quem é o homem por detrás do negócio do plasma?

O que é o plasma, o que se faz com ele e como vale 124 milhões de euros?

Antes de contarmos a história da acusação do Ministério Público, uma pergunta que se impõe para compreender o caso: o que é o plasma sanguíneo? É a parte líquida do sangue. Por exemplo, numa bolsa hospitalar de sangue, o plasma corresponde a 55% da composição total, tem uma cor amarela e é essencial para o corpo humano. Pormenor muito relevante: não se consegue reproduzir em laboratório. Daí a importância das campanhas de recolha de sangue.

Outra questão importante: o que se faz com o plasma? Duas coisas:

  • Depois de devidamente autonomizado e tratado, pode ser vendido enquanto tal para utilização, por exemplo, em transfusões. Chama-se a isso plasma inativado.
  • Criação de medicamentos. Através do fracionamento do plasma, as proteínas do plasma são separadas, purificadas e transformadas em produtos farmacêuticas que servem para combater de forma eficaz doenças muito graves como a hemofilia, o cancro ou a sida, por exemplo. A Octapharma foi das primeiras farmacêuticas a criar produtos com Factor VIII (para combater a hemofilia A) e Factor XIX (para lutar contra a hemofilia B). Chamam-se a estes medicamentos hemoderivados.

Depois da explicação básica, um número: só nos últimos 20 anos, a Octapharma terá vendido a Portugal bolsas de plasma sanguíneo avaliadas em cerca de 124 milhões de euros, segundo a TVI revelou em 2015.

O concurso aberto em 2000 e que durou 15 anos

No centro do despacho de acusação assinado pela procuradora Ana Paula Vitorino estão as adjudicações ao Grupo Octapharma para a compra de plasma inativado e de medicamentos hemoderivados. Enquanto que no primeiro caso a farmacêutica suíça tinha o monopólio do mercado, já no segundo mercado Lalanda e Castro tinha conseguido construir uma posição dominante.

Tudo começou nos anos 90 quando a farmacêutica suíça fundada em 1983 por um violinista alemão chamado Wolgang Marguerre (ex-vice-presidente da Revlon) se instalou em Portugal. O homem escolhido para liderar a nova empresa foi Paulo Lalanda e Castro. Ex-estudante de Medicina no Porto e filho de uma médica, ex-diretora da farmácia do Hospital de São João (Porto), Lalanda tinha tido sucesso como diretor-geral da Lusitafarme e foi nesta empresa que começou a vender produtos da Octapharma a partir de 1985. Com a venda da Lusitafarme a uma multinacional, Lalanda e Castro propôs a Marguerre a criação de uma subsidiária da farmacêutica suíça em Portugal, o que veio a acontecer em 1992. Logo aí ficou assente que Lalanda e Castro iria ser o responsável pela expansão da empresa para a América Latina e para a África.

O primeiro concurso público para a inativação do plasma recolhido em Portugal foi ganho em 1999 pela Octapharma pelo valor base de cerca de 2 milhões de euros. Mas o contrato acabou por não ser executado devido à doença das vacas loucas, o que levou a empresa de Lalanda e Castro a colocar o Estado em tribunal, ganhando o reconhecimento dos direitos adquiridos em 2006.

No primeiro concurso de medicamentos hemoderivados houve uma alteração fulcral depois já terem sido apresentadas as propostas: um dos critérios para uma beneficio pontual, passaria pela obtenção de uma autorização do Infarmed para comercializar o seu produto - e não uma autorização de um regulador internacional. A iniciativa foi de Luís Cunha Ribeiro e o MP diz que a mesma favoreceu a Octapharma.

Assim, o primeiro concurso que foi efetivamente escrutinado pela investigação do DCIAP decorreu no ano de 2000 — conhecido como o Concurso Público 09/2000. Trata-se de um concurso aberto para adjudicar uma prestação de serviços no fracionamento e produção de medicamentos hemoderivados e que teve uma originalidade: depois de já terem sido apresentadas as propostas, o júri do concurso definiu que um dos critérios para a avaliação passaria a ser experiência dos concorrentes no mercado português. Nomeadamente, dando mais 20% de pontuação a quem tivesse uma Autorização de Introdução no Mercado (AIM) portuguesa. Ou seja, uma autorização do Infarmed para comercializar o seu produto.

De acordo com a acusação, a iniciativa de propor esta “diferente pontuação coube a Luís Cunha Ribeiro, secundado por Elsa Morgado, logrando ambos convencer os demais membros da Comissão de Avaliação de Propostas (CAP) a deliberar nesse sentido, com o argumento de que a existência de uma Autorização de Introdução no Mercado nacional supunha uma garantia de qualidade do produto”, lê-se no despacho de acusação. Consequência: a Octapharma, que tinha mais produtos a concurso, foi alegadamente favorecida, considera a procuradora Ana Paula Vitorino, face às seis restantes concorrentes. Por isso mesmo, a Octapharma ganhou 75% do valor que estava a concurso, conseguindo a adjudicação a 7 de maio de 2001 de 23,4 milhões de euros euros em medicamentos hemoderivados.

Segundo pormenor muito relevante: a validade do prazo dos serviços que seriam fornecidos após a adjudicação. O vencedor do concurso forneceria os produtos hemoderivados até à abertura de um novo concurso. Isto é, se o Estado nunca chegasse a avançar para outro concurso público internacional, o vencedor (a Octapharma) ganhava o direito legal de ser o fornecedor quase eterno e exclusivo de medicamentos hemoderivados do Serviço Nacional de Saúde. E foi exatamente isso que se verificou entre 2000 e 2012. Isto é, a Octapharma vendeu os seus produtos ao Estado entre 2000 e 2012 (nomeadamente as marcas Octanate e Octaninef) sempre ao abrigo do concurso público internacional n.º 2000/9.

O papel de Luís Cunha Ribeiro e as casas, o carro e as viagens

Abril de 2000. Luís Cunha Ribeiro acabara de divorciar-se e queria mudar de casa para começar uma nova vida. Vivia até então numa vivenda que o pai lhe dera quando casou, na zona do Porto, mas queria agora comprar um apartamento na zona das Antas. Só que faltava-lhe o dinheiro. Segundo a acusação, Cunha Ribeiro falou então com o amigo de longa data, o empresário Lalanda e Castro, que depressa se disponibilizou a comprar-lhe a casa. Aos olhos da acusação, no entanto, fê-lo porque sabia que ele integrava o júri nomeado para o concurso público a que concorrera. Segundo a procuradora Ana Paula Vitorino, o empresário adquiriu a casa através da sua empresa do ramo imobiliário, a Convida (também arguida no processo), e “sem quaisquer custos para ele”.

Aos olhos do MP, foi uma forma de aliciar Luís Cunha Ribeiro, que sabia bem que o amigo representava a Octapaharma e que iria fazer tudo para que a empresa se consolidasse em Portugal. Cunha Ribeiro é acusado de ter aceitado a proposta, mesmo sabendo que tal condicionaria a sua posição enquanto membro do júri do Concurso Público 09/2000. E foi assim que a Convida, representada pelo advogado Varela de Matos (atual candidato a Bastonário que agora pediu a libertação imediata do bebé recém nascido encontrado no lixo), adquiriu um duplex no Porto por 175 mil euros.

Conheça toda a história da “Operação O -“

A mudança de Luís Cunha Ribeiro para aquela casa ocorreu na altura em que decorriam reuniões da Comissão de Avaliação das Propostas do Concurso Público 09/2000, que valeu à Octapharma adjudicações de cerca de 23,4 milhões de de euros, decididas em parte pelo mesmo Luís Cunha Ribeiro.

No entanto, os contratos de eletricidade, água e gás foram mantidos em nome da Convida para que, diz o MP, não se estabelecesse qualquer ligação entre os dois. Apesar de serem depois pagos pelo médico, como algumas transferências bancárias detetadas pelos investigadores vieram demonstrar.

Já depois do concurso, Cunha Ribeiro terá demonstrado ao representante da Octapharma a vontade de adquirir dois lugares de estacionamento no prédio. Segundo a acusação do Ministério Público, foi para “gratificar” o amigo pelo resultado do concurso, que Lalanda e Castro os comprou através da Convida “sem quaisquer incómodos ou custos” para Cunha Ribeiro. Foram cerca de 38 mil euros, de um total de quase um milhão de euros que as autoridades acreditam que Cunha Ribeiro terá recebido do amigo para alegadamente o favorecer.

Só em junho de 2003, era Cunha Ribeiro presidente do INEM, é que os imóveis passaram da Convida para ele. Na escritura consta o valor de 260 mil euros pelo duplex e de 20 mil para cada um dos lugares de estacionamento. A Convida declarou que já tinha recebido aquele dinheiro mas, segundo o Ministério Público, Cunha Ribeiro nunca pagou qualquer valor pelos três imóveis. As Unidades de Perícia Financeira e Contabilística da PJ passaram a pente fino as contas do médico, dos filhos, do pai e até do seu cunhado, e não encontraram qualquer transferência que correspondesse ao pagamento deste valor. Nem os rendimentos declarados pelo próprio em sede de IRS entre 2000 e 2003 seriam suficientes para efetuar tal pagamento.

Abril de 2000. Luís Cunha Ribeiro acabara de divorciar-se e queria comprar um apartamento na zona das Antas. Só que faltava-lhe o dinheiro. Lalanda e Castro ter-lhe-á comprado a casa por cerca de 175 mil euros e o médico mudou-se para a casa quando estava a decorrer a análise das propostas do concurso público que valeria 23,4 milhões de euros à Octapharma. Cunha Ribeiro fez parte do júri desse concurso e alegadamente terá tido uma intervenção decisiva a favor da farmacêutica suíça.

O Ministério Público refere ainda que Cunha Ribeiro, que presidiu o INEM até 2008, tinha uma espécie de carta verde para agendar diretamente viagens com a agência que trabalhava com Paulo Lalanda e Castro, e que ele pagava. Fosse sozinho ou em grupo. E que enquanto presidente daquele organismo publico chegou a viajar para um congresso em Banguecoque à custa da empresa que Lalanda e Castro liderava em Portugal. Há ainda vários registos de viagens que fez em lazer à China, à Austrália, a Singapura e à Índia — tudo pago pelo amigo.

Como Cunha Ribeiro se tornou vizinho de Sócrates

Naquele mês de fevereiro de 2004, Cunha Ribeiro falou com o amigo Lalanda e Castro sobre a necessidade de contratar alguém para dirigir o Departamento de Formação em Emergência Médica, que ficara sem coordenação em finais de 2003 por causa do Euro 2004. Lalanda e Castro conhecia a pessoa ideal para o cargo: a sua própria irmã, formada em Economia e Gestão, com experiência em ministrar cursos de formação na Associação Nacional de Jovens Empresários, e apta a preparar candidaturas a fundos comunitários. Mais: naquele momento ela não tinha trabalho fixo.

Foi também nessa conversa, diz a acusação do MP, que Lalanda e Castro percebeu que o amigo ainda não tinha comprado casa em Lisboa e que se deslocava entre a capital e o Porto. Então ofereceu-lhe um apartamento que a sua empresa, a Convida, detinha no Edifício Heron Castilho, em Lisboa — onde vivia José Sócrates. E ele aceitou.

O MP acredita mesmo que Lalanda e Castro até adquiriu o apartamento a pensar no amigo, a quem nunca cobrou qualquer renda: “Perspetivando de imediato como possível que viesse a conceder a fruição da habitação a Luís Cunha Ribeiro (…) como contrapartida de tudo o que fizera na defesa dos seus interesses de negócio e interesses pessoais”.

A irmã de Lalanda e Castro acabaria por ir trabalhar para o INEM dias depois, sem passar por qualquer concurso público. E depressa ascendeu lá dentro, passando depois, como Cunha Ribeiro, para a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT). Foi também à irmã, já em 2015, que Paulo Lalanda e Castro pediu ajuda para conseguirem justificar o arrendamento gratuito no prédio Heron Castilho, depois de começarem a sair notícias sobre as relações suspeitas entre o empresário e o médico.

Lalanda e Castro percebeu que o amigo ainda não tinha comprado casa em Lisboa e que se deslocava entre a capital e o Porto. Então ofereceu-lhe um apartamento que a sua empresa, a Convida, detinha no Edifício Heron Castilho, em Lisboa — onde vivia José Sócrates. E ele aceitou.

Helena Castro reuniu, por isso, com o advogado Paulo Farinha Alves — também arguido no processo –, que já trabalhava com empresas do irmão. Segundo a acusação, o advogado da PLMJ terá sido chamado em inícios de 2016 a regularizar a questão da habitação no Heron Castilho, “mas sem intenção alguma de receber o que quer que fosse de Luís Cunha Ribeiro ou este de lhe pagar o que quer que fosse”.

Terá sido ele a delinear um plano e a redigir um “acordo de reconhecimento e pagamento de dívida” entre a Convida, Paulo Lalanda e Castro e Cunha Ribeiro, tendentes à resolução de um litígio simulado. O advogado da PLMJ terá também articulado as versões que ambos deviam apresentar do caso. Farinha Alves, conhecido também como comentador desportivo, foi acusado de um crime de falsificação de documento e um crime de branqueamento de capitais — ambos na forma tentada.

Segundo o despacho de acusação, Cunha Ribeiro dizia ser amigo de Paulo Lalanda e Castro há muitos anos, que conhecia da Faculdade de Medicina do Porto. “E que, quando veio para Lisboa dirigir o INEM, este, que adquirira uma casa para a filha utilizar quando fosse estudar para a faculdade, propôs-lhe ser ele a utilizá-la ao invés de residir numa residencial, como vinha fazendo”, lê-se.

Cunha Ribeiro habitou a casa, depois regressou ao Porto. Já de volta a Lisboa para dirigir a ARSLVT voltaria àquela casa, mas aqui já com uma renda de 1200 euros definida. Valor que, segundo argumentou, seria pago através de uma conta na Suíça.

Os familiares de Cunha Ribeiro que também ganharam com o caso

De acordo com a acusação, não foi apenas Cunha Ribeiro que ganhou com o facto de ter beneficiado a Octapaharma para que conseguisse o monopólio do mercado do plasma em Portugal. Na acusação há também relatos de familiares do ex-responsável pelo INEM que saíram beneficiados. Foi o caso de Anne Sorensen, uma dinamarquesa que Luís Cunha Ribeiro conheceu durante uma conferência e que acabaria por vir viver para Portugal precisamente no ano em que se divorciou.

Cunha Ribeiro e Sorensen viveram juntos durante dois anos e nesse período a dinamarquesa até conseguiu trabalho. Onde? Na Dynamicspharma de Lalanda e Castro — a empresa candidata ao concurso em que a opinião de Cunha Ribeiro seria fundamental.

Lalanda Castro também contratou a mulher dinamarquesa do seu amigo Luís Cunha Ribeiro. Nesse mesmo ano de 2000, também o cunhado de Cunha Ribeiro beneficiou da ajuda do líder da Octapharma. A PJ encontrou  no computador de Lalanda um documento que mostra que o empresário ainda emprestou duas vezes dinheiro ao mesmo cunhado de Cunha Ribeiro.

Nesse mesmo ano de 2000, também o cunhado de Cunha Ribeiro beneficiou da ajuda, e do dinheiro, de Lalanda e Castro. Segundo o despacho de acusação, a trabalhar no Centro de Serviços e Apoios a Empresas (CESAE) do Porto, um organismo público, Augusto Borges de Andrade pensou em criar duas empresas que produzissem sistemas de informações e manuais de informática. Potencial cliente: precisamente o organismo para o qual trabalhava, a CESAE.

Consciente de uma possível incompatibilidade, Augusto Andrade convenceu a mulher, irmã de Cunha Ribeiro, a dar o seu nome à gerência das empresas, a Executrain e a New Horizons. E acabou, por intermédio do cunhado, a ter mais um cliente: a Octapharma. O MP acredita que tal só aconteceu por intermédio de Cunha Ribeiro e pela amizade que mantinha com Lalanda e Castro. A PJ encontrou  no computador de Lalanda e Castro um documento que mostra que o empresário ainda emprestou duas vezes dinheiro ao cunhado de Cunha Ribeiro.

A ILS não era de Cunha Ribeiro, mas era ele que mandava

A experiência que adquirira no Hospital de São João e no INEM levava muitas vezes Cunha Ribeiro a pensar em soluções inovadoras na área da saúde e da emergência médica. Foi ele, no INEM, quem iniciou o programa da desfibrilhação automática externa, que podia ser feita por pessoal não médico, desde que credenciado.

Exercendo um cargo público, sem poder explorar as suas ideias para fins comerciais e através de uma empresa, terá sido o amigo Lalanda e Castro que acabou por avançar, através da criação da sociedade Inteligent Life Solutions (ILS) em 2008. O operacional da sociedade, Nelson Pereira, terá sido mesmo indicado por Cunha Ribeiro a Lalanda, sendo que o ex-líder do INEM terá participado no desenvolvimento da empresa e teria uma “participação diária” na sua gestão, segundo a acusação.

Luís Cunha Ribeiro é médico e foi presidente do INEM e da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo

Aliás, três funcionárias ouvidas pelo MP consideravam mesmo que era ele o dono da empresa. Cunha Ribeiro e Paulo Lalanda e Castro eram mesmo “encarados dentro do seio do grupo de sociedades do universo de Paulo Lalanda e Castro como sócios da ILS com igual participação social”, diz o MP. E mesmo nas buscas feitas à sede da Octapharma foi encontrado um caderno de notas azul que parecia indicar isso mesmo, com o apontamento: “ILS Dr. Castro Dr. Cunha Ribeiro ILS 50/50”. Também nalguma documentação apreendida foi possível encontrar contactos com entidades em Angola, Macau e Timor que se referiam aos dois amigos como sendo os donos da empresa.

O Ministério Público refere no despacho de encerramento de inquérito que até 2013 Cunha Ribeiro desempenhou funções de sócio “muito embora, durante a vida da sociedade ILS,  tivesse exercido sucessivamente as funções de Diretor do Serviço de Imunohemoterapia no Centro Hospitalar de São João, de colaborador do Alto Comissariado para a Saúde e de Presidente do Conselho Diretivo da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, IP”. Mais: a ILS dispunha apenas de um Audi A5 e era Cunha Ribeiro quem o usava.

A farmacêutica Elsa Morgado e as dívidas que nunca pagou

Elsa Morgado é outra personagem central nesta história e foi acusada de um crime de corrupção passiva por alegadamente, segundo a procuradora Ana Paula Vitorino, ter sido corrompida por Paulo Lalanda e Castro. Farmacêutica, Elsa Morgado foi a representante da Associação Portuguesa de Hemofilia (APH) nos concursos para aquisição/fornecimento de plasma e hemoderivados até 2008, e terá recebido cerca de 340,1 mil euros de alegadas contrapartidas da parte de Lalanda e Castro para alegadamente favorecer a Octapharma.

De acordo com a acusação, Elsa Morgado omitiu da direção da APH aquando da sua primeira nomeação todas as ligações pessoais e empresariais que tinha com o líder da Octapharma Portugal. O Ministério Público chega mesmo a dizer que a farmacêutica “dependia economicamente” de Lalanda.

Conheceram-se em 1988 e terá sido Lalanda que a convidou para entrar na Famrimpex — a primeira sociedade que Lalanda criou com a Octapharma em 1991 — como diretora técnica do laboratório da sociedade, cargo que exerceu até 2000. Mais tarde, quando já tinha sido aberto o concurso 19/98 (no qual Elsa Morgado fazia parte do júri e a Octapharma era um dos concorrentes), os dois criaram mesmo uma sociedade juntos (a Pharma XXI, empresa de cosméticos e parafarmácias). Pormenor: nem Lalanda nem Elsa Morgado apareciam nos órgãos sociais da sociedade fundada a 4 de agosto de 1999 — facto que leva o Ministério Público a considerar que quiseram esconder a ligação entre ambos por causa do concurso 19/98 que estava a decorrer.

A PJ descobriu também que em 2007, a Morgado Vinhos — empresa do pai de Elsa Morgado — atravessava um período difícil. A farmacêutica terá falado com Lalanda e Castro. A ajuda veio através da sua empresa, a Dynamicspharma, que fez uma encomenda de vinhos de cerca de 60 mil euros. No entanto, a Morgado Vinhos nunca lhe forneceu o produto nem pagou o valor.

Lalanda e Castro ordenou que a diretora financeira da Octapharma ficasse responsável pela contabilidade da Pharma XXI mas desonerou-se da empresa em 2004. Segundo o Ministério Público, Elsa Morgado, que sempre geriu a sociedade, manteve-se e veio a beneficiar, sem qualquer encargo, de uma garantia bancária de 200 mil euros prestada por Lalanda em nome da Pharma XXI.

A PJ descobriu também que em 2007, a Morgado Vinhos — empresa do pai de Elsa Morgado — atravessava um período difícil. Então Elsa Morgado terá falado com Lalanda e Castro. A ajuda veio através da sua empresa, a Dynamicspharma, que fez uma encomenda de vinhos de cerca de 60 mil euros. No entanto, a Morgado Vinhos nunca lhe forneceu o produto nem pagou o valor.

O MP acredita que, mais tarde, Lalanda e Castro terá pago uma dívida da mãe de Elsa Morgado de 33 mil euros e uma dívida de própria farmacêutica no valor de 47.136, 60 euros. Os arguidos terão alegadamente montado um estratagema para dar uma aparência de que a farmacêutica iria ressarcir o líder da Octapharma Portugal, mas para tal usaram imóveis de uma empresa de Elsa Morgado como garantia. Problema: estes imóveis já estavam hipotecados e dificilmente Lalanda e Castro conseguiria com eles receber os valores em dívida.

Elsa Morgado está no processo com apoio judiciário e o Ministério Público não lhe encontrou qualquer património para ressarcir o Estado dos danos que lhe causou.

A médica Manuela Carvalho e a falta de reconhecimento da sua importância

Já Manuela Carvalho, médica imunohemoterapeuta do Hospital de São João do Porto, que também integrou o júri de diversos concursos públicos para fornecimento de hemoderivados foi igualmente acusada de um crime de corrupção passiva e dois crimes de recebimento indevido de vantagem. A médica é acusada de ter recebido alegadas contrapartidas de Paulo Lalanda e Castro no valor total de cerca de 72,4 mil euros para alegadamente favorecer a Octapharma.

De acordo com a acusação, Manuela Carvalho e o marido terão beneficiado de várias viagens de avião entre Lisboa Porto a expensas da Octapharma. Algumas dessas viagens foram para congressos, mas outras foram mesmo para participar nas reuniões de júri que iriam deliberar, precisamente, sobre uma das candidatas a concurso: a Octapharma.

Mais: segundo a acusação, Manuela Carvalho terá pedido para que estas reuniões ocorressem sempre à sexta ou à segunda feira, por ter de se deslocar. A PJ concluiu que o seu companheiro vivia em Lisboa, ela no Porto, e por isso essas viagens pagaram sempre as duas visitas à capital para estar com ele — além das presenças nas reuniões do concurso. “Aceitando estas deslocações pagas por uma empresa a concurso, a arguida colocou em causa os deveres de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade, zelo e lealdade que lhe assistiam enquanto membro do júri, violando-os”, lê-se na acusação.

Além destas deslocações, a PJ descobriu que uma viagem (com estadia incluída) que Manuela e o companheiro fizeram à Tailândia e a Singapura também foi paga por Paulo Lalanda e Castro. A organização da viagem foi mantida em grande sigilo porque o concurso estava a decorrer. A PJ encontrou documentos na agência de viagem que tratava destas deslocações em que se lê em letras garrafais:  “ALTAMENTE CONFIDENCIAL, NÃO FALAR COM NINGUÉM ACERCA DESTA VIAGEM!!!”

A PJ descobriu que uma viagem (que incluía estadia) que a médica Manuela Carvalho e o companheiro fizeram à Tailândia e a Singapura também foram pagas por Lalanda e Castro. A organização da viagem foi mantida em grande sigilo porque o concurso, no qual a médica era júri e a Octapharma concorrente, estava a decorrer. A PJ encontrou documentos na agência de viagem que tratava destas deslocações em que se lê em letras garrafais:  "ALTAMENTE CONFIDENCIAL, NÃO FALAR COM NINGUÉM ACERCA DESTA VIAGEM!!!"

“O pagamento de uma viagem de lazer a uma profissional de saúde e seu companheiro, por uma empresa farmacêutica, não é legalmente permitido”, lembra o Ministério Público.

Depois dos concursos, acusa o MP, Lalanda e Castro partilhou com Manuela Carvalho várias informações do Grupo Octapharma, como a evolução científica dos produtos utilizados na área da Imunohemoterapia, quer fossem da própria, quer das congéneres, e permitiu-lhe fazer apresentações a nível nacional e internacional sobre o Octaplex, pelas quais recebeu dinheiro.

Manuela Carvalho recebeu ainda um “jantar de compensação”, como lhe chama o MP no despacho de acusação. Isto porque, numa viagem a Roma, percebeu que não tinha sido convidada para uma festa que Paulo Lalanda e Castro tinha promovido, em homenagem aos 25 anos de cooperação com a Octapharma.  Assim que o soube, relata a acusação, a médica enviou de imediato mensagens a Lalanda e Castro, mostrando-se incomodada. O empresário acabaria por combinar depois um jantar com a “sua melhor cozinheira” para a compensar, onde esteve também o companheiro dela. Em interrogatório judicial, porém, a arguida acabou por dizer que não se sentiu devidamente “recompensada”. Pois estava à espera que o jantar não fosse a três, mas que estivessem outros convidados que reconhecessem a “sua proximidade a Paulo Lalanda e Castro e a sua importância para os interesses” dos seus negócios.

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