Índice

    Índice

Entra em vigor a 1 de julho a conta-corrente entre os contribuintes e a Autoridade Tributária (AT) que vai permitir que quem tenha créditos a receber da AT possa abatê-los às suas obrigações fiscais. A medida, que parte de uma iniciativa conjunta do PS e dos CDS, foi esta terça-feira publicada em Diário da República. Os fiscalistas ouvidos pelo Observador, no entanto, antecipam possíveis problemas e dizem que é preciso ver para crer na operacionalização de uma medida que consideram “positiva” e útil do ponto de vista da tesouraria.

O que é a conta-corrente?

Trata-se de um sistema de compensação em que o Fisco abate sobre os impostos a pagar pelos contribuintes os créditos fiscais. Por exemplo: se estiver a dever 200 euros à Autoridade Tributária, mas esta tiver de pagar-lhe 500 euros (por exemplo, em IRS), e se pedir a ativação deste mecanismo, o Fisco irá transferir-lhe apenas 300 euros, a dívida de 200 fica saldada e o processo é encerrado (isto se a AT não contestar, como veremos no ponto 6).

E se fosse ao contrário (se devesse 500 euros e a AT tivesse de lhe dar 200)? É feito o pagamento parcial, e o contribuinte passa a dever 300 euros. Até aqui, o processo era mais burocrático: o contribuinte tinha de pagar os 500 à AT, que, por sua vez, tinha de transferir os 200 euros ao contribuinte.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Conta-corrente entre contribuintes e Estado entra em vigor a 1 de julho

O mecanismo da conta-corrente partiu de uma proposta do CDS que, inicialmente, previa que a compensação pudesse ser feita com todos os créditos, fossem eles fiscais ou não (por exemplo, descontando as dívidas de uma entidade pública a um fornecedor ou incluindo as dívidas dos beneficiários da Segurança Social). Mas um parecer do Conselho das Finanças Públicas chamava a atenção para os riscos e a complexidade de incluir créditos não fiscais, o que também era rejeitado pelo PS. Os grupos parlamentares dos socialistas e dos centristas acabariam por chegar a um texto conjunto, que apenas versa sobre os créditos fiscais — que foi aprovado por unanimidade e, esta terça-feira, publicado em Diário da República.

De que impostos estamos a falar?

Segundo a lei publicada em Diário da República, o sistema de compensação vai abranger:

Imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS);

Imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC);

Imposto sobre o valor acrescentado (IVA);

Impostos especiais de consumo;

Imposto municipal sobre imóveis (IMI);

Adicional ao imposto municipal sobre imóveis (AIMI);

Imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT);

Imposto do selo;

Imposto único de circulação (IUC);

Imposto sobre veículos (ISV).

Este modelo já existia?

Mais ou menos. Atualmente, já era possível aos contribuintes pedirem à AT uma compensação, mas apenas nalguns casos (um desses exemplos era nos processos de execução fiscal). Sara Soares, especialista em direito fiscal da Abreu Advogados, diz que, no entanto, o regime suscitava “dificuldades de implementação prática”, nomeadamente no tocante à “morosidade das decisões”.

Aliás, durante uma reunião da comissão de Orçamento e Finanças, em novembro, o deputado socialista Fernando Anastácio defendia que, embora a lei já verse sobre uma conta-corrente, esta não tem funcionado.

Para os créditos não tributárias, Sara Soares lembra que há um regime de créditos sobre a administração direta do Estado, mas ao qual também têm sido apontadas dificuldades de implementação, nomeadamente porque é preciso que os créditos sejam reconhecidos por decisão judicial.

O mecanismo é automático ou tem de ser pedido?

Para pagar dívidas com créditos tributários o contribuinte tem de fazer o pedido, mediante um requerimento ao dirigente máximo da AT.

Como é feito o pedido?

O pedido do pagamento das obrigações tributárias por compensação é feito através do Portal das Finanças. O contribuinte deve indicar os créditos e as dívidas que quer que sejam objeto de compensação. O pedido pode ser apresentado a partir do momento da liquidação até à extinção do processo de execução fiscal. Ou seja, “ganha-se tempo”, acrescenta Sara Soares, uma vez que não tem de se esperar que as dívidas entrem em execução fiscal para pedir o sistema de compensação.

Quando há resposta da AT?

A AT tem dez dias para proferir uma decisão sobre o pedido. Se depois deste prazo ainda não tiver respondido, o pedido considera-se “tacitamente deferido”. A AT pode, no entanto, no prazo de um ano a partir da data do pedido feito pelo contribuinte, intentar uma ação judicial “visando a declaração da ineficácia, total ou parcial, da compensação, por não estarem verificados os respetivos pressupostos”. Nesse caso, “a dívida tributária que permaneça vence-se na data do trânsito em julgado da sentença judicial”.

Sara Soares, da Abreu Advogados, considera que o prazo de dez dias para a AT decidir é uma “vantagem enorme” porque clarifica o regime e impede que as decisões se prolonguem no tempo. A especialista também considera sensato que se tenha introduzido a “válvula de escape” do período de um ano durante o qual a AT pode contestar, nos casos de deferimento tácito, a compensação. Cria-se, por isso, “um equilíbrio” que “acaba por assegurar os interesses da AT”, o que considera ser razoável. “A AT pode concluir que os requisitos não estavam verificados, por exemplo, uma pessoa não tinha crédito nenhum ou porque houve uma fraude.”

Nesses dez dias acrescem juros de mora à dívida?

Não, não são devidos juros de mora desde o pedido de compensação até à decisão da AT.

Quais as vantagens deste modelo?

Quando apresentou a proposta, o CDS considerava que era de “elementar justiça” a criação de uma conta-corrente que torne realidade um “princípio básico”: “Um Estado que está a dever e paga tarde, não pode exigir receber mais cedo”. Na altura, os centristas propunham que o mecanismo fosse temporário e vigorasse apenas até ao final de 2024, dado o contexto que caraterizavam de “recuperação lenta” da economia e dos rendimentos das famílias e das empresas, quando era “imprescindível fazer tudo o possível para assegurar-lhes liquidez”. Mas este caráter temporário acabou por cair.

Já o PS, depois de ter chegado a um texto conjunto com os centristas, sublinhou que a medida era “desde há muito tempo” reivindicada, sobretudo pelas micro, pequenas e médias empresas.

Ao Observador, Luís Leon, fundador e fiscalista da consultora Ilya, considera o mecanismo “muito positivo” uma vez que “faz pouco sentido que alguém que tenha um valor de IVA a receber tenha de pagar IRS ou IRC e depois esperar pelo reembolso”. No entanto, diz ter “reservas” sobre a forma como a lei será aplicada.

Que problemas identificam os fiscalistas?

“A AT em Portugal, tipicamente, primeiro cobra e depois é que coloca as questões”, indica Luís Leon. O fiscalista antecipa que possam existir situações de conflito a dificultar a operacionalização em que “o contribuinte acredita ter direito a receber e o Estado acha que não tem o dever de pagar”. Ou “o Estado acha que tem o direito de receber e o contribuinte acha que não tem o dever de pagar”.

O contribuinte, segundo a lei, pode escolher em que dívidas quer ver o mecanismo aplicado. Mas Leon diz que é preciso ver para crer na operacionalização da medida. “Já vi leis que visam favorecer o contribuinte e depois na prática são utilizadas de forma distinta por parte da máquina da AT”, alerta.

Sara Soares concorda que só quando a lei estiver no terreno é que se pode avaliar a eficácia do desenho. E também defende que o regime pode fazer aumentar as situações de contencioso fiscal por dar apenas dez dias à AT para decidir. “Não há como criar um regime célere destes sem ter esta componente de risco. Estamos a falar de a AT decidir em dez dias e ter de avaliar se o crédito existe, se é exigível. É pouco tempo, para o bom e para o mau”, sublinha.

A especialista em direito fiscal levanta outra questão que gostaria de ver esclarecida: no caso das dívidas que já estão em execução fiscal, a AT pode, durante o período de dez dias em que decide o pedido do contribuinte, praticar atos de penhora? “Isto não está resolvido. À partida os atos de penhora não estão suspensos, ou seja, podem ser praticados  enquanto o pedido de compensação não está decidido. Talvez fizesse sentido prever de forma clara na lei que se suspendem os atos de penhora durante esta fase, da mesma maneira que não há juros de mora”, considera.

É possível conjugar planos prestacionais com este mecanismo?

Sim. Sara Soares diz que não há nada na lei que impeça o recurso a planos prestacionais, caso o mecanismo de compensação não permita extinguir a dívida na totalidade. Voltemos ao exemplo que temos usado: se devo 500 à AT, que lhe tem de pagar 200, a dívida baixa para 300 euros, valor que pode ser pago de acordo com um plano prestacional, até que a dívida seja saldada.

E a AT tem capacidade para implementar o sistema?

O sistema de compensação só vai entrar em vigor a 1 de julho, um intervalo temporal que, segundo já tinha referido ao Observador a então deputada centrista Cecília Meireles, permitirá criar uma forma ágil no Portal das Finanças para operacionalizar a medida.

O deputado centrista Fernando Anastácio também já tinha defendido, numa reunião da comissão de Orçamento e Finanças, que uma audição com a diretora-geral da AT tinha deixado o PS confortável quanto à possibilidade de concretização desta solução.

PS e CDS de acordo para suspender pagamentos fiscais quando contribuinte tem a receber. AT tem 10 dias para decidir