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Universal Images Group via Getty

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Daniel Pires, biógrafo de Bocage: "Era um poeta diferente, que remava contra a maré. Não seria fácil para ele singrar naquela sociedade"

Bocage dificilmente encaixaria no Portugal do seu tempo. Transgressor, amante da liberdade e crítico dos costumes instituídos, foi perseguido pela censura e preso. Falámos com o biógrafo Daniel Pires.

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Daniel Pires não nasceu em Setúbal, mas é a cidade de Bocage que mais sente como sua. Foi lá, quando andava no liceu, que descobriu o poeta sadino, popular entre os rapazes por causa dos seus poemas eróticos. Mais tarde, já licenciado, teve oportunidade de seguir os passos de Bocage no Oriente, quando foi leitor de português em Macau, Cantão e Goa. De regresso a Setúbal, e como uma admiração cada vez mais solidificada pelo escritor, fundou em 1999 o Centro de Estudos Bocageanos para ajudar na divulgação da sua obra e vincar a sua relevância no panorama literário, social e político português. Em 2015, por altura dos 250 anos do nascimento do poeta, publicou pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda (INCM) o estudo Bocage e a Imagem e o Verbo, e, quatro anos, depois foi responsável pela organização da obra completa de Bocage, que saiu pela mesma editora. Este ano, voltou a Bocage para contar a sua vida e fazer justiça ao homem à frente do seu tempo, ao “poeta diferente, que remava contra a maré” e que por isso pagou pagou caro.

Defensor da liberdade e feroz crítico dos costumes estabelecidos, Bocage foi perseguido pela censura, obrigado em vários momentos a remeter-se à clandestinidade e levado duas vezes para a prisão do Limoeiro, em Lisboa, uma por criticar a classe política (nomeadamente o intendente geral da polícia, Pina Manique, um dos homens mais poderosos do reino) e outra por pertencer à Maçonaria. A sua vida “acidentada, irregular e desregrada” foi deixando as suas marcas e, quando morreu, Bocage era pobre, respeitado apenas por alguns e odiado por muitos. O seu funeral foi pago por amigos e os seus restos mortais sepultados numa vala comum, num cemitério de uma igreja lisboeta há muito desaparecido.

Depois da publicação dos seus poemas eróticos no século XIX, foi a imagem de um poeta descarado, ligado à pornografia, que persistiu ao longo do tempo. Uma ideia errada que Daniel Pires considera injusta e que sente necessidade de destruir, recuperando “o verdadeiro Bocage”. Foi isso que tentou fazer na biografia Bocage ou o Elogio da Inquietude, recentemente publicada pela INCM, e foi sobre isso que conversámos durante esta entrevista.

A biografia Bocage ou o Elogio da Inquietude, de Daniel Pires, foi publicada recentemente pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda

Pareceu-me pela leitura desta biografia que Bocage é um autor que admira muito. Este livro é, aliás, fruto de várias décadas de estudo e de investigação.
É verdade.

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Como é que começou este amor por Bocage? Sei que têm uma coisa em comum — são os dois de Setúbal.
Ele nasceu em Setúbal, eu vim para cá aos 11 anos, mas é quase a mesma coisa. Bocage é muito admirado nesta cidade, claro. Quando andava no liceu, muitos dos miúdos da minha idade liam em grupo a poesia erótica. Sabia que tinha sido perseguido, que tinha tido uma vida muito aventureira e a partir daí [fui-me interessando]. E claro, a obra. Acima de tudo a obra, que foi importantíssimo. Depois vivi muito tempo no estrangeiro [onde dei aulas de português em várias universidades], cheguei a estar na Índia, em Goa, e tive oportunidade de seguir um pouco os passos de Bocage [que também lá viveu quando estava na Marinha]. A admiração foi-se consolidando mais e mais e mais. Comecei a fazer exposições sobre ele, organizei a obra completa… E, bom, essa admiração tem-se solidificado muito, tem evoluído muito.

Tem crescido?
Tem crescido, sim. Depois, como gosto muito de papelada — digo a brincar que sou papirodependente –, comecei a investigar Bocage nos arquivos. Era muito importante, penso eu, mudar a imagem que as pessoas têm de Bocage ligado à pornografia, quando ele não está ligado à pornografia, mas ao erotismo; liga-se Bocage ao anedótico, quando não se conhece nenhuma anedota escrita dele. Conhecem-se epigramas que têm um humor muito fino, refinado, crítico, mas não são exatamente as anedotas que lhe atribuem. Senti necessidade de recuperar o verdadeiro Bocage e isso só podia ser feito com trabalho de arquivo. Havia muitos hiatos na sua biografia. Muitas interrogações, muitas explicações, que não tinham razão de ser, que não eram assim muito pertinentes, e isso só [podia ser resolvido] mesmo com a papelada à vista. Passei um ano na Torre do Tombo à procura desses papéis, o processo da Inquisição, as respostas que deu aos inquisidores, o diálogo que manteve com os censores. A obra dele era muito avançada para a época. Ele foi a primeira pessoa em Portugal a escrever um manifesto feminista [“Cartas de Olinda e Alzira”]. Tomou a pele de duas mulheres e fez uma série de reivindicações. Manifestou-se inclusivamente contra um determinado tipo de casamento para o qual contava muito mais a situação social do que os afetos. Era um mero contrato. E escreveu um outro manifesto [“Pavorosa Ilusão da Eternidade”, também conhecido como “Epístola a Marília”] em que se mostrou crítico em relação à educação e a algum fanatismo religioso. Ele era uma pessoa religiosa.

No entanto, acusaram-no de ser ateu.
Pois, mas não tinha nada de ateu. Organizei a obra completa de Bocage, saíram quatro volumes, e basta abrir um deles para encontrar Deus, sei lá, algumas 30 ou 40 vezes. Ele era um deísta. Era crítico do catolicismo da época, mas era uma pessoa crente, não há dúvida nenhuma. Tentei lutar contra essa imagem que foi passando ao longo de 200 anos de um Bocage que queria era boémia, mas uma boémia no mau sentido. Havia uma boémia naquela altura que era extremamente progressista, porque era onde as pessoas tinham acesso a livros, ao Iluminismo, a outras formas de estar no mundo, a outras mundividências.

"Organizei a obra completa de Bocage, saíram quatro volumes, e basta abrir um deles para encontrar Deus, sei lá, algumas 30 ou 40 vezes. Ele era um deísta. Era crítico do catolicismo da época, mas era uma pessoa crente."
Daniel Pires, especialista em Bocage

Fala precisamente disso no seu livro e da importância dos cafés, que ele frequentava muito.
Sim. Era nos cafés que se tinha contacto com a vida e com as pessoas, muitas delas alternativas, com outras visões do mundo, estrangeiros que visitavam Portugal. Os cafés tinham muitas vezes salas próprias. O Bocage frequentava muito uma sala no Nicola chamada o “Agulheiro dos Sábios”, porque o café, que existia no sítio onde existe atualmente [no Rossio, em Lisboa], tinha ao lado o Botequim das Parras. [Chamava-se assim] porque estava ornamentado com parras nas paredes. As pessoas bebiam ponche, que era a bebida favorita de Bocage, e outras bebidas espirituosas, e simultaneamente mantinham um diálogo bastante frutífero e construtivo relativamente à sociedade. E por vezes também destrutivo.

Era uma espécie de tertúlia.
Exato. Ele era um poeta diferente. Publicava livros, e publicou bastante na época, mas também vendia poesia na rua — e pouca gente lha comprava. Era diferente, remava contra a maré. Não seria fácil para ele singrar naquela sociedade. De facto, manteve-se sempre à parte e pagou caro por isso.

Uma coisa que refere nesta biografia, e que está relacionada com essa iniciativa de vender a sua própria poesia na rua, é a questão da democratização da poesia, para a qual Bocage contribuiu. 
Exatamente. Mais ou menos até Bocage, a poesia era dita somente em dois lugares: nos salões da nobreza — e houve salões muito importantes, por exemplo os salões da marquesa de Alorna, que iniciaram Alexandre Herculano na literatura — e também naquilo a que se chamava as grades, ou seja, havia poesia nos conventos. Para não haver confusões, as pessoas de fora que iam assistir a estas sessões ficavam separadas das freiras por grades e chamava-se então as grades.

Neto de um almirante lendário, filho de um jurista caído em desgraça

A família de Bocage é conhecida pelas personagens ilustres. O avô dele era um oficial de Marinha muito famoso.  
Muito famoso! Bocage era filho de um jurista [José Luís Soares de Barbosa] e de uma senhora [Mariana Lustoff du Bocage] que era filha de um vice-almirante francês chamado Gille Hedois du Bocage, que veio de França no final do século XVII para organizar a nossa Marinha. Tínhamos problemas gravíssimos com corsários e piratas. Os piratas atacavam-nos no alto mar e saqueavam e afundavam os nossos navios, que vinham sobretudo do Brasil, mas também de Angola; os corsários, ao serviço da coroa inglesa e holandesa, atacavam os nossos navios. O avô de Bocage, como era um oficial de Marinha muito experimentado, desempenhou um papel muito importante nessa organização, até mesmo combatendo. Ele era normando, mas combateu os franceses no Rio de Janeiro quando atacaram a cidade e exigiram resgates. Já com alguma idade, casou em segundas núpcias com uma senhora, Clara, que era filha do cônsul holandês [Leonardo Lustoff. A Holanda era um país muito importante na época, muito poderoso, e entrou guerra connosco, tomou-nos algumas cidades do Brasil. Perdemos, então tivemos de pagar uma indemnização de guerra, que foi paga com sal de Setúbal, que era famosíssimo no mundo. O pai da mãe de Bocage era um cônsul [em Setúbal] que controlava o pagamento da indemnização de guerra.

Nesta altura, viviam muitos estrangeiros em Portugal. A família de Bocage é um exemplo disso mesmo.
Portugal era muito importante, era uma potência. Aqui chegavam os navios vindos do Brasil que depois saíam de Lisboa para a Flandres, onde a carga era distribuída pela Europa. Lisboa era uma cidade cosmopolita, muito rica.

O avô de Bocage foi uma figura respeitada, com uma carreira de sucesso. O mesmo não se pode dizer do pai do poeta, que, tal como o filho, também teve uma vida atribulada. Foi acusado de fraude, de desviar dinheiro, e acabou na miséria.
Ele estudou com aquele que veio a ser o primeiro-ministro do reino durante bastante tempo, José Seabra da Silva, que foi quem protegeu Bocage. Seabra da Silva deve ter tido alguns problemas de consciência.

Era nos cafés que se podia ter contacto "com as pessoas, muitas delas alternativas, com outras visões do mundo". Bocage era frequentador assíduo do Nicola, no Rossio

FCG – Biblioteca de Arte

Como não pôde ajudar o pai, ajudou o filho?
Exato. Havia um grupo de três amigos da vida airada em Coimbra, que fizeram o curso de Cânones. Todos se tornaram figuras muito importantes, excluindo o pai de Bocage. Um deles era António da Silva e Sousa, que chegou a ser compadre de Bocage, porque era padrinho de uma das suas filhas [Maria Agostinha]. Era muito importante e foi colocado como administrador da Casa do Infantado, que existia para nivelar o estatuto dos filhos nascidos fora do casamento com o dos príncipes reais. A Casa do Infantado vivia dos impostos, da dízima [e o pai de Bocage tornou-se em 1764 responsável por receber esses impostos em Beja]. Em 1768, ele entregou o produto dessa dízima a António da Silva, que era uma pessoa com ascendência nobre importante e grande amigo do rei. O rei era o marido de D. Maria I, D. Pedro III. Era um rei muito permeável a cunhas e não ficou com boa fama. António da Silva aceitou no primeiro ano [em que José de Barbosa ocupou o cargo de ouvidor] a dízima e entregou na Casa do Infantado o que o pai de Bocage lhe deu, mas no segundo ano esqueceu-se e meteu o dinheiro no bolso. [José de Barbosa foi acusado de fraude,] houve um arresto de todos os bens e a mãe de Bocage morreu de um desgosto incrível. A casa, a mobília, as almofadas — foi tudo arrestado.

Todo esse património pertencia à família dela. 
Sim, tudo o que foi arrestado pertencia à família dela. Aliás, a casa ainda nem tinha sido dividida por ela e pela irmã, mas as finanças arrestaram tudo, inclusivamente o que era da irmã. E, bom, o pai de Bocage foi preso. Esteve na mesma prisão que o filho. Sete anos. Setúbal não era cidade, era uma pequena vila, sabia-se tudo, e sofreu esse ônus a vida inteira, o de o pai ter sido preso por alegadamente ter roubado. [José de Barbosa] nunca mais conseguiu fazer nada. Era funcionário público, era ouvidor e juiz de fora, foi impedido de exercer e dominado pelo desgosto e pela depressão. O filho acabou por sair da vila de Setúbal.

Como não era o filho mais velho, tinha de procurar uma carreira alternativa. 
Era um peso não ser primogénito.

Ainda naquele tempo?
Sim. Começava-se a lutar contra isso, saíram algumas leis, mas uma lei é uma coisa, mudar a cabeça das pessoas é outra. Tanto que o irmão mais velho, que se chamava Gil como o avô, fez o curso de Direito em Coimbra. Chamava-se curso de Leis na altura. Não havia dinheiro para Bocage ir e ele não fez curso superior nenhum. Tinha o equivalente ao ensino secundário.

"Ele era um poeta diferente, remava contra a maré. Não seria fácil para ele singrar naquela sociedade. De facto, manteve-se sempre à parte e pagou caro por isso."
Daniel Pires, especialista em Bocage

Mas uma educação que parece ter sido bastante sólida.
Sim, bastante.

Tinha, aliás, um ótimo conhecimento do latim. Fez várias traduções.
É verdade. E traduzir como traduziu. E todas as alusões mitológicas, à história romana e grega, toda aquela cultura, de facto era preciso ter tido uma boa formação.

Um dos seus autores favoritos era precisamente um poeta latino, Ovídio.
Os Amores de Ovídio era o seu livro de cabeceira.

Que ele também traduziu.
Sim. Agora as traduções já são um bocadinho mais conhecidas. Tentei divulgar este aspeto ao máximo, porque é muito injusto não se falar dele como tradutor. Ele teorizava sobre as notas que fazia, que eram, ao fim e ao cabo, um tratado de tradução. Fazia isto sistematicamente.

Ia refletindo sobre a tradução à medida que a ia fazendo?
Exato. E ia também dialogando com o leitor. Isto foi inédito. Esta metodologia não era nada frequente na época. E era de facto um grande poeta. Para traduzir grandes poetas como Homero, Vergílio, Ovídio, como disse, Voltaire, embora Voltaire não fosse grande poeta, era mais filósofo, era preciso ser um grande poeta. Se não fosse bom, dificilmente teria conseguido fazer uma tradução pertinente.

A carreira falhada na Marinha e a decisão de dedicar a vida à poesia, “o ar que respirava”

Falámos há pouco que Bocage teve de procurar uma carreira alternativa por não ser o filho mais velho. Alistou-se então na Marinha, apesar de ser evidente que não era vida para ele.
Era um elefante numa loja de loiças, não acha? [Risos].

Desertou tantas vezes!
Não tinha vida para aquilo [risos].

Mas ainda assim insistiu. Desertou, mas regressou sempre.
Sim, voltou sempre.

Quando regressou definitivamente a Portugal, depois de uma série de aventuras no Oriente, parecia vir decidido a deixar essa vida para trás e a dedicar-se inteiramente à escrita. Começou a publicar assim que chegou.
Era um pouco como o ar que respirava. Acho que a poesia era como oxigénio para ele. E depois sofria muito… Os escritores são um bocado vaidosos, e ele era, mas os outros não o eram menos. Começaram a disparar uns contra os outros e perdiam todos a razão, claro. Se calhar poderá dizer-se que tinha uma centena de amigos e que teve uma dezena de inimigos.

Aliás, ele fez imediatamente uma série de inimigos assim quando chegou a Lisboa, sobretudo quando entrou para a Academia de Belas-Letras.
Ele implodiu aquela academia. Foi muito atacado, mas também atacou. Foi de parte a parte. Só que as pessoas da Academia de Belas-Letras estavam junto do poder, tinham os seus protetores, e ele estava sozinho. Conseguiram publicar muitos poemas contra Bocage, normalmente, em livro, e ele não o podia fazer porque a censura não o deixava passar. Aquele que era talvez o seu maior inimigo, Belchior Curvo Semedo, chegou a assinar poemas muito comprometedores politicamente com o nome de Bocage. Queimou-o muito.

O Nicola, que existe desde finais do século XVIII, era um dos estabelecimentos que Bocage frequentava na Baixa lisboeta. O café tem hoje uma estátua em sua honra

Gonçalo Villaverde / Global Imagens

Foi assim que acabou na prisão do Limoeiro.
Pois, foi denunciado e foi parar ao Limoeiro. Para mim, o melhor capítulo do livro é capaz de ser mesmo esse, porque acho que aí a realidade ultrapassou a ficção. O governo e as pessoas no poder dividiam-se. Uma fação dizia que era só poesia, mas outra, que incluía algumas pessoas que estavam no governo e outras da primeira e segunda nobreza que estavam assustadíssimas com a Revolução Francesa, dizia que Bocage era apologista da revolução e tinha de ser punido exemplarmente. E ele era admirador de alguns dos princípios — liberdade, igualdade, fraternidade. Era um jogo da corda — uns queriam prendê-lo e puni-lo e outros queriam libertá-lo. Quem o queria libertar eram Seabra da Silva [companheiro de José de Barbosa em Coimbra], o primeiro-ministro, e outras pessoas que estavam mais ou menos ligadas à Maçonaria — o Rodrigo de Sousa Coutinho, que era ministro, e o Luís Pinto Balsemão, que também era ministro. Na outra fação estava Pina Manique, que era o intendente geral da polícia. Tinha um poder imenso e só prestava contas à rainha, D. Maria I. E nessa altura já nem à rainha, porque tinha enlouquecido. Pina Manique queria mesmo prendê-lo e puni-lo. E punição nesta altura já não dava fogueira, mas 20 anos antes dava. Mesmo assim, acho que Bocage arriscou muito.

Porque é que acha que o fez? Não teria completa noção das consequências, seria até talvez um pouco ingénuo? Ou era simplesmente corajoso?
Era um pouco de tudo isso. Também era corajoso, mas acima de tudo tinha sangue na guelra. Havia uma coisa que eram os “moscas”, agentes políticos que ouviam aquilo que as pessoas diziam [nos locais públicos, como os cafés e casas de pasto]. Apresentavam relatórios a Pina Manique e as pessoas eram presas. Os “moscas” devem ter tido um papel importante na sua prisão. Mas não foi só isso: esteve aqui um grande homem, um grande cientista e inovador, um iluminista na verdade, que se chamava [Vincenzo] Lunardi.

Um cientista e iluminista aventureiro chamado Lunardi (e como levou à primeira prisão de Bocage)

Lunardi foi muito mal tratado durante o tempo que esteve em Portugal.
Pois foi. E foi preso pelo Pina Manique, que olhou para ele e disse: este homem das duas uma, ou fez um pacto com o demónio, porque se Deus quisesse que o homem voasse tinha-lhe dado asas e não de, ou então pertence à Maçonaria. E sabe que acertou 50%?

Porque pertencia à Maçonaria?
Sim [risos].

Ou porque tinha feito um pacto com o demónio?
Não [risos], pertencia à Maçonaria. Pina Manique prendeu Lunardi, que era amigo de Bocage. Lunardi foi o primeiro homem a descolar de balão aerostático em Itália, Inglaterra, Escócia e Espanha. Depois veio para cá.

Era uma vedeta com fama internacional.
Era mesmo. Era uma pessoa com uma grande beleza física. As meninas caíam todas por ele e tinha um sucesso incrível — assim rezam as crónicas. Chegou aqui, o Pina Manique desconfiou dele e prendeu-o. Ele sofria bastante de ansiedade, subir num balão nesta altura era uma coisa muito complicada. Houve até muitos aeronautas que não conseguiram descer e foram levados. Era uma angústia muito grande que o Lunardi também interiorizou muito. Aqui em Portugal ficou várias vezes doente.

"Considerava-se que não era um bom exemplo para a juventude. Andava mal vestido, a vender os poemas na rua, se calhar lançava os seus piropos às meninas… E depois a poesia menos convencional que distribuiu pela clandestinidade."
Daniel Pires, especialista em Bocage

Mas o Pina Manique não acreditava na doença dele.
Mas ele apresentou vários atestados passados por médicos da câmara da rainha. Pina Manique dizia sempre nos relatórios que era um mentiroso, que estava a fingir. Prendeu-o e tratou-o de facto mal. O Bocage como era muito amigo, até da boémia, escreveu um poema criticando o Pina Manique sem citar o nome. Não se podia citar nomes de governantes. A teoria era a de que Deus tinha dado o poder ao rei, neste caso à rainha, e a rainha tinha usado esse poder e nomeado ministros, que não podiam de maneira alguma ser criticados nessa altura. Pina Manique viu perfeitamente que a crítica era para ele. Era bastante forte, falava na ignorância daqueles que não são sensíveis para a ciência, que prendem pessoas. Então o Pina Manique pensou: à volta cá te espero. E esperou mesmo. Em 1797, prendeu-o. Foi entregue à Inquisição. Foi muito bem tratado pela Inquisição, na realidade. Foi para São Bento, para o mosteiro dos Beneditinos, na atual Assembleia da República. Por trás disto esteve sempre o futuro D. João VI. Simpatizava bastante com Bocage e foi ele que deu a ordem a Pina Manique para que fosse reeducado [nos Beneditinos] e que se acabasse aqui [o caso].

Bocage voltou a ser preso.
Voltou a ser preso por pertencer à Maçonaria.

Essa detenção é muito curiosa. Foi denunciado pela filha de um amigo, Roque Ferreira Lobo.
Ele era muito amigo de Roque Lobo. Inclusivamente, mais tarde, houve uma filha, irmã da que o denunciou, que faleceu e Bocage escreveu-lhe uma elegia. Nesta altura, a Maçonaria estava muito divulgada. No governo, Sousa Coutinho, Luís Pinto de Balsemão, muitos médicos, muitas pessoas do clero regular, das ordens religiosas, e secular, que confessavam a família real, elementos da burguesia, muitos oficiais do exército [pertenciam]. E acima de tudo convém dizer que a Maçonaria nesta época não era de maneira nenhuma “a teia”, como muita gente diz hoje. Aliás, para se entrar era sempre fazer um juramento ao rei. O que é que havia de tão apelativo que levava muita gente à Maçonaria? Era a liturgia poderosíssima, que contrastava muito com a liturgia do catolicismo, que tinha muito menos vivacidade e que de alguma forma não era tão apelativa. Depois havia o mistério, o sentido do proibido. Isso também leva as pessoas. Era tudo feito com grande secretismo porque, até 1760, as pessoas eram torturadas e queimadas em autos de fé por pertenceram à Maçonaria. Houve bulas de dois papais contra a Maçonaria. De facto, Bocage nunca compactuou [com os poderes estabelecidos]. Penso que, com o seu talento todo, seria fácil para singrar, ser rico, ter um lugar muito importante na sociedade.

Esse talento chegou a ser reconhecido em vida?
Houve uma parte [da sociedade] que o reconheceu. Considerava-se que não era um bom exemplo para a juventude. Andava mal vestido, a vender os poemas na rua, se calhar lançava os seus piropos às meninas… E depois a poesia menos convencional que distribuiu pela clandestinidade, não se casou, frequentava os bares…

"Havia muita gente que na realidade reconhecia o seu mérito mas que não o podia dizer porque existia uma transgressão no seu quotidiano. Isso impedia muita gente que apreciava a sua poesia de o manifestar."
Daniel Pires, especialista em Bocage

Não era uma figura recomendável?
Não. Havia muitas pessoas que não o queriam ver como genro [risos].

Nem por perto.
Exatamente! [Risos].

Considera então que foi o facto de ele não ser um conservador numa época conservadora que ditou um reconhecimento apenas parcial da sua obra e também muitas das tragédias que acabaram por lhe acontecer?
Acho que é isso mesmo. Não era fácil. Teve uma vida… Aparece-lhe aquela doença aos 40 anos.

Ele que sempre teve uma saúde frágil.
Sim, muito frágil. O sistema nervoso também o seria. Tinha muitos amigos e muitos inimigos, muita insegurança, alimentação mais que precária, o aneurisma que lhe apareceu, galopante… Acabou por ter um funeral que foi pago pelos amigos, especialmente por um poeta setubalense, o deputado António dos Santos Silva. Mas depois houve o problema de ter acabado, olhe como Mozart, numa vala comum.

Uma vala comum na Igreja de Nossa Senhora das Mercês que já não existe.
Exatamente.

Até porque, quando Bocage morreu, ainda não tinham sido criados os primeiros cemitérios em Lisboa. Isso só aconteceu no século XIX.
Em 1834, nasceu o Cemitério dos Prazeres e a partir daí começou a ser proibido sepultarem-se as pessoas nos adros das igrejas, que foi o que aconteceu com Bocage. Foi enterrado numa pequena sepultura que não estava identificada. No final do século XIX, houve um industrial de carruagens que estava a montar uma fábrica e que comprou todo o terreno [do cemitério da Igreja das Mercês, que ficava entre a Rua dos Caetanos e a Rua Luz Soriano, depois de este ter deixado de ser utilizado]. Quando quis construir a fábrica, foi avisado pela população mais idosa que estavam ali sepultados escritores, entre eles Bocage, que era melhor avisar a Câmara. E ele avisou, só que a Câmara demorou meses, meses e meses a dar uma resposta. Ele tinha mesmo de ultimar a fábrica e acabou por remover os restos mortais daquelas pessoas todas. Acho que também lá estava o [Nicolau] Tolentino [de Almeida] e outros.

Parece que até na morte Bocage se aproximou de Camões, uma figura que admirava muito.
O paralelismo é bem feito. Eram marinheiros, andaram pelo Oriente, Macau, talvez pela China, a poesia, os amores… Não foram muito felizes nos amores, de facto. Poetas geniais, a própria miséria que terão vivenciado… Há vários pontos, é verdade.

Bocage foi sepultado numa vala comum do cemitério da Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que já não existe. O poeta morreu em 1805

GualdimG

O reconhecimento tardio de uma obra que “está muito além daquilo que era convencional escrever-se”

Quando é que se deu o reconhecimento da sua obra?
Diria que teve o seu mérito reconhecido nos últimos dez anos de vida, entre 1794 e 1805. Havia muita gente que na realidade reconhecia o seu mérito mas que não o podia dizer porque existia uma transgressão no seu quotidiano. Isso impedia muita gente que apreciava a sua poesia de o manifestar.

Foi então já depois da sua morte que ele foi realmente consagrado enquanto poeta.
Sim. Entretanto houve a ida da corte portuguesa para o Brasil, porque os franceses invadiram Portugal. O aparelho de Estado enfraqueceu e foi possível ir publicando uma série de poemas que a censura antigamente não deixava passar. Foram publicadas as obras mais ou menos completas. Depois houve um hiato em termos de publicação e, em 1853, houve um grande homem, literato e intelectual chamado Inocêncio Francisco da Silva, que publicou pela primeira vez a obra completa de Bocage em seis volumes. Depois, olhou para aquilo, e viu que faltavam os poemas eróticos, os poemas crítico-sociais, os satíricos mais incisivos. Então o que é que ele fez? Como era funcionário público e não podia assinar o chamado sétimo volume, saiu anónimo com essa poesia toda. A poesia erótica de Bocage só foi publicada 50 anos depois de ter morrido.

E houve outra coisa que costumo sempre dizer e que escrevo sempre que posso: quando saiu a poesia erótica, Inocêncio Francisco da Silva deparou-se com um caderno de 50 poemas que dizia “poesia erótica de Manuel Maria Barbosa du Bocage e de Pedro José Constâncio” e que os reproduzia sem por os nomes de cada um deles. Não se sabia quem é que tinha escrito o quê. Constâncio era uma pessoa que tinha problemas mentais provocados pela sífilis, mas era um bom poeta e discípulo em termos poéticos de Bocage. Imitava muito bem aquilo que Bocage escrevia. Aquilo que se conhece dele é só poesia pornográfica, mas verdadeiramente pornográfica. O Inocêncio, não sabendo destrinchar o que era de um e o que era de outro, pôs tudo nas poesias eróticas de Bocage e deixou uma nota [a explicar].

O que me fez alguma espécie foi como é que uma pessoa que escreveu um manifesto feminista [“Cartas de Olinda e Alzira”], que reivindica o prazer da mulher, que fala de casamentos de conveniência à revelia dos afetos, que defendeu o estatuto da mulher de forma tão energética escreveu poemas tão pornográficos que são, ao fim e ao cabo, a instrumentalização boçal da mulher? Não bate a bota com a perdigota. O que fiz antes de publicar a obra completa foi correr todos os arquivos e acabei por encontrar os poemas pornográficos que são atribuídos a Bocage, que estão na Biblioteca Municipal do Porto com o nome de Pedro José Constâncio. Um mais um são dois. Então, quando publiquei o volume 3, o das eróticas, pedi que dividissem os poemas em três partes, com separadores a dividir o que é, o que não é e o que talvez seja de Bocage.

Começou por dizer que Bocage era um poeta à frente do seu tempo. Porquê?
Para já, porque era pré-romântico. A poesia dele está muito além daquilo que era convencional escrever-se, já pronuncia o Romantismo. Por outro lado, os valores [que defendia,] em termos de democracia, de liberdade, eram também diferentes da época. Num dos manifestos que escreveu, o iluminista [“Pavorosa Ilusão da Eternidade”], criticou a ausência de liberdade, a forma como os homens eram educados e também algum fanatismo religioso que havia na sociedade. Ele era a favor de uma religião, sem dúvida nenhuma, mas de uma religião mais libertadora do que aquela que existia na época. Ele pagou por isso. Não há dúvida de que pagou por isso.

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