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David Baker. "As apps de maior sucesso são aquelas que substituem as mães"

Professor, consultor e coach, David Baker especializou-se em tecnologia e emoções. Ao Observador, falou da vida online, da solidão, de Silicon Valley e das apps dos "solteiros de 20 e poucos anos".

David Baker é professor na The School of Life, organização especializada no desenvolvimento da inteligência emocional, em São Paulo e em Londres. Foi um dos fundadores da edição britânica da revista Wired, trabalhou durante 12 anos para o Financial Times e é uma presença regular na BBC Radio 4. Consultor e coach, esteve em Lisboa, na incubadora Second Home, para falar do impacto da tecnologia nas competências emocionais dos indivíduos e sobre o caminho que as empresas tecnológicas ainda têm de fazer neste sentido. Em entrevista ao Observador, explicou porque é que a tecnologia não tem emoções: porque a maioria das pessoas que estão por detrás destas empresas têm dificuldade em gerir as suas próprias emoções.

Sobre o sucesso das empresas de Silicon Valley, não tem dúvidas de que é um sucesso relativo: “As apps são sobre isto: sobre coisas que as mães lhes faziam há uns anos. E as apps que mais sucesso têm são, estranhamente, as apps que substituem as mães. Se a minha mãe estivesse em casa, ela dava-me boleia, provavelmente não precisava de chamar um Uber. Têm muita tecnologia e produtos que são incríveis, mas por exemplo, não têm boa tecnologia para o amor, sexo e relações”, explicou Baker.

David Baker esteve na Second Home, em Lisboa, a falar sobre a relação entre a tecnologia e as necessidades emocionais dos utilizadores

Uma das coisas que mais atraía as pessoas para a Internet era o anonimato, mas agora vivemos o contrário: estamos todos demasiado expostos com aquela que é a nossa pegada digital. É como se o feitiço se tivesse virado contra o feiticeiro. Foi isso que aconteceu?
Não sei se o feitiço se virou contra o feiticeiro ou se são os nossos valores que estão errados. Pessoalmente, acho que se virou contra nós, mas sinto que pertenço a uma minoria que pensa assim. Por exemplo, hoje andei por Lisboa sem telefone, porque realmente gosto de andar sem telefone e perguntar a alguém por sugestões. Mas há muitas vantagens em sermos vigiados: podemos encontrar os nossos amigos, usar o Google Maps. Acho que o que aconteceu tem a ver com a economia: nós não sabemos como pagar pelo email ou pelas redes sociais. Aliás, nós podemos pagar, mas não queremos fazê-lo. E, então, recorremos à publicidade. Se olharmos para as revistas, percebemos de onde as receitas da publicidade vêm, está lá impressa. Mas na Internet não é assim que funciona. Aqui, é descobrir como te consigo atingir a ti pessoalmente. E quanto melhor conseguir dizer aos meus anunciantes como é que eles conseguem alcançar aquela pessoa, mais dinheiro eles me vão dar. E eles precisam de dinheiro. Então, permitimos que eles saibam coisas sobre nós. Lembras-te de quando a Amazon começou a fazer recomendações? O quão erradas elas estavam? Até era cómico…

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A Amazon foi um grande exemplo de como este algoritmo de recomendações pode funcionar mal.
Exato, só que agora consegue trabalhar e é um ótimo exemplo da paródia que isto é. O algoritmo da Amazon é mesmo muito bom. O que posso dizer sobre a vigilância é: não acho que devemos ser vigiados, acho que todos nós temos direito a traçar uma fronteira entre o que é público nas nossas vidas e o que é privado. Acho que isso é um aspeto de inteligência emocional. Não parece lógico. A reposta lógica é quase nazi: se não tens nada para esconder, então não te devias preocupar. Mas isso é uma resposta idiota, porque… Conheces o livro “Circle”? No livro, há uma webcam que transmite 24 horas por dia o que alguns políticos estão a ver e a fazer. E assim que isto começa, as pessoas começam a perguntar: se estes políticos estão a usar isto, porque é que os outros não estão? O que é que eles nos estão a esconder? É exactamente aqui que estamos ao nível das redes sociais.

"Acho que este 'loop' do 'feedback' que se tem nas redes sociais está a fazer com que algumas pessoas depositem mais energia na vida que têm nesse mundo do que na que têm no mundo real."

Já não conseguimos fazer uma distinção entre a vida online e a vida real, pois não?
É óbvio que há uma distinção, mas as pessoas confundem-na. Acredito absolutamente que o mundo real, analógico e físico é o melhor mundo onde podemos interagir. Melhor do que o online. Acho que isto pode mudar quando tivermos mais tecnologia, mas, neste momento, nós os dois conseguimos sentir a temperatura que está nesta sala e esta conversa entre nós tem um certo flow emocional. Isto são coisas muito especiais no mundo e não acredito que os seres humanos vão beneficiar se reduzirem a quantidade de tempo que passam juntos, neste espaço físico.

Acho que a vida online é bastante excitante e interessante, mas é uma vida diferente. Não acredito que seja fácil transmitir emoções como a compaixão ou a compreensão. Se me contares agora que estás com um problema na tua vida, posso mostrar-te que não te julgo, podemos ficar um bocadinho silenciosos, eu certifico-me de que a porta está fechada. E todos estes gestos significam que estou a assegurar-te que vou confortar-te. E isso é muito importante. Se me escreveres isto, não vou poder dar-te nada disto. É por isso que temos emojis, por causa desta necessidade desesperante que temos.

Aquilo que vejo é que as pessoas estão ansiosas com duas coisas online: uma é o número de seguidores ou de gostos que têm. E a segunda tem a ver literalmente com as fotografias que as pessoas veem delas próprias online. Há muitas pessoas que consideram isto importante. Todos sabemos que é bom parecermos bem e termos muitos amigos, mas conheço pessoas — e estou a falar de adultos –, que passam muito tempo a pensar porque é que o seu número de seguidores ou de gostos não está a aumentar ou a reflectir naquela fotografia em que foram identificados, mas na qual não ficaram bem. Eles têm o direito de ficar ansiosos, porque o que fizemos no mundo online foi criar uma permanência — aquela fotografia vai lá ficar para sempre. Podemos ir a uma festa e estarmos desgraçados, as pessoas riem-se e dois dias depois já ninguém se lembra. Mas aquela fotografia torna isso uma coisa permanente.

Acho que este loop do feedback que se tem nas redes sociais está a fazer com que algumas pessoas depositem mais energia na vida que têm nesse mundo do que na que têm no mundo real. O maior exemplo disto é um bocado irritante e é quando as pessoas olham para o seu telefone quando estão a ter uma conversa com outra pessoa. Isto é insultuoso e sei que as pessoas não querem insultar as outras, mas sentimos como se fosse um insulto. E acho que isso é porque se estão a olhar para o telefone, não estão realmente a sentir-me, estão a ouvir-me, mas não a sentir-me. Há tanta comunicação entre duas pessoas além das palavras…

Acha que as novas gerações nascidas e crescidas nas redes sociais são menos sensíveis para este tipo de coisas? Crescem com as mesmas competências emocionais que aqueles que cresceram fora da Internet?
Eles crescem com muito mais competências do que nós, como a capacidade de gerir quantidades inacreditáveis de bases de dados e de comunicação. Provavelmente, também são melhores a prestar atenção a várias coisas ao mesmo tempo. Estou atento a isto porque estou a investigar este tema: estão as redes sociais a prejudicar as nossas crianças?

E estão? É um dos temas que tem sido mais discutido.
Muitas pessoas dizem que está a prejudicar, sim, e que temos de fazer alguma coisa em relação a isso. Mas quando fazes pesquisa, percebes que não está a fazer esse mal ou então que as estatísticas estão a ser mal entendidas. Muito provavelmente, parece que estão a prejudicar as nossas crianças, as pessoas até dizem que as crianças não estão a conseguir empatizar umas com as outras, porque estão sempre coladas aos ecrãs, mas a verdade é que conseguem. Ainda na semana passada entrevistámos uma adolescente de 15 anos que gere o tempo que passa online de uma forma mais madura do que a maioria dos adultos que conheço. Explicou-nos que percebeu que estava a perder horas de sono e que decidiu não estar online depois das 20h.

"Não acho que faça de nós pessoas mais tristes, mas acho que nos faz sentir que estamos sozinhos na nossa tristeza. E há certos sítios na Internet que nos encorajam a imaginar que estamos mais tristes do que na verdade estamos."

Mas nesse caso o papel dos pais e educadores também é importante. Não deviam pensar mais sobre como educar as crianças para esta vida online?
Sim, acho que devíamos fazer isto de duas formas: a primeira coisa que temos de perceber é que somos todos responsáveis pelo nosso bem-estar. Não podemos deixar isso sob a responsabilidade do Governo, do Facebook, dos nossos pais ou dos nossos amigos. No final, ninguém nos vai impedir de estarmos acordados a noite toda, só precisamos de perceber que nos sentimos horríveis de manhã quando isso acontece, que foi o que lhe aconteceu. Temos de ter controlo sobre a nossa vida. A pessoa que tem a maior responsabilidade sobre a nossa vida somos nós próprios.

A segunda coisa que nos vai acontecer é que vamos descobrir que estes itens que temos no nosso telefone são ferramentas. E isto é importante. Este telefone tem 10 anos, a Internet tem 30 anos e é maravilhoso… Tinha uns 25 anos quando surgiu a Internet e se me falassem dos smartphones pareciam, na altura, um filme de ficção científica. Muito provavelmente, a geração que está a nascer agora vai perceber que tudo isto são apenas ferramentas que temos. Todos temos em nossa casa um martelo ou um machado, mas não acordamos todos os dias de manhã a correr para eles. Pegamos no machado quando precisamos de cortar madeira. Acho que as redes sociais vão chegar ao ponto em que só as usamos quando precisamos. E quando não precisamos ficam apenas ali, no nosso bolso.

Uma das consequências negativas da revolução tecnológica pode ser a tristeza?
Acho que sim, mas houve sempre tristeza entre os seres humanos, faz parte da nossa natureza. Sempre tivemos esta sensação de perda, de que nos está a faltar alguma coisa e de abandono, de não estarmos completos. E tudo isto nos causa tristeza, ansiedade, depressão e frustração. Suspeito que o que se está a passar com o mundo tecnológico é que é muito fácil fazer duas coisas: a primeira é imaginar que toda a gente está a divertir-se imenso. Mas não acho que isso seja exclusivo da tecnologia, porque me lembro que, antes da Internet, eu sentia isso se, por exemplo, fosse passear, não tivesse dinheiro para nada e visse toda a gente nos restaurantes a beber champanhe. Acho é que, de alguma forma, nos traímos a nós próprios online. Se virmos que os nossos amigos estão constantemente a rir, divertidos, em viagens, a encontrar novos amigos, a levantar os seus bebés em fotografias… enquanto nós estamos sentados em casa, a escrever nos nossos computadores. Quão horrível é essa comparação?

Por isso, não acho que faça de nós pessoas mais tristes, mas acho que nos faz sentir que estamos sozinhos na nossa tristeza. E há certos sítios na Internet que nos encorajam a imaginar que estamos mais tristes do que na verdade estamos. A vida dos adolescentes é muito difícil, com muita pressão, hormonas e etc. Quase toda a adolescência é deprimida ou tem períodos de depressão, mas hoje é fácil chegar a uma sala de chat e escrever “acho que tenho anorexia” e alguém diz que sim. E de repente isso ganha eco e muito rapidamente estás convencido que estás psicologicamente muito mal, mas na verdade estás apenas com aquela que é uma infelicidade vulgar, como definiu Freud.

"O que acho que se está a passar com a tecnologia é que a tecnologia, por si só, não tem emoções e muitas das pessoas que estão por detrás da tecnologia também não têm muitas emoções. Há pessoas em Silicon Valley que acham que as emoções são uma coisa difícil, e ali encontram um sítio no mundo onde não precisam de ter emoções, porque podem programar."

A inteligência emocional tem muito a ver com este “tentar entender-me a mim e ao outro”. Com a facilidade da comunicação na era digital, estamos a tornar-nos mais preguiçosos nas nossas necessidades emocionais?
Sim, não sei se a palavra será mesmo preguiçoso, porque é uma palavra que faz um julgamento. Mas é difícil termos consciência das nossas emoções e acho que esse é um trabalho para a vida toda. Odeio a expressão “inteligência emocional”, porque parece que há um QI associado. No Ocidente, há esta cultura de achar que os pensamentos corporativos são muito mais importantes do que os emocionais. Por isso, tendemos a pensar que as emoções pertencem à esfera da casa e o pensamento cognitivo pertence à do trabalho. Tendemos a pensar de uma forma sexista que as emoções são para as mulheres e que a cognição é para os homens. Tendemos a achar que a forma certa de lidar com um problema é ter todos os dados e fazer um estudo analítico, mas as nossas emoções são igualmente presentes na forma como nós interagimos com o mundo e lidamos com vários temas, incluindo no trabalho.

Se agora estivéssemos muito ansiosos em relação um ao outro, a nossa conversa seria muito diferente da que a que estamos a ter agora e isso não tem nada a ver com dados ou análise. Isso tem a ver com os neurotransmissores que temos cérebro e leva a diferentes resultados. Esta conversa seria completamente diferente se estivéssemos ansiosos ou se nos apaixonássemos durante esta entrevista. Teria um terceiro resultado. Por isso, acho estúpido ignorarmos as nossas emoções, não é que eu agora consiga pôr aqui um muro nas minhas emoções, tem mais a ver com entender o efeito que as minhas emoções têm em mim e nas outras pessoas. Se eu vou ter um encontro com alguém sobre o qual não estou muito certo sobre o que sinto, essa emoção pode ser muito complexa e vai ser muito difícil descrevê-la. Mas este sentimento que tenho é válido sobre a forma como interajo com o mundo.

O que acho que se está a passar com a tecnologia é que a tecnologia, por si só, não tem emoções e muitas das pessoas que estão por detrás da tecnologia também não têm muitas emoções. Há pessoas em Silicon Valley que acham que as emoções são uma coisa difícil, e ali encontram um sítio no mundo onde não precisam de ter emoções, porque podem programar.

Mas isto está a tornar-se num dos maiores problemas atualmente se tivermos em atenção a broculture agressiva de Silicon Valley. Acha que esta é uma das principais razões?
Completamente. Acha que é uma surpresa haver sexismo em Silicon Valley? Eles não percebem como as emoções se desenrolam quando o utilizador é uma mulher ou um homem. Eles só conseguem ver a capacidade cognitiva para a programação ou algo do género.

"Um dos problemas da inteligência emocional é que é difícil de gerir, ao contrário da programação ou dos investimentos. Se, no final do dia, uma pessoa chega a casa a sentir-se mais confiante, não vai saber quantificar isso. E esse é o problema"

E como podemos mudar isto?
Eles têm muito poder. O que acho que está a acontecer agora é que, se imaginares é que alguns dos valores que fizeram Silicon Valley crescer — como inventar coisas muito rápido, tornar indústrias disruptivas, não ter regulação, não ter limites, apenas deixar que o mercados e ajuste, trabalhar muitas horas, priorizar a cultura de startups —  tudo isto teve muito sucesso, se pensarmos que criou uma indústria muito vibrante, que atraiu muito dinheiro e fez muito dinheiro. Parece então que estão a fazer isto da melhor forma. Não só isso, como, ao contrário do que aconteceu com o petróleo, os seus valores espalharam-se pelo mundo todo com a Internet.

Por causa disso, estão a influenciar-nos neste preciso momento, os seus valores em relação à tecnologia estão a espalhar-se pelo mundo todo. O que podemos fazer em relação a isto é dizer “não” e assumir que aqui na Europa queremos fazer as coisas de maneira diferente. Se calhar não queremos esta broculture. O que podemos fazer é perguntar-nos a nós próprios: estou a viver a vida que quero viver ou a vida que outras pessoas querem que eu viva? E, de alguma forma, estou a gerir a empresa que quero gerir? Se não quiser uma empresa sexista, não tenho.

É correto dizer que as empresas tecnológicas precisam de aulas sobre como lidar com emoções?
Sim, sem dúvida.  E a verdade é que estas pessoas, que estão no coração destas empresas — e estou a ser horrivelmente generalista aqui –, a maioria delas, na minha opinião, acham que é um bocadinho complicado estar em contacto com emoções. Porque a nossa relação com as emoções é difícil, muitas vezes, não há uma linguagem clara, nem sempre nos entendemos bem, é confuso, nem sempre encontramos as palavras certas para descrevermos o que sentimos. Um dos problemas da inteligência emocional é que é difícil de gerir, ao contrário da programação ou dos investimentos. Se, no final do dia, uma pessoa chega a casa a sentir-se mais confiante, não vai saber quantificar isso. E esse é o problema. Precisamos de encontrar uma métrica ou uma linguagem para as emoções.

E agora gostava de não ter dito isto, porque caio no erro de tornar isto uma coisa cognitiva. Temos de confiar no que sentimos ou no nosso instinto. Porque os nossos instintos regra geral estão corretos.

"A maioria destas pessoas são homens solteiros de 20 e poucos anos, que estão longe de casa e produzem apps que lhes entregam comida, os levam a algum lado, que lhes encontre um sítio para viver, que os entretenha. As apps são sobre isto: sobre coisas que as mães lhes faziam há uns anos."

Mas nós temos estas pessoas a desenvolver os produtos que toda a gente no mundo utiliza.
Não, não é isso. Eles estão a desenvolver um tipo específico de produtos que talvez a maioria das pessoas está a utilizar. Mas, antes de mais, é muito difícil encontrar milhões de pessoas a utilizar os produtos, porque estes produtos não são físicos. Há duas coisas sobre os produtos que Silicon Valley produz: são terríveis a resolver alguns problemas. Por exemplo: em São Francisco, há uma grande quantidade de sem-abrigos a dormir nas ruas, muitos com doenças psiquiátricas profundas e que agora estão provavelmente na cidade mais rica do planeta, em termos de ativos. Se perguntarem às pessoas de lá porque é que não conseguem usar o seu conhecimento para resolver este problema, eles não sabem. Há alguns problemas para os quais a abordagem de Sillicon Valley não funciona. Não se trata apenas de ter milhões de dados e uma app.

Se fores cínico como eu sou em relação a este mundo (e eu adoro o mundo de Silicon Valley), a maioria dos produtos que eles desenvolvem, sobretudo ao nível de consumidores, são uma espécie de “mãe de substituição”… E muito provavelmente porque a maioria destas pessoas são homens solteiros de 20 e poucos anos, que estão longe de casa e produzem apps que lhes entregam comida, os levam a algum lado, que lhes encontre um sítio para viver, que os entretenha. As apps são sobre isto: sobre coisas que as mães lhes faziam há uns anos. E as apps que mais sucesso têm são, estranhamente, as apps que substituem as mães. Se a minha mãe estivesse em casa, ela dava-me boleia, provavelmente não precisava de chamar um Uber. Têm muita tecnologia e produtos que são incríveis, mas por exemplo, não têm boa tecnologia para o amor, sexo e relações.

E porque é que acha que isso acontece? Tendo em conta que, nesse cenário de homens solteiros de 20 e poucos anos, esse é um aspeto importante.
Não conheço ninguém que goste realmente destas apps, como o Tinder. Sei que muitas pessoas as utilizam, mas não sei se gostam delas. E, muito provavelmente, vamos ser sérios em relação a isto: às vezes só queres sexo e provavelmente essas apps são perfeitas, e até pode ser melhor que as pessoas nem sequer conversem. Mas se o que quisermos for carinho e conversa, porque nos sentimos sozinhos e queremos alguém com quem partilhar a noite e abraçar, sem necessariamente ter um compromisso com ela… e ter uma app que tenha um menu próprio para algo como o carinho, não encontras. É muito difícil para nós expressarmos isso. Estas apps são muito pobres a comunicar necessidades emocionais, que por acaso, é um dos mercados com maior potencial na vida: as necessidades e suporte emocionais.

O que acontece é que antigamente podíamos ter uma pequena comunidade, mas, se nos sentíssemos sozinhos, íamos a um bar no bairro e lá encontrávamos pessoas, podíamos não falar com muita gente, mas falávamos com duas ou três pessoas que conhecíamos e esse era o marketplace do abastecimento das emoções. E agora, com a vida online, temos milhares de pessoas em casa com o computador, a sentirem-se sozinhas. Não sei se isto acontece aqui, mas no Reino Unido os bares estão a fechar, porque não têm clientela. E acho que isto mostra a incapacidade da tecnologia em satisfazer as necessidades emocionais. Isto acontece porque os fundadores destas empresas não compreendem as suas próprias necessidades emocionais.

A vida online está a prejudicar a nossa identidade?
A nossa identidade online parece que tem de ser muito bonita, mais bonita do que é.

E como nos podemos proteger disto?
Temos de nos proteger de nós próprios. Temos de perceber que a identidade online de todas as outras pessoas é sempre mais bonita do que aquilo que elas na verdade são. E quando entendermos isto, então podemos estar mais relaxados sobre como nos comportamos online. Há algo importante sobre a nossa identidade online, aquilo que conversámos sobre a permanência. Se te mandar uma mensagem, ela nunca vai desaparecer e isso é diferente de uma conversa. Logo, isso vai fazer parte da minha identidade e é um pouco triste, porque tenho a certeza que há 10 anos disse qualquer coisa que não diria agora, mas graças a Deus não o escrevi. Este é um aspeto da nossa identidade, e as nossas identidades são muito fluidas, mas o que fazemos online é que de alguma forma criamos uma base de dados que é enorme e insuperável. E acho que temos de dizer, enquanto cultura, que aquilo que alguém escreveu há 10 anos não é a definição da sua atitude agora. É assim que acho que nos protegemos: entendendo que as nossas identidades são fluidas, entendendo a mudança e que estes zeros e uns não são a nossa identidade.

"Acho que o que é mais interessante no mundo é o facto de termos criado uma Internet que se está a tornar supranacional. Em muitos casos, estas empresas estão acima dos governos. O que acontece é que não temos um corpo mundial que esteja acima deles."

Num dos seus últimos artigos escrevia que a Internet estava estragada. Está mesmo?
Sabe… Na verdade, este assunto é complicado e por isso é que quisemos olhar para ele. Em muitas formas, a Internet está estragada, sim. Se olharmos para a tecnologia, percebemos que não é perfeita, que é velha e simples, que funciona muito bem, mas que ainda tem muitas coisas que nos estão a causar problemas. Se olharmos para isto a um nível global muito grande, vemos o caso das notícias falsas, por exemplo. Basta olharmos para os ciberataques, para o phishing ou para outros tipos de crimes na Internet… Não acredito que haja alguma rede que não tenha criminalidade. Quando temos uma rede onde descobrimos que há criminalidade, percebemos que não temos regulação e uma polícia que nos diga que aquilo não pode acontecer.

Por agora, tendemos a resistir à regulação e isso pode estar certo, porque se não fosse assim a Internet não teria explodido e crescido como cresceu. Mas temos oportunidade de pensar nisto outra vez. Quando comecei a escrever esse artigo, achei que ia encontrar mais pessoas a pensar assim do que aquelas que encontrei. E, provavelmente, isso é uma indicação de que na verdade, o sistema pode estar correto.

Acho que a Internet está partida de duas formas: não é fácil para nós lidar com os problemas que surgiram na Internet e acho que vamos precisar de resolvê-los. A segunda forma é o facto de a Internet não estar disponível para mais de um terço das pessoas no mundo. É muito importante para nós imaginar o quão velha a Internet devia ser para toda a gente, mas isto é uma grande discussão, porque a Internet requer muita infraestrutura e ainda nem sequer definimos quem é que vai fornecer esta infraestrutura. Se olhares para o que está a acontecer na África subsariana, percebes que são empresas como o Google e o Facebook que estão a inventar formas de a levar, mas nós ainda não fizemos a pergunta: queremos que sejam estas empresas privadas americanas as responsáveis pela Internet em África? Isto lembra-me os primeiros dias da industrialização dos EUA, quando as grandes empresas começaram a disponibilizar os serviços que todos temos, como os caminhos de ferro, as empresas de seguros, os bancos. Deixámos que fossem eles a fazer isso e quando chegámos aos anos 1920, de repente, percebemos que tínhamos estas grandes empresas com um poder enorme. E foi muito difícil demolir esse poder, reduzi-lo.

Devíamos ter uma entidade que olhasse para a Internet e a regulasse?
Pessoalmente, acho que seria uma boa ideia, mas não tenho a certeza se seria prático. Acho que o que é mais interessante no mundo é o facto de termos criado uma Internet que se está a tornar supranacional. Em muitos casos, estas empresas estão acima dos governos. O que acontece é que não temos um corpo mundial que esteja acima deles. E os países estão a encontrar formas de responder a isto: a China construiu um muro à volta de si própria, no Brasil, onde trabalho, havia uma grande ansiedade sobre os americanos andarem a espiar empresas brasileiras e com as divulgações da NSA percebeu-se que andavam a espiar a Petrobras, por exemplo. E então foi aprovada uma lei em que… não sei se isto tecnologicamente fazia algum sentido, mas era como se estivessem a querer construir uma fronteira na Internet deles.

Acho que é este o caminho que a Internet vai fazer e suspeito que vai ser inevitável e terrível. Porque acho que vão existir cada vez mais países a construir este muro. Vamos ter de nos preocupar com a possibilidade de a Coreia do Norte atacar o nosso sistema de eletricidade? Precisamos de uma fronteira à volta da fonte de informação da Coreia do Norte? E assim que dizemos isto também estamos preocupados com a pornografia infantil e pomos um muro à volta dela também. E de repente tens um país que está a filtrar a Internet. A China faz isto, a Coreia do Norte também. Mas, no Ocidente, isto é uma coisa terrível. E o que vai acontecer é que cada vez mais países vão fazer isto, incluindo Portugal e o Reino Unido. E aí estamos a ir contra o valor principal da Internet: a informação precisa de ser livre. Lembra-se da vida antes da Internet?

"Devia haver uma grande organização global? A resposta é sim, acho que devia. Então, quem devia estar a liderá-la e que poder deve ter? Acho que construímos um mundo onde fomos além da complexidade e da simplicidade que eram precisas para fazer esta entidade que governasse a Internet."

Sim, lembro.
Lembras-te da retórica do tempo? Havia uma coisa que era a declaração da independência do ciberespaço. O ciberespaço era este espaço independente, sem leis. E era muito hippie, quase anarquista. E esta ideia de que a informação tem de ser livre, ou de querer ser livre, o que tem de interessante é que ninguém realmente clarificou o que quer dizer com este “livre”. Porque em inglês este “free” pode querer dizer “livre” ou “grátis”. Muito provavelmente queria dizer as duas coisas, mas quando as pessoas usavam esta expressão, não a definiam. Por isso, a ideia chave da Internet dos consumidores, a web, era que a informação devia fluir para onde quisesse ir, que se eu ou tu quiséssemos publicar informação dentro da própria Internet, ninguém nos poderia parar, era tudo livre.

O segundo problema é que o facto de ser grátis, de não termos de pagar nada pela informação, levou-nos a empresas como a Google e o Facebook e aos pesadelos com os quais temos de lidar agora. O problema é que na verdade não queremos que toda a informação seja gratuita. Porque não queremos que haja vídeos terroristas ou pornografia infantil a chegar a nossa casa. Sou gay e não quero que me apareça propaganda anti-gay em casa ou na casa dos meus amigos. Por isso, sim, quero que alguma informação não seja livre. E a partir do momento em que escreves isto, logo a seguir questionas-te: então, quem é que decide? Devia haver uma grande organização global? A resposta é sim, acho que devia. Então, quem devia estar a liderá-la e que poder deve ter? Acho que construímos um mundo onde fomos além da complexidade e da simplicidade que eram precisas para fazer esta entidade que governasse a Internet.

É uma pergunta que fica sem resposta?
Acho que vamos descobrir qual é a resposta quando estivermos a fazê-la. O problema é que vamos perceber que há muitas coisas diferentes a que chamamos Internet… A maneira clássica de pensarmos na Internet é alguém no YouTube ou no email, mas há muitas muitas redes que se sobrepõem. Em 2020, vamos ter 25 mil milhões de itens ligados uns aos outros. Por isso, podemos perguntar: quem é que controla isto?

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