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Dizia-se inquieto na música e na vida, sempre à procura de algo que ainda não encontrara. Muitas vezes, pelo menos na música, eram o silêncio, a contenção e a inquietação que alimentavam essa busca. Mas também o génio, que fez com que ao longo da sua curta (demasiado curta) vida deixasse discos e temas sem tempo nem prazo.

Há dez anos, a 10 de maio de 2002, o pianista português Bernardo Sassetti morria na sequência de uma queda de uma falésia no Guincho. Tinha apenas 41 anos e deixara gravados e editados quase duas dezenas de discos, muitos dos quais marcos incontestados do jazz nacional e da música portuguesa.

A sua música continua sem ser esquecida: nos últimos anos têm saído discos póstumos, quais pistas novas para continuarmos a descobrir o génio musical de Bernardo Sassetti. Estes são dez temas que nos permitem recordá-lo e continuar a ouvi-lo.

Bernardo Sassetti: um concerto, um disco e um trio para celebrar “o rapaz que nunca parou de evoluir”

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“Nocturno”

A carreira já começara antes e, nos anos 1990, Bernardo Sassetti lançara dois discos mais ancorados num jazz com ligações aos ritmos jazzísticos latinos e afro-cubanos: Salsetti (1994) e Mundos (1996). Com o disco Nocturno (2002) inicia-se uma nova fase na sua música, uma que Sassetti chegaria a descrever como “mais adulta” — e que o tornaria, nos anos seguintes, talvez o músico português de jazz (rótulo que viria a revelar-se redutor) mais reconhecido e elogiado por crítica e público.

Inaugurando em gravações um trio com que já tocava regularmente desde os anos 1990, e que evidenciaria em palco e em estúdio uma profunda sintonia — Alexandre Frazão na bateria, Carlos Barretto no contrabaixo, Bernardo Sassetti, claro, no piano —, Nocturno é um ponto de viragem e de afirmação musical. Além de outros temas como “Monkais”, “Quando Volta o Encanto” e “Reflexos”, o álbum inclui ainda composições como este tema título, exemplo magistral do apreço pelo silêncio e pela poesia da desaceleração e da contenção que o pianista continuaria a revelar nos anos seguintes. Melancólico, talvez, emotivo certamente, mas nunca monótono ou aborrecido, fazendo valer cada uma das notas tocadas.

“Inquietude”

Há quem o oiça como devastador e quem ali oiça placidez e serenidade. O que dificilmente alguém arriscará dizer é que o piano tocado por Sassetti pode ser ouvido sem assombro em temas como este “Inquietude”, “Never Let Me Go” ou “My Funny Valentine” (versão do standard homónimo), incluídos no álbum Indigo.

O disco, editado dois anos depois de Nocturno, é um álbum de piano solo em que Sassetti se revela no auge da sua criatividade como mestre da melodia jazzística. Influenciado pela solenidade da música clássica e pela emoção contida e outonal do piano magistral de Bill Evans, Sassetti cria em Indigo um itinerário emocional para dias de tristeza e de acalmia. Todo o disco é magnífico e deve ser ouvido do início ao fim, mas este tema é uma boa porta de entrada para o universo de Bernardo Sassetti — até pela forma como o termo do título se aplicava ao seu espírito inquieto.

“Capítulo III — À Espera de Alice”

O gosto pelo cinema marcou a vida de Bernardo Sassetti, tanto como compositor (pelo trabalho feito para este meio) quanto pessoalmente, enquanto cinéfilo e espectador devoto. Foi autor de bandas sonoras de filmes como o norte-americano “O Talentoso Mr. Ripley”, para o qual fez inclusivamente uma versão de “My Funny Valentine” com o ator Matt Damon, e de longas-metragens portuguesas como “Maria do Mar” (Leitão Barros), “Facas e Anjos” (Eduardo Guedes), “Quaresma” (José Álvaro Morais), “O Milagre Segundo Salomé” (Mário Barroso), “A Costa dos Murmúrios” (Margarida Cardoso) e “Alice” (Marco Martins).

Em 2005, a Trem Azul editava Alice, banda sonora feita para um filme de Marco Martins. O trabalho tornou-se um marco das composições para cinema e, também graças ao impacto do filme, popularizou ainda mais um músico que, partindo do jazz e fazendo música instrumental, tornava-se cada vez mais um autor reconhecido da música portuguesa. Do álbum, vale a pena prestar especial atenção à composição “Capítulo III — À Espera de Alice”, na qual é notório o apreço de Sassetti pelo silêncio que se vai esgueirando por entre as notas do piano.

“Ascent”

Em 2005 Bernardo Sassetti editou o álbum Ascent — um disco que voltou a juntá-lo em estúdio aos dois músicos do seu trio clássico, Alexandre Frazão e Carlos Barretto, mas em que aliou ao piano, bateria e contrabaixo dois outros instrumentos: vibrafone, tocado por Jean-François Lezé, e violoncelo, tocado pela violoncelista Ajda Zupancic.

Estreitando a ligação da música de Sassetti ao cinema (três dos temas são novas versões de composições que fizera para a banda sonora do filme “A Costa dos Murmúrios”) e à música erudita, o álbum evidencia o interesse do músico e improvisador por novos desafios e abordagens musicais. Gravado em “duplo trio”, como Bernardo Sassetti explicava num texto esclarecedor sobre o disco em que falava sobre “imagens em forma de música”, contém temas como este, que dá título e em que o piano soa mais nervoso, desassossegado, viajando por diferentes estados de espírito. É como se ao longo de apenas três minutos e meio estivéssemos a acompanhar uma cena de filme cheia de revelações, espantos e rotundas narrativas.

“I Left My Heart In Algândaros de Baixo”

Com a câmara fotográfica, com que andava habitualmente, Bernardo Sassetti fazia um exercício coerente com as suas buscas musicais: procurar sempre um enquadramento pouco óbvio, de modo a contar uma história nova. O seu fascínio pela fotografia contaminava a sua vida e as suas composições, mas resultou mais diretamente num disco editado em 2006: Unreal: Sidewalk Cartoon.

Bernardo Sassetti: os discos póstumos que aí vêm, o humor “sempre presente” e o piano que o levou aos Açores

O livro que acompanhava o disco incluía uma série de fotografias tiradas por Sassetti e digitalmente trabalhadas a posteriori por ele mesmo. Já o disco, gravado com um conjunto alargado de músicos (entre os quais o ensemble de percussão Drumming GP), revela um lado mais surrealista e humorístico de um músico cujo sentido de humor nem sempre é suficientemente lembrado. Arrojado e musicalmente complexo, o álbum incluía temas como este “I Left My Heart In Algândaros de Baixo”.

“Reflexos_Movimento Circular”

Exemplo feliz da capacidade de Bernardo Sassetti em viajar entre a melodia mais emotiva e a improvisação e exploração sonoras mais livres e imaginativas, “Reflexos_Movimento Circular” faz parte do disco Motion, um marco da carreira do pianista português.

O álbum, que chegou a ser descrito como uma espécie de filme visto em câmara lenta, foi editado em 2010 e gravado em trio por Bernardo Sassetti (piano) e pelos seus dois companheiros de muitas viagens musicais, Alexandre Frazão (percussão) e Carlos Barretto (contrabaixo). Além de temas como “O Homem Que Diz Adeus”, que é difícil não ouvir hoje com tristeza, inclui esta “Reflexos_Movimento Circular”, que soa a uma longa odisseia rítmica, com passagem por vários ambientes sonoros. É um bom exemplo de um exercício musical que Sassetti conseguiu aplicar com rara sensibilidade melódica: procurar, procurar e procurar mais ainda, nota atrás de nota, andamento atrás de andamento, com permanente insatisfação, as paragens musicais mais estimulantes. Quem ouve pode seguir na carruagem, espantado com a capacidade dos músicos darem voltas ao tema e resolverem-no de mil e uma formas distintas.

“Cantigas do Maio” com Carlos do Carmo

Não são assim tantos os exemplos de discos e gravações de Bernardo Sassetti com cantores ao longo da carreira — por comparação com alguns pianistas da sua geração, por exemplo, não foram muitas as vezes em que foi para estúdio (de alguma forma, até para palco) com escritores de canções e intérpretes vocais. Existem, ainda assim, alguns exemplos.

Em 2011, Bernardo Sassetti aparece no disco Mútuo Consentimento, de Sérgio Godinho, numa canção intitulada “Em Dias Consecutivas”. No ano anterior, porém, foi possível ouvir o seu piano acompanhado de forma mais constante por um cantor no álbum Carlos do Carmo Bernardo Sassetti. Gravado pela dupla, este trabalho de voz e piano traz novas versões de temas da música portuguesa (“Lisboa que Amanhece”, “Porto Sentido”…) e do cancioneiro mundial (“Avec Le Temps”, “Gracias a la vida”…). É um encontro feliz entre um piano tocado com o talento já mencionado e a voz única e também ela económica (sem voltas espampanantes, dizendo as palavras com sobriedade) do fadista. A versão de “Cantigas do Maio”, de José Afonso, é particularmente bem conseguida.

“Grândola Vila Morena” com Mário Laginha

Em 2004, Bernardo Sassetti gravou, com o também pianista Mário Laginha (cúmplice próximo, de música e de vida, com quem teve também o projeto 3 pianos — com Pedro Burmester), um álbum com a revolução dos cravos e a liberdade com coração. Integrado numa edição comemorativa dos 30 anos do 25 de abril, viria a ser reeditado dez anos depois pela Companhia Nacional de Música e ainda hoje pode ser encontrado com o título Abril a Quatro Mãos (Grândola).

Com versões de temas como “E Depois do Adeus” (Paulo de Carvalho), “Venham Mais Cinco” e “Era um Redondo Vocábulo” (José Afonso), mas também de “We Shall Overcome” e da “Internacional” por exemplo, o álbum é um encontro entre dois dos grandes pianistas da história da música portuguesa. E é impossível ficar indiferente à recriação afirmativa e poderosa a dois pianos de “Grândola Vila Morena”, a canção mais emblemática do 25 de abril de 1974 e do fim do Estado Novo.

“After The Rain”

Em 2019, saía postumamente o disco Solo, resultado de uma viagem de Bernardo Sassetti a São Miguel, nos Açores, onde passou três dias de volta de um piano particularmente especial que o esperava no Teatro Micaelense — um piano muito comentado entre pianistas quer da música clássica quer do jazz, pela beleza, mecânica e potencialidades de som.

A viagem, segundo a diretora da Casa Bernardo Sassetti (que editou o disco) Inês Laginha, aconteceu por pedido do pianista ao diretor do Teatro Micaelense. Bernardo Sassetti gravou então em São Miguel uma série de temas e chegou mesmo a começar um trabalho de produção do que ali gravara, mas acabou por abandonar o projeto e dedicar-se a outras edições. Do disco faz parte uma versão de “After the Rain”, tema do mestre norte-americano do saxofone John Coltrane, que por si só já justificava a edição. Deste álbum póstumo, também vale muito a pena ouvir “Costa dos Murmúrios”, por exemplo.

“Abertura”

A palavra “melancolia” ficou colada à música de Bernardo Sassetti sem descolar, graças a temas em que o pianista explorou o silêncio e procurou a contenção nas suas composições e improvisações. Convém porém não esquecer que quer em discos quer em palco, Sassetti era capaz de viagens rítmicas aceleradas igualmente estimulantes.

A inquietude, já referida, levava-o também a acelerações e desacelerações num mesmo tema — a cada aceleração, uma busca renovada por novos caminhos musicais, por novos clímax jazzísticos. Tal é particularmente notório em “Abertura”, o tema de arranque de um disco póstumo editado já este ano. Intitulado Culturgest, 2007, o álbum contém alguns dos momentos que marcaram um concerto dado na sala lisboeta naquele ano. Em palco estava o trio que marcou como poucos o jazz português: Sassetti no piano, Alexandre Frazão na bateria, Carlos Barretto no contrabaixo. Aqui ouvimos nove minutos de puro deleite, uma formação oleada e em perfeita sintonia permanentemente à procura de algo novo, maravilhando ainda quem escutava essa busca.