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Entrevista com o Chef chocolateiro, Francisco Siopa, no Penha Longa Resort. Sintra, 22 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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Francisco Siopa, chef executivo de pastelaria do Penha Longa Resort, é o curador da edição de 2022 do Festival Internacional de Chocolate de Óbidos

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Francisco Siopa, chef executivo de pastelaria do Penha Longa Resort, é o curador da edição de 2022 do Festival Internacional de Chocolate de Óbidos

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

"Disseram que seria sempre uma pessoa enfezadinha. 45 anos, 2 metros de altura e 130 quilos depois, sou o gigante da pastelaria"

Trocou a pastelaria de rua pela de hotel, e 3 mil euros ao mês pelo ordenado mínimo, aos 30 anos. Hoje, Francisco Siopa é uma referência e o curador do Festival Internacional de Chocolate de Óbidos.

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Tem dois metros de altura, mas não é por isso que já foi apelidado o “gigante da pastelaria”, um termo com o qual se identifica. Aos 45 anos, Francisco Siopa é o chef executivo de pastelaria do Penha Longa Resort, em Sintra, e também o curador do Festival Internacional de Chocolate de Óbidos (FIC) no ano em que o evento celebra duas décadas de existência — em 2022, diz querer mudar o certame habitual, torná-lo multicultural e dotá-lo de showcokings de diversas ordens. A ideia “é chamar o público todo”, sem descaracterizar a tradicional ode ao chocolate.

Órfão de mãe, Francisco Siopa cresceu na Ericeira ao cuidado dos tios. A escola não queria nada com ele. Mais apelativos eram os jogos de futebol e as tardes de praia que o faziam perder a noção das horas: com o 9.º ano concluído vai trabalhar a tempo inteiro para uma padaria local para ajudar no sustento da casa. Os próximos anos amassam-se ao sabor do pão e dos doces que vão sendo construídos nos horários intensos da chamada “pastelaria de rua”. Mas é em 2005 que tudo muda, com Siopa a deixar a familiaridade de uma carreira já longa pela pastelaria de hotel, com entrada direta na Quinta da Marinha: “Quando chego ao hotel pedem-me para fazer uma mousse de chocolate e eu pergunto onde está o pacote da Alsa”.

De formação em formação, e de cargo em cargo (com passagens pela Fortaleza do Guincho, mas também pelo Powerscourt, na Irlanda), o chef executivo cria um currículo vasto e expande a criatividade no universo do chocolate. Depois da loja em Cascais, no Mercado da Vila, está hoje também encarregue da marca de luxo The Chocolate By Penha Longa: “Também criámos um segmento de sobremesas estilo francês e estamos a elaborar produtos para fora: como o bolo rei, o folar da Páscoa, o bolo de chocolate by Penha Longa, os ovos da Páscoa… O grande boom foi em dezembro de 2020, durante a pandemia, porque tinha de arranjar maneira de ter a minha equipa a trabalhar, com a cabeça ocupada com alguma coisa — então, começámos a evoluir e a aumentar o portefólio”.

“Ó chefinho, tome lá aqui um bocadinho de chocolate”

Diz que foi no Festival Internacional de Chocolate de Óbidos, em 2005, que se apaixonou por chocolate.
O ano de 2005 foi a minha primeira ligação direta com o chocolate. Voltando um pouco atrás, o meu percurso vem desde 1995, numa altura em que desempenhava funções numa padaria local na Ericeira. Mais tarde, fui trabalhar para uma pastelaria em Mafra durante seis anos, era a Doce Camélia. Mas sentia-me um pouco infeliz… Não infeliz, eu gostava daquilo que fazia e era um bom profissional naquela área, mas havia um mundo à parte, diferente, que eu desconhecia e que queria desbravar — era a pastelaria de hotel, a pastelaria fina francesa, e também o chocolate. Já tinha feito alguns cursos de formação noturna no Centro de Formação Profissional para o Sector Alimentar na Pontinha e, em 2005, surge um convite para integrar um curso de esculturas em chocolate que durava seis meses e que culminava com o festival de chocolate — agora é feito no princípio do ano, mas os primeiros foram feitos em novembro ou dezembro.

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Mas aí já trabalhava com chocolate?
Trabalhava com o sucedâneo, é como se fosse o genérico do chocolate. O chocolate é um mundo: há 15 anos dizia que sabia tudo sobre chocolate, hoje digo que sei 10%. Todos os anos investigo e estudo, cada vez sei menos sobre o chocolate, o que é normal.

Lembra-se do primeiro chocolate que comeu ou tem noção de quando é que começou a adorar o chocolate?
Acho que ainda andava de berço… Sou fã de chocolate. Sou incapaz de passar um dia sem comer chocolate.

Mas o que é que acontece se passar um dia sem comer chocolate?
Normalmente quando começo a ficar com mais stress ou nervoso no hotel [no Penha Longa Resort], as minhas meninas aqui da minha equipa dizem “Ó chefinho, tome lá aqui um bocadinho de chocolate”. Sou viciado em Magnum Double de caramelo, adoro aquilo.

Não enjoa de chocolate?
Não, não.

Estava a contar que a participação no festival de Óbidos surge através de uma formação. O que fez para esse festival?
Sim, foi através dessa formação. Na altura nem sabia para o que é que ia. 2005 foi o início de tudo: foi no mesmo curso que conheci a minha esposa, apaixonámo-nos e casámo-nos. Para o festival fiz, com um colega meu, o Vasco Santana — eram peças enormes, com um metro e meio de altura.

"O senhor a fazer marcha atrás com a carrinha carregada de peças de chocolate, aquilo começa a patinar... bem, as peças começam a partir-se e nós aos gritos. Estou-me a lembrar como se fosse hoje: começámos a cantar aquela música "À porta daquela igreja"... [começa a cantar] ... Não vali a pena chorar."

Fez uma escultura à imagem e semelhança do ator Vasco Santana?
Exatamente. Fiz uma escultura dele no filme “O Pátio das Cantigas”, em que canta agarrado ao poste. O tema eram filmes e toda a gente foi escolher filmes estrangeiros; fui o único que escolhi um português.

Essa escultura em particular demorou quanto tempo a fazer? Houve algum percalço?
Houve, houve. Houve um percalço muito engraçado  — por isso é que de 2005 tenho sempre boas recordações. O festival abria a um sábado e levámos as peças para Óbidos com dois dias de antecedência. Contratámos uma empresa de mudanças para levar as peças todas acondicionadas, já prontas, acabadas. Chegámos a Óbidos e, de repente, começa a chover — na altura, as esculturas ficavam expostas naquela igreja lá em cima, no alto. O senhor a fazer marcha atrás com a carrinha carregada de peças, aquilo começa a patinar… bem, as peças começam a partir-se e nós aos gritos. Estou-me a lembrar como se fosse hoje: começámos a cantar aquela música “À porta daquela igreja”… [começa a cantar] … Não vali a pena chorar.

Foi cantar para espantar os males?
Sim. Parece que estou a ter um déjà vu. Entretanto, tirámos as peças com cuidado e depois passámos 48 horas a repará-las, dia e noite. Não dormimos.

Estava de dupla direta quando foi o festival?
Sim, mas isso para mim já é normal. As esculturas estiveram em exposição. Depois, estive também em 2006 e 2008 — a partir dessa altura nunca mais estive em Óbidos.

Entrevista com o Chef chocolateiro, Francisco Siopa, no Penha Longa Resort. Sintra, 22 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Franciso Siopa é o chef executivo de pastelaria do Penha Longa Resort

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

“Sou órfão de mãe. Foram os meus tios maternos que me criaram: uma criação normal dos anos 80, na Ericeira”

Voltando um pouco atrás, saiu da escola com o 9.º ano feito e foi trabalhar para uma padaria. Porquê? Qual era o contexto familiar?
Sou órfão de mãe. A minha mãe morreu quando tinha um ano e meio. Foram os meus tios maternos que me criaram, e ao meu irmão, desde muito novos. Mas sempre fui bem acolhido e tratado como se fosse um filho também. Foi uma criação normal dos anos 80, na Ericeira. A escola não ia assim muito bem comigo, gostava de ir jogar à bola com os meus colegas, íamos para a praia.

Ia para a Praia dos Pescadores, no centro da vila?
Sim, na altura era a minha praia preferida. Foi uma infância normal, a ajudar a minha tia com os animais, com o gado. A minha tia e os meus avós sempre tiveram forno a lenha, portanto, cosíamos sempre o pão ao fim de semana — é uma memória de infância, a lenha [no forno], o amassar do pão com o isco, que é a massa velha; fazíamos um bolo de iogurte ou de laranja ao domingo porque era o dia de estarmos todos juntos — quando vínhamos da missa ao meio-dia já tínhamos o bolo feito, normalmente também era o dia de comer o frango assado. Éramos todos pessoas do campo.

Vivia com o irmão, com os tios e…
… E com mais dois primos.

"Sou órfão de mãe. A minha mãe morreu quando tinha um ano e meio. Foram os meus tios maternos que me criaram, e ao meu irmão, desde muito novos. Mas sempre fui bem acolhido e tratado como se fosse um filho também. Foi uma criação normal dos anos 80, na Ericeira."

Ao domingo quem mais é que se juntava?
Tínhamos outros membros da família, que moravam em Lisboa, que se juntavam e fazíamos grandes festas ao domingo.

Era raro comprar pão?
Fazíamos pão em casa, tínhamos lenha perto de casa. Éramos felizes com o que tínhamos. Sou do tempo em que o padeiro ia lá a casa; às vezes, ele metia pão no cesto à porta. Mas ao domingo era sempre o franguinho assado no forno ou no churrasco, e tínhamos o bolo e o pão. Eram três elementos que para nós — e para qualquer pessoa do campo naquela altura, creio — resultavam em momentos de forte confraternização.

É verdade que chumbou dois anos na escola?
Sim. Miúdos novos, de 14-15 anos, na Ericeira… O verão, na altura, já se fazia em março. Não tínhamos relógio, esqueciamo-nos das horas na praia. Eu era um menino bem comportado, às vezes, mas sabia que ia chumbar por faltas a matemática, sabia que a diretora de turma tinha enviado a carta para casa… Não sei porquê, não sei o que é que aquilo ia adiantar, mas certo dia fiquei em casa à espera que viesse o carteiro para esconder a carta e depois falsificar a assinatura [da tia] — toda a gente da minha idade fez isso, toda a gente! Qual é o meu espanto quando estou em casa e está a minha tia a chegar mais o carteiro… Pensei “estou feito, é hoje que vou apanhar”.

Isso foi de alguma forma decisivo para ir trabalhar?
Não, não. Isso já foi no nono ano… No nono ano não sabia realmente o que iria fazer. Matemática nunca foi propriamente o meu forte. Na altura, o meu avô já tinha vindo morar connosco também e tomei a opção de deixar os estudos e ir trabalhar para ajudar em casa. O primeiro trabalho foi numa padaria perto de casa, a 500 metros, onde já andava a trabalhar aos fins de semana, a acartar lenha para os fornos — ganhava 5 contos por cinco horas.

"O primeiro trabalho foi numa padaria perto de casa, a 500 metros, onde eu já andava a trabalhar aos fins de semana, a acartar lenha para os fornos — ganhava 5 contos por cinco horas."

Lembra-se desses primeiros tempos na padaria a tempo inteiro?
Sim, estive dois anos nessa padaria. Nessa altura já era viciadíssimo em chocolate. Com 10 anos já ia de autocarro sozinho ter com os meus primos e com a minha avó que moravam na Encarnação, perto de Torres Vedras. Metia-me no autocarro, sozinho, lá ia eu descansado da vida, passava lá os fins de semana —no regresso a minha avó dava-me sempre uma moedinha, cinco escudos ou o que era, e eu ia ao supermercado e comprava uma tablete daquelas grandes de chocolate, uma embalagem branca com letras azuis. Então, no autocarro ia a comer aquilo. Chegava a casa com a boca cheia de chocolate.

Mas que idade tinha quando foi trabalhar para a primeira padaria?
Tinha 15-16 anos quando fui fazer os fins de semana, que foi o meu último ano de escola. Aos 16-17 comecei a tempo inteiro durante dois anos.

Entrevista com o Chef chocolateiro, Francisco Siopa, no Penha Longa Resort. Sintra, 22 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O chef está encarregue da marca de luxo The Chocolate By Penha Longa

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Seguiu-se uma pastelaria…
Sim. Saí da padaria, pensei que era mais do mesmo, sempre fui uma pessoa muito irrequieta. Tudo isto serve de ensinamento que estou agora a passar aos mais jovens nas escolas onde dou aulas [Escola de Hotelaria de Lisboa e Escola de Hotelaria e Turismo do Oeste] — é importante que nós, formadores, saibamos transmitir que as indecisões e os medos pelos quais os jovens agora passam não são só típico deles, também já foram da minha geração e afins.

Saí dessa padaria, não era aquilo que queria fazer para o resto da vida, muito menos entrar às dez da noite e sair às seis da manhã — um puto novo, com 18 e 20 anos, quer é ter as noites livres. Depois fui trabalhar para uma pastelaria de revenda durante dois anos na “Malveira dos Bois”, é a Malveira da Cristina [Ferreira]. Nessa pastelaria aprendi um pouco de pastelaria chamada de rua. Ao final de um ano sou chamado para ir para o serviço militar obrigatório, fui para o regimento de transmissões no Porto. Há uma história curiosa: o meu sargento fazia anos e, no último dia, fui com um bolo de 15 quilos dentro do comboio, de Santa Apolónia para o Porto.

O bolo chegou inteiro?
Chegou inteirinho. As pessoas ficaram a olhar para mim no comboio, a pensar “este gajo é maluco”. Não era um bolo de chocolate, era pão de ló com doce de ovos. O meu sargento não gostava de chocolate, lembro-me de lhe dizer “quem não gosta de chocolate não é de confiança”. Sofri por ter dito isso — obrigou-me a fazer flexões, saltos polichinelos, o diabo a sete.

Ainda acredita nisso, que quem não gosta de chocolate não é de confiança?
Não, só digo isto para provocar.

"Quando lá chego pedem-me para fazer uma mousse de chocolate e um leite de creme e eu pergunto onde é que está o pacote da Alsa. É verdade, eu não sabia fazer uma mousse de chocolate normal, caseira."

O que acontece no final desses três meses?
Saio do Porto, venho fazer especialidade em Mafra, volto para a pastelaria onde estava e passados seis meses despeço-me. Tinha 21 anos na altura. Lembro-me de chegar ao meu patrão e de lhe dizer que queria evoluir, queria aprender, e ele diz-me que não, que não me ensinava mais porque tinha medo que eu fosse exigir mais ordenado ou que alguém me viesse buscar. Demiti-me automaticamente com essa resposta. Nisso sou muito pão, pão, queijo, queijo. Depois, fui trabalhar para uma pastelaria na Ericeira, a Riviera, no centro, onde estive dois anos. Essa pastelaria faliu e é aí que vou para Mafra, para a Doce Camélia — é das casas por onde passei que tenho grandes recordações. Estive lá seis anos, devo muito ao Nelson que é o pasteleiro e aos proprietários, o senhor Humberto e a dona Maria, são pessoas fantásticas.

O que é que aprendeu com eles?
Eram pessoas de bem, que sempre me trataram como sendo parte da família. Não me tratavam com mero funcionário e era esse o espírito que eu gostava naquela casa. Havia alturas em que estava mais necessitado financeiramente e eles ajudaram-me.

“Quando chego ao hotel pedem-me para fazer uma mousse de chocolate e eu pergunto onde está o pacote da Alsa”

É sensivelmente aos 30 anos que deixa a Doce Camélia rumo a Cascais. É verdade que trocou um ordenado de 3 mil euros por 500 quando vai trabalhar para o hotel da Quinta da Marinha?
É verdade.

O que o fez mudar de ideias, mudar de vida?
Foi na altura do curso, em 2005. Onde conheço a mãe dos meus filhos. Apaixonámo-nos, decidimos casar e escolhi mudar de vida — já tinha chegado ao topo da pastelaria de rua, conseguia fazer tudo, conseguia pegar num bolo de aniversário, pegar num cartuxo com chocolate e desenhar o rosto de uma pessoa. Estava a sentir-me desmotivado porque era mais do mesmo. Então, surgiu a hipótese de vir, através de amigos da mãe dos meus filhos, para no hotel da Quinta da Marinha. Fui à entrevista com o diretor, Luís Ferreira, e disse-lhe que não percebia nada de pastelaria de hotel. Respondeu-me que tinha uma vaga para ajudante de pastelaria, que me pagava o ordenado mínimo e que dali a três meses voltávamos a falar. Foi aí que se deu o choque. Mudei-me de armas e bagagens para Cascais.

Falou em choque… Como foi a transição da pastelaria de rua para a pastelaria de hotel?
É um mundo à parte. Eventualmente, percebi que adapta-se melhor o pasteleiro de rua a um pasteleiro de hotel do que o contrário. O choque foi… quando lá chego pedem-me para fazer uma mousse de chocolate e um leite de creme e eu pergunto onde é que está o pacote da Alsa. É verdade, eu não sabia fazer uma mousse de chocolate normal, caseira. A partir daí fui tirar o 12.º ano à noite — a minha esposa convenceu-me —, bem como vários cursos de formação cá e lá fora também. Assumi a missão: “Não quero voltar a trabalhar com mixs”, tudo o que a pastelaria de rua usa— se for a uma pastelaria no Porto ou no Algarve, o bolo sabe à mesma coisa.

Como foi a primeira mousse sem mix?
Lembro-me bem, lembro-me da receita e tudo, que ainda hoje uso. Aliás, a minha tia já fazia mousse em casa, só que eu nunca quis fazer bolos em casa porque estava farto de o fazer na pastelaria. Realmente foi um choque muito grande, mas foi aí que percebi que era este mundo que queria seguir para o resto da minha vida.

"O mais violento numa pastelaria de rua — e que muitas vezes as pessoas não sabem dar valor — são as épocas festivas, é muito duro. Cheguei a um ponto, em 2005, que decidi que não queria mais isto. O dinheiro que recebemos é muito bom, mas nada paga trabalharmos 20 horas por dia durante 20 dias, de 1 a 20 de dezembro, e depois estar desse dia até ao 24 quase sem ir à cama, sem pregar olho. É muito violento, lembro-me de ficar parado em pé a enrolar o bolo rei."

Imagino que aí já se tenha sentido motivado, era um mundo novo.
Sim, completamente. O mais violento numa pastelaria de rua — e que muitas vezes as pessoas não sabem dar valor — são as épocas festivas, é muito duro. Cheguei a um ponto, em 2005, que decidi que não queria mais isto. O dinheiro que recebemos é muito bom, mas nada paga trabalharmos 20 horas por dia durante 20 dias, de 1 a 20 de dezembro, e depois estar desse dia até ao 24 quase sem ir à cama, sem pregar olho. É muito violento, lembro-me de ficar parado em pé a enrolar o bolo rei.

Consegue ser mais violento do que os horários da alta cozinha?
Sim, sim, completamente. Se há horários que são difíceis são os das pastelarias de revenda porque é um trabalho noturno — não há valor que pague uma pessoa poder descansar de noite.

Quanto tempo é que ficou no hotel da Quinta da Marinha, foram dois anos também?
Sim, a minha vida [profissional] é quase sempre assim, de dois em dois anos. Perdi-me ali seis anos na Doce Camélia. Na Quinta da Marinha saí por incompatibilidade com o chef de cozinha da altura — não gosto de faltas de respeito e pessoas sem tato, não sou obrigado a trabalhar com essas pessoas.

Entrevista com o Chef chocolateiro, Francisco Siopa, no Penha Longa Resort. Sintra, 22 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Começou a trabalhar numa padaria local concluído o 9.º ano de escolaridade

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Sentiu algum preconceito ao chegar ao mundo da alta cozinha sem ter formação na área?
Não… Senti um pouco em alguns sítios, ao princípio, porque era visto um pouco como não tendo um bom currículo — tinha um currículo de formações. Estava a começar aos 30 anos num mundo completamente novo. Diziam coisas como “este tipo vem da pastelaria de rua, com vícios”. O meu grande padrinho foi na altura a Onyria-Marinha. Realmente foram as pessoas que acreditaram em mim.

Depois de sair [da Quinta da Marinha] por incompatibilidade mandei emails para tudo quanto era sítio, nunca tive nenhuma resposta. Na altura, sem resposta de lado nenhum, pensei “perdido por 100, perdido por 1000” e mandei currículo para o Ritz e para o Penha Longa — dois dias depois ligaram-me do Penha Longa para vir a uma entrevista e entrei logo na semana a seguir.

Entra no Penha Longa em 2008…
Para abrir o restaurante Arola mais o meu amigo, o chef Júlio Pereira, que está agora na Madeira — como o mundo é engraçado, já não o via desde os tempos de escola, éramos colegas de escola na primária (a minha alcunha na escola era o bolinhas). Aí estava como pasteleiro de segunda.

Há muitas viagens pelo meio: em 2009 faço um estágio no Powerscourt, na Irlanda, numa unidade do grupo Ritz, e começo a lidar com pessoas de outro estrato que já te respeitam. É um mundo diferente lá fora. Cá em Portugal ainda há o síndrome de quanto mais subimos mais importantes e vedetas somos, lá é ao contrário. Lá conheci o chef Ludovic Lantier, com experiência em chocolate, e aí é que se dá mesmo o tcharam do chocolate! Foi o momento-chave. Quando regresso a Portugal, regresso com a ideia de que é mesmo aquilo que quero fazer. No início de 2010 ingresso na Quinta da Marinha porque iam abrir o Onyria que agora é o Martinhal. No final de 2010 tenho uma das piores notícias da minha família, que é a morte do meu pai na passagem de ano, foi muito doloroso.

"Entrei ali nuns meses de depressão, pouco, mas consegui ultrapassar com muita conversa para o céu — eu tinha feito as pazes com o meu pai há pouco tempo. Foi um misto de emoções muito intensas."

No dia 31 de dezembro?
No dia anterior, a 30. A mãe dos meus filhos é que tratou de tudo porque eu tinha uma passagem de ano para tomar conta, tinha de pôr isto a andar. Estive a trabalhar até ao dia 31 à noite.

Não deve ter sido fácil…
Foi difícil, foi preciso pôr uma máscara, mas o mais duro é que não fui capaz de chorar. Dois meses depois, no aniversário da morte dele, aquilo bateu e bateu forte…

Aí já chorou?
E não só. Entrei ali nuns meses de depressão, pouco, mas consegui ultrapassar com muita conversa para o céu — eu tinha feito as pazes com o meu pai há pouco tempo. Foi um misto de emoções muito intensas.

Entrevista com o Chef chocolateiro, Francisco Siopa, no Penha Longa Resort. Sintra, 22 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Siopa é conhecido pelos chocolates exóticos

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

“O meu problema, modéstia à parte, é que abro conceitos antes do seu tempo”

Quando é que surge a loja de chocolates em nome próprio em Cascais?
Depois de seis meses em Londres vou para o grupo Nabeiro durante três meses à espera de encontrar uma oportunidade na zona de Cascais, que surge quando há uma vaga para ingressar na Fortaleza do Guincho com o chef Vincent Farges como subchefe de pastelaria.

É nesse contexto que há um convite para ir a um evento na Madeira com vários chefs. Convidam-me para fazer uma prova com bombons com vinhos Madeira. Aí já tinha bombons com sabores mais exóticos, de fava, de azeite, de vinagre, tomate… já o fazia em 2008. Na Madeira — foi a primeira vez que fui à ilha — fiz uma prova com o professor Américo Pereira, que é o enólogo máximo do vinho Madeira e toda a gente adorou, estava lá o Alberto João Jardim, toda a classe política, e todos a perguntarem porque é que eu não abria uma loja. Quando volto do continente tenho esse sonho de abrir uma loja, falo com a mãe dos meus filhos e decidimos abrir uma loja em conjunto.

É aí que a loja abre no mercado de Cascais?
Abro dois anos depois. Tenho um convite para abrir uma loja do Mercado da Vila e as coisas começam a proporcionar-se e, para não estar num lado e noutro, falo com o chef Vicent Farges e saio. A loja não abre logo por politiquices, preciso de meter dinheiro e vou trabalhar para o norte da Noruega, num restaurante de sushi — um sítio lindíssimo, senti-me em casa, estive quase para pegar no telefone e dizer “amor, fecha tudo e vem para cá”.

A loja abre em 2015, ano em que também começo a dar formação na Escola de Hotelaria de Lisboa. Em 2016 o negócio começa a fluir, em 2017 por motivos pessoais decido fechar a loja — arriscámos demasiado cedo noutro negócio, em Lisboa, no Mercado de Campo de Ourique.

Financeiramente não correu como o esperado?
Sim, exatamente. Decidimos fechar para bem de todos. No mesmo dia em que decido fechar, a 18 de maio de 2017, liga-me o antigo diretor geral do Penha Longa a perguntar-me onde é que eu andava. E cá estou desde essa altura, com o intuito de ajudar a criar uma marca de chocolates cá dentro, The Chocolate by Penha Longa, e dar um volte face na pastelaria do hotel.

Entrevista com o Chef chocolateiro, Francisco Siopa, no Penha Longa Resort. Sintra, 22 de Março de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Siopa chegou a ter uma loja de chocolates no Mercado da Vila, em Cascais

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Atualmente, é o chef executivo de pastelaria do Penha Longa. Tem a seu cargo todos restaurantes do resort, incluindo o LAB e o Midori, ambos detentores de uma estrela Michelin. Como se concilia restaurantes tão diferentes?
Essa é a parte mais engraçada e a mais fácil de todas. Eu gosto de dar aulas porque consigo descobrir talentos inatos. A equipa é quase toda composta por ex-alunos. Hoje em dia a maior parte do chefs quer pessoas já formadas, eu sou o contrário, prefiro pessoas acabadas de sair da escola. Não procuro a estrela, mas sim o melhor perfil para determinado trabalho. Claro que tenho de coincidir com os chefs de cada restaurante — cada um deles tem o seu ego.

"De vez em quando tenho tempo para cozinhar, quando não estou a tratar de burocracias, que eu detesto. Sou um chef executivo presente, gosto muito de estar com as equipas."

Como é gerir as diferentes equipas?
Tenho uma equipa de 20 pessoas. Cada pasteleiro é alocado a cada restaurante. A Inês Freitas, que é o meu braço direito no LAB, vai ter um futuro brilhante, mas se fosse para outro restaurante se calhar não era a mesma Inês. Procuro a pessoa certa para o restaurante certo.

O Francisco tem tempo para cozinhar, para fazer a sua pastelaria e os seus chocolates?
De vez em quando, quando não estou a tratar de burocracias, que eu detesto. Sou um chef executivo presente, gosto muito de estar com as equipas — vou ao Eneko Lisboa todas as semanas. Sou um chef muito presente, até demais. Gosto de estar a desenvolver produtos e receitas com as equipas. No outro dia um cliente trouxe-me uma prenda, trouxe-me um chá da Amália da Companhia Portuguesa do Chá, e senti o cheiro daquilo e disse à Jennifer fazer uma sobremesa da Amália com este chá.

É verdade que tem alcunhas para as colegas?
Sim, a Jennifer é a minha “Jenny the cake queen”, depois tenho a Lara que é a minha “princesa”, a Madalena é a “nipónica”, são termos carinhosos. Eu sei o meu papel cá dentro, a minha responsabilidade, mas não gosto daquele afastamento, não é assim que lidero internamente.

Já fez que tipo de chocolates exóticos?
Com ovas de sardinha, vinagre ou grelos. Hoje em dia fala-se da alimentação com farinha de grelos e insetos… tive uma revista da Sábado, de 2006, em que fui fotografado com insetos… O meu problema, muitas vezes, modéstia à parte, é que abro conceitos antes do seu tempo. Se tivesse aberto a minha loja hoje era um sucesso.

Além de gerir os restaurantes, tem a marca de luxo The Chocolate by Penha Longa…
Isto começou com um desejo do diretor geral da altura, começou com uma coisa pequena e depois foi crescendo. Já comecei a incorporar os sabores que trouxe da minha loja de Cascais: foie gras, roquefort, açafrão, framboesa e manjericão, ovas de sardinha, fígado de tamboril… A minha linha é mais para harmonizar com vinhos [tranquilos] tintos ou brancos. Também criámos um segmento de sobremesas estilo francês e estamos a elaborar produtos para fora: como o bolo rei, o folar da Páscoa, o bolo de chocolate by Penha Longa, os ovos da Páscoa… O grande boom foi em dezembro de 2020, durante a pandemia, porque tinha de arranjar maneira de ter a minha equipa a trabalhar, com a cabeça ocupada com alguma coisa — então, começámos a evoluir e a aumentar o portefólio.

"Até aos seis anos fui muito doente. (...) 45 anos, dois metros de altura e 130 quilos depois… e estar no topo da pastelaria em Portugal, não tenho problemas em dizer que sou o gigante da pastelaria."

Não tem problemas em partilhar receitas?
Não, toda a minha equipa tem as minhas receitas. Partilho com quem merece.

Identifica-se com o termo “mestre chocolateiro”?
Não. Mestre chocolateiro é uma pessoa que se dedica só ao chocolate. Eu sou um pouco de tudo. Identifico-me da seguinte maneira: sou um tipo apaixonado pelo que faz, pela arte da pastelaria em Portugal e que tem a sorte de ter pessoas que gostam do que faço.

Mas que tem um especial apreço pelo chocolate?
Sim, tenho a minha paixão pelo chocolate, não tem rival.

Tem dois metros de altura e já foi apelidado “o gigante da pastelaria” pela imprensa. E com esse termo, identifica-se?
Sim. Não quero estar a ser imodesto, mas penso que sim. Até aos seis anos de idade sempre fui uma pessoa doente. A minha segunda casa era a Estefânia — a minha mãe morreu com cancro da mama, ela já estava grávida de mim quando foi diagnosticada, os médicos aconselharam-na a fazer o aborto e ela recusou. Ela partiu no dia 6 de janeiro de 77, dia de Reis… para quem é católico, ainda para mais sou muito freak com as datas… Até aos seis anos fui doente do estômago e dos intestinos, a minha alimentação era arroz, cenoura crua e cebola ralada. O médico disse à minha tia “vamos ver se ele passa a fase dos seis aos oito anos, se passar vai ser sempre uma pessoa enfezadinha e doente”. 45 anos, dois metros de altura e 130 quilos depois… e estar no topo da pastelaria em Portugal, não tenho problemas em dizer que sou o gigante da pastelaria.

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