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Eduardo Pitta: “Uma figura pública não tem a liberdade de não divulgar a orientação sexual”

A literatura portuguesa receia a “identidade gay”, diz o escritor Eduardo Pitta, que vai falar sobre o tema neste domingo, durante a Feira do Livro do Porto.

Talvez por causa da influência anglo-saxónica que conheceu em Moçambique nas primeiras décadas de vida – nasceu e cresceu em Lourenço Marques, atual Maputo, tendo chegado a Lisboa em 1975 –, Eduardo Pitta sempre foi uma voz desimpedida, por vezes polémica, reivindicando uma identidade homossexual que tornou matéria de criação literária desde a primeira obra, em 1974. Representa com destaque uma geração que pede aos intelectuais um especial dever de intervenção pública e daí que nesta entrevista ao Observador – concedida por escrito, com troca de e-mails durante dois dias – tenha considerado desoladora a quase inexistência de figuras públicas portuguesas assumidamente homossexuais.

O tema será objeto de uma palestra na Feira do Livro do Porto, neste domingo, ao meio-dia, nos jardins do Palácio de Cristal: “A Literatura Portuguesa Continua no Armário?”, eis a pergunta de partida para a intervenção de Eduardo Pitta.

Poeta, escritor e crítico literário, completou 70 anos há poucos dias e está a trabalhar na segunda parte das memórias, cujo primeiro volume, Um Rapaz a Arder, saiu em 2013. Defendeu há 15 anos, no ensaio “Fractura”, que Portugal não tem “literatura gay” à maneira britânica ou americana, com narrativas e narradores em torno de orientações sexuais minoritárias. Continua a pensar o mesmo e entende que falta coragem aos autores, mas não responsabiliza a crítica literária por isso. Contudo, avisa: há uma “regressão conservadora” nas novas gerações.

A literatura portuguesa está no armário?
Pode-se dizer que a literatura portuguesa continua no armário porque a maioria dos escritores nacionais não aborda nas obras respetivas a questão homossexual.

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No ensaio “Fractura” afirmou que há autores portugueses homossexuais a escrever ficção e poesia, mas não temos propriamente uma “literatura gay”. Mantém?
Mantenho a distinção feita nesse ensaio. Para haver literatura gay tem que haver autores, poetas e romancistas, que aceitem publicamente a sua condição, transpondo-a para o que escrevem. É uma escolha política.

A ficção e a poesia são, ou devem ser, meios para expressar posições políticas relativamente ao desejo erótico dos autores?
Toda a literatura é política. Até as madalenas de Proust são políticas [o narrador toma chá e come uma madalena no início de Em Busca do Tempo Perdido].

Que diferenças encontra entre a literatura de expressão LGBT portuguesa e a que se faz, por exemplo, em países anglo-saxónicos?
A literatura portuguesa de expressão LGBT é residual. Tirando os livros de ficção do Frederico Lourenço, dois ou três do Guilherme de Melo e, passe a pretensão, os meus, não existe ficção gay portuguesa. Mas o pouco que há não difere muito do que se faz no mundo anglo-americano. Sobretudo na poesia, onde temos alguns nomes fortes: o Armando Silva Carvalho, o João Miguel Fernandes Jorge, o Joaquim Manuel Magalhães, o Al Berto, a Helga Moreira, o Luís Miguel Nava, a Ana Luísa Amaral… É provável que alguns não gostem do rótulo, mas todos escrevem (ou escreveram) poesia politicamente implicada com a condição homossexual.

“A literatura portuguesa de expressão LGBT é residual. Tirando os livros de ficção do Frederico Lourenço [na foto], dois ou três do Guilherme de Melo e, passe a pretensão, os meus, não existe ficção gay portuguesa”

Em países de língua inglesa a expressão pública das identidades é habitual, por serem sociedades muito diversas, enquanto Portugal tende a ser culturalmente homogéneo. Concorda?
Não se trata de homogeneidade cultural. Trata-se, “grosso modo”, de hipocrisia.

Os autores portugueses não gostam de expor a sua intimidade nos livros?
Mas autor e narrador são coisas diferentes.

Ou seja, na sua opinião a literatura portuguesa está no armário porque a maioria dos autores não quer assumir em público a sua homossexualidade. Temem o preconceito? Acham que não serão levados a sério como escritores?
Suponho que sim. Nos poetas é mais fácil, porque a poesia é uma forma particular de metalinguagem. Mas os ficcionistas (romancistas e contistas) têm de ser claros. Isso obriga o escritor a dar os nomes aos bois. E o que vemos, sobretudo nos novos, é uma aposta em temas abstratos, em detrimento da vida real. Sobre o receio de não serem levados a sério como escritores, significa que não têm noção do que seja literatura. Quem é que não leva a sério o Genet ou a Ali Smith?

A assunção pública, neste caso por parte de escritores, não será um modelo de vivência da homossexualidade próprio do século XX? Divulgar e não divulgar a orientação sexual não são direitos equivalentes?
Como sabe, Walt Whitman publicou toda a obra no século XIX (a edição definitiva de Leaves of Grass é de 1891) e nunca escondeu que gostava de homens. Acerca de divulgar ou não divulgar a orientação sexual, não aceito que sejam direitos equivalentes. Um anónimo, seja marçano ou colaborador de call-center, tem essa liberdade. Uma figura pública, e por maioria de razão um intelectual, não tem. Entre nós a situação é mais perversa. Nos últimos cem anos, muitos escritores, de ambos os sexos, assumiram a sua homossexualidade em círculos restritos, para com isso ganharem “áurea”, enquanto na esfera pública não admitiam nenhuma referência ao facto. Mas não só escritores. Acontece com a maioria dos políticos (as honrosas exceções de Graça Fonseca [ministra da Cultura] e Adolfo Mesquita Nunes [ex-deputado do CDS] confirmam a regra), com artistas plásticos, atores, humoristas, cantores populares, desportistas, etc. É desolador.

"Um tanto por força da censura do Estado Novo, outro tanto pela hipocrisia dominante, os poetas portugueses especializaram-se em linguagem cifrada. Repare: a poesia de Eugénio de Andrade não tem género. Cesariny foi toda a vida um 'outsider' e sofreu o ónus da escolha que fez, mas, no fim da vida, foi nobilitado ao mais alto nível."

Que papel tem tido a crítica portuguesa no apagamento ou na divulgação da “literatura gay” e dos autores homossexuais?
Para ser justo, não podemos dizer que silencie. Apesar da linguagem crua, os meus livros tiveram boa receção crítica. Num registo menos transgressivo, os livros do Frederico Lourenço também foram bem aceites. Não se pode dizer o mesmo do Guilherme de Melo, mas, no caso dele, o preconceito era de outra natureza.

Qual era a natureza do preconceito contra Guilherme de Melo?
Nunca caiu nas boas graças da “intelligentsia”.

Quem são hoje os autores portugueses mais próximos do conceito “literatura gay”? Considera-se um exemplo?
São os autores que tenho estado a citar. Faço parte da tribo, claro.

Organizou a poesia completa de António Botto, que saiu num só volume em 2018 pela Assírio & Alvim. Foi ele o primeiro escritor português a expor o desejo homossexual na nossa literatura? Botto fez “literatura gay” ou foi um “escritor homossexual”?
Botto foi um escritor homossexual sem complexos, mas não fez literatura gay, embora a sua ousadia, nos anos 1920, tenha de ser lida como gesto político.

O que ficou de Botto na nossa poesia?
Ficou a capacidade de integrar quadras populares no discurso homossexual, abrindo a poesia portuguesa de Novecentos aos ritmos de outra música. Os quinze livros que compõem “Canções” seriam lidos em toda a parte se ele tivesse nascido na Inglaterra ou nos Estados Unidos.

Como a “existência dramática” de António Botto acabou numa avenida de Copacabana

Houve casos idênticos ao de Botto no século XX português? Que dizer de Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Ary dos Santos?
Casos idênticos não houve. Um tanto por força da censura do Estado Novo, outro tanto pela hipocrisia dominante, os poetas portugueses especializaram-se em linguagem cifrada. Repare: a poesia de Eugénio de Andrade não tem género. Cesariny foi toda a vida um “outsider” e sofreu o ónus da escolha que fez, mas, no fim da vida, foi nobilitado ao mais alto nível. Ary dos Santos foi expulso, ou esteve para ser, do PCP (o alegado incidente tem versões contraditórias). Sucede que nenhum dos três vem, como Botto vinha, do proletariado.

Que exemplos femininos temos de literatura gay ou de autoras homossexuais?
Não quero fazer “outing” [revelar em público a homossexualidade] de pessoas que estão sossegadas no seu canto… Em todo o caso, Judith Teixeira (contemporânea de Botto), Isabel de Sá, Helga Moreira e Ana Luísa Amaral, são exemplos de poetas lésbicas. Na ficção temos a Ana Zanatti.

Grandes mudanças legislativas ocorreram nos últimos anos: casamento entre pessoas do mesmo sexo, adoção, identidade de género. A literatura portuguesa já reflete isso?
Infelizmente, não.

Nos últimos meses, assistimos a um intenso debate sobre a “ideologia do género”. Acompanha o tema? Existe uma “ideologia do género”, no sentido em que valores e ideias sobre a sexualidade e a identidade estejam a ser impostos à sociedade?
Os círculos conservadores, pessoas, grupos e partidos que defendem valores associados à direita, agitam o papão da “ideologia de género” para travar alterações legislativas que visam abrir a sociedade a modelos comportamentais não normativos.

Prevê que nos próximos anos Portugal e a Europa conheçam uma regressão ao nível social e legislativo no reconhecimento e na aceitação de minorias sexuais e de género?
A regressão já começou. Os adolescentes do século XXI são muitos mais conservadores do que foi a minha geração.

Pode partilhar connosco os seus próximos passos literários?
Como sabe, escrevi um volume de memórias, Um Rapaz a Arder, publicado em 2013. O relato vai de 1975 a 2001, com “flashbacks” a 1969. O detonador do livro foi a forma como o processo de descolonização afetou os portugueses que viviam em Moçambique. Está feito. Gostaria de publicar um segundo volume que fosse de 2001 até aos dias de hoje. Já meti mãos à obra, mas datas não há, por enquanto.

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