O continente africano tem em uso nove marcas de vacinas contra a Covid-19 e alguns países estão a usar quatro delas em simultâneo (ou quase). Esta diversidade, potencialmente positiva aos olhos europeus, torna ainda mais difícil o avanço das campanhas de vacinação nestes países, porque cada vacina tem características específicas e requisitos de armazenamento, distribuição e administração próprios.
A presença de múltiplas vacinas em África adicionou uma camada de complexidade aos desafios logísticos e de promoção da toma da vacina”, diz ao Observador Phionah Atuhebwe, oficial médico da Organização Mundial de Saúde em África (OMS África).
Mais vacinas, todas elas ainda com autorizações de uso condicionadas, não aumentou a confiança da população, pelo contrário. Em alguns países, foram os próprios profissionais de saúde e líderes políticos a alimentar a desinformação que, em África tal como no resto do mundo, floresce nas redes sociais. Para contrabalançar, o crescimento do número de casos e mortes causados pela variante Delta aumentou a interesse na toma da vacina.
As dificuldades enfrentadas pelos países africanos, com sistemas de saúde já anteriormente debilitados, começam logo na fase de planeamento, com as autoridades a terem dificuldade em fazer contas aos recursos humanos, material e fundos necessários para dar resposta a uma empreitada deste tipo. Como resultado, alguns países não conseguiram ter acesso ao financiamento necessário.
“Durante esta segunda fase, a OMS está a trabalhar com os países para os ajudar a planear e avaliar melhor os custo e cumprimento do processo com o objetivo de evitar repetir estas situações”, acrescenta o responsável pelo grupo de Introdução de Novas Vacinas na OMS África.
Muitos países têm, ainda assim, histórias de sucesso para contar ou aprendizagens que podem partilhar com os países vizinhos. A Nigéria escolheu vacinar as pessoas nas localidades mais remotas com a vacina da Johnson & Johnson, de toma única, porque é muito dispendioso voltar a esses locais uma segunda vez. O Ruanda aproveitou a capacidade de armazenar e administrar vacinas em larga escala que já tinha desenvolvido para as vacinas contra o ébola. Angola apostou num pré-registo eletrónico para garantir que as pessoas sabiam onde e quando se podiam vacinar e SMS e QR code para facilitar a validação da segunda toma.
Desinformação quase fazia expirar a validade das vacinas
O Uganda começou a vacinar a população contra a Covid-19 no dia 10 de março de 2021, precisamente um ano depois de o país ter registado o primeiro caso. A ministra da Saúde, Jane Ruth Aceng Ocero, foi a primeira a receber a vacina, dando o exemplo não só à população, mas também aos profissionais de saúde.
As 964 mil doses de vacinas que o país tinha recebido permitiriam vacinar todos os profissionais de saúde (150 mil) e todos professores (550 mil), tanto dos serviços públicos como dos privados, e ainda sobrariam doses para as forças de segurança.
Afinal a vacina da AstraZeneca provoca mesmo coágulos sanguíneos. Mas podemos ou não confiar nela?
A vacina da AstraZeneca chegou ao Uganda mais ou menos na mesma altura em que se reportavam os casos de coágulos raros na Europa associados à toma da vacina, que os países suspendiam o seu uso e que a Agência Europeia do Medicamento analisava os dados disponíveis sobre efeitos adversos. Os ugandeses não estavam dispostos a tomar a vacina que os europeus tinham rejeitado, a começar pelos profissionais de saúde, que se tornaram veículos de desinformação, contou o ministro da Saúde Henry Mwebesa.
Com os relatos de efeitos secundários graves, ainda que raros, com muito poucos casos de infeção reportados no país naquela altura e com a memória de uma primeira vaga que teve poucos casos graves, os ugandeses não estavam motivados para serem vacinados. No dia 18 de março, uma semana depois de se ter iniciado a campanha de vacinação, menos de oito mil pessoas tinham sido vacinadas e o governo ugandês emitia uma nota para tranquilizar as pessoas em relação à vacina da AstraZeneca.
A gravidade da doença na segunda vaga, no entanto, mudou a mentalidade das pessoas, contou o ministro da Saúde aos restantes representantes africanos, no dia 24 de agosto, durante a 71.ª reunião do Comité Regional para África da OMS.
Esta mudança na aceitação da vacinação não é exclusiva do Uganda. “As novas vagas em África expuseram a maior parte dos países à magnitude da gravidade da doença e quanto isso pode ter impacto nos meios de subsistência e economias”, confirma Phionah Atuhebwe, da OMS África. “Isto serviu para, de forma geral, reduzir a hesitação nas populações e as vacinas são agora mais bem aceites do que na primeira metade de 2021.”
Usar políticos e órgãos de comunicação social pode não servir todos os públicos
Além do aumento do número de casos e gravidade dos mesmos, os países tiveram de apostar em campanhas de informação, combate à desinformação e aumento da confiança. Henry Mwebesa contou como recearam que as vacinas perdessem a validade antes de as conseguirem injetar nos braços daqueles que as deviam receber.
O Uganda jogou todos os trunfos: o Presidente, a primeira-dama e vários líderes religiosos e culturais tomaram a vacina em público, filmados pelas câmaras das televisões. Além disso, as autoridades trabalham em proximidade com os órgãos de comunicação social, tinham uma equipa pronta a dar respostas aos media, fizeram conferências de imprensa regulares e campanhas de combate à desinformação. O ministro da Saúde conta que levaram os jornalistas a um hospital para verem como estava realmente cheio de doentes com Covid-19 e que as ambulâncias à porta eram de doentes que já não tinham vaga. “Foram logo tomar a vacina”, disse Henry Mwebesa.
To fight #COVID19 misinformation, WHO has collaborated with@Twitter @Facebook @instagram@LinkedIn@Snapchat@tiktok_us@Pinterest@YouTube
to direct people to WHO or national health institutions when searching for coronavirus information ℹ️ #SaferInternetDay pic.twitter.com/48yZi4HUDH
— World Health Organization (WHO) (@WHO) February 9, 2021
No Gabão, o ministro da Saúde lamentou que dos países mais ricos chegassem poucas vacinas e muita desinformação, que depois era replicada dentro e além fronteiras. Mas Guy Patrick Obiang Ndong destacou a liderança do Presidente e as campanhas na televisão que, tal como no Uganda, incentivaram as pessoas a irem vacinar-se.
A escolha de influenciadores que levem as populações a aceitarem serem vacinadas não é fácil e não há nenhuma solução que sirva todos os países ou todas as realidades, lembrou Anthony Fauci, conselheiro do Presidente Joe Biden e diretor do Institutos Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas norte-americano, que também falou para os ministros da Saúde e representantes dos países africanos durante a reunião.
O imunologista norte-americano sabe bem do que fala tendo em conta a quantidade de desinformação, movimentos negacionistas e teorias da conspiração que circulam nos Estados Unidos. Além disso, à frente do combate à pandemia de Covid-19, primeiro com Donald Trump e, agora, com Joe Biden, Fauci sabe como, por vezes, as pessoas não confiam nos governos e nos líderes políticos. “As boas mensagens têm de ser dadas a nível comunitário”, disse, por líderes religiosos, médicos ou atletas, que recebam formação adequada para o fazer.
Em África, 10 organizações e 10 grupos africanos de verificação de fatos juntaram-se para detetar e desmontar mitos e informação falsa sobre a pandemia de Covid-19 e as vacinas. Até ao final de julho, a Aliança de Resposta à Infodemia em África tinha identificado e corrigido mais de 1.300 informações erradas ou enganadoras. Ver os estádios cheios de adeptos durante o Euro2020 não ajudou a corrigir a desinformação no continente africano, confessou Rabiu AlHassan, editor no Ghana Fact, numa entrevista publicada no site da OMS África.
Faltaram vacinas, meios e uma preparação adequada
Os carregamentos de vacinas que chegaram a conta gotas também não contribuíram para o aumento da confiança das populações, nem para a preparação dos países. As farmacêuticas comprometeram-se com prazos e quantidades com os países desenvolvidos que não foram cumpridas, pelo menos numa primeira fase, e isso reduziu e atrasou as doações destes países ao programa Covax, da OMS, que forneceria uma parte das vacinas que os países em desenvolvimento precisavam, conta Phionah Atuhebwe.
Com fornecimentos mais regulares por parte das farmacêuticas e com os países desenvolvidos bastante avançados na vacinação, há mais vacinas disponíveis para serem enviadas para os países africanos e o fornecimento a África está a acelerar. “Mas é preciso muito mais”, diz Atuhebwe ao Observador. “Instamos os países ricos a partilhar doses adicionais, além daquelas com que já se comprometeram, para o continente atingir as metas definidas pela OMS.” Ter 10% das pessoas totalmente vacinadas até setembro e 30% até ao final do ano — o que significa 820 milhões de doses (considerando vacinas de duas tomas).
Contrariamente à recomendação e apelos da OMS, porém, muitos países pensam já em usar as doses que têm para acrescentarem uma dose ao plano de vacinação dos seus cidadãos, levando Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, a lembrar que estão a dar um segundo colete salva-vidas a quem já o tem, quando há pessoas que não receberam nenhum. Uma ideia que já tinha sido partilhada pelo diretor-executivo do Programa de Emergências de Saúde da OMS, Michael Ryan.
Não chega, no entanto, ter as vacinas entregues num qualquer armazém central do país. É preciso distribui-las pelas várias regiões e centros de vacinação, ter sistemas de frio preparados para o efeito, profissionais de saúde em número suficiente e com treino para dar essas vacinas e, claro, materiais como agulhas e seringas. O que não foi assim tão fácil de conseguir.
“Financiamento insuficiente aos países para as atividades operacionais e de preparação também resultou em países mal preparados para a chegada das vacinas, o que se traduziu em taxas de utilização baixas”, explica o responsável pelo grupo de Introdução de Novas Vacinas na OMS África. Atuhebwe calcula que falte cerca de um milhão de dólares para preparação, implementação e operação e isto só com dados de 20 países (África tem mais de 50).
Os países mais ricos podiam ter disponibilizado mais dinheiro, respondendo ao apelo tantas vezes feito pelo diretor-geral da OMS, mas os países africanos também falharam nos pedidos, como referiu Abdou Salam Gueye, diretor regional de Emergência da OMS África, durante a reunião. E deu como exemplo os fundos da GAVI – Aliança de Vacinas, com o prazo de candidaturas prestes a expirar, e com menos candidaturas do que seria expectável.
A verdade, explica Phionah Atuhebwe, é que os países não sabiam preparar os orçamentos, não enviaram todos os documentos necessários ou depararam-se com processos de candidatura tão complexos e morosos que não conseguiram tratar deles ao mesmo tempo que lidavam com a pandemia. Na segunda fase, a OMS trabalhou de perto com os responsáveis destes países para os ajudar a fazer um melhor planeamento e avaliação dos custos previstos.
O financiamento foi um problema durante a primeira fase da campanha de vacinação porque os planos de gastos dos países omitiam, muitas vezes, despesas críticas, como o custo de contratar pessoas para administrar as vacinas, a administração, o armazenamento em cadeias de frio, a logística e o transporte para as vacinas chegarem às pessoas”, conta o membro da OMS África.
Esta é a oportunidade para melhor os sistemas de saúde
São Tomé e Príncipe, um pequeno país em desenvolvimento, também não estava preparado para o desafio que a pandemia de Covid-19 trouxe. Tiveram de reforçar a capacidade dos cuidados intensivos no principal hospital, na ilha de São Tomé, para dar resposta às infeções com o coronavírus, ao mesmo tempo que foi preciso continuar a dar atenção aos outros problemas de saúde pública. A malária chegou num momento invulgar, contou o ministro da Saúde Edgar das Neves, e tiveram de reforçar o esforço para encontrar as crianças que ainda não estavam vacinadas.
Apesar dos desafios — falta de preparação, de pessoal e de material —, Edgar das Neves destacou os aspetos positivos como a formação dada aos profissionais de saúde, as várias parcerias estabelecidas e a oportunidade de reforçar o sistema de saúde do país.
A Nigéria, por sua vez, conhecia bem os desafios de uma epidemia e já em 2014 tinha usado uma estratégia eficaz para a combater — neste caso, durante um surto de ébola. O ministro da Saúde, Osagie Ehanire, contou como o país não esperou por ter o primeiro caso no país para reagir. Começaram imediatamente a monitorizar o que se passava na China e quais podiam ser os pontos de entrada do vírus no país.
A 22 de janeiro de 2020, mais de um mês antes do primeiro caso ser registado no país a Nigéria já tinha preparado e difundido as primeiras recomendações de saúde pública em relação à pandemia. “Quando foi detetado o primeiro caso na Nigéria, tínhamos estabelecido a capacidade de fazer testes, treinado profissionais de saúde para gestão de casos, identificado centros de tratamento, preparado os materiais que precisávamos e começado a alertar a população para os riscos da Covid-19 e para as medidas de prevenção”, disse Osagie Ehanire.
O representante da Nigéria também destacou a importância das parcerias, nomeadamente com as organizações internacionais, e o trabalho coordenado da equipa formada por vários ministérios. A pandemia exigiu dos países um trabalho multissectorial sem precedentes, como referiu diretor regional de Emergência da OMS África. Ainda assim, Abdou Salam Gueye disse que faltou envolver mais o setor privado e a sociedade civil.
África enfrenta a terceira vaga da pandemia, que levou o número de casos de infeção registados no continente a ultrapassar os sete milhões, com um máximo de 250 mil casos diários em julho e mais de 6.400 mortes diárias em agosto. A vaga está a abrandar, mas o desafio continua longe de estar resolvido.
“Vai ficar mais difícil antes de ficar mais fácil”, disse John Nkengasong, diretor dos Centros para o Controlo e Prevenção da Doença (CDC) em África. “Mas já não estamos no pico da pandemia — em poucos meses fará dois anos — e temos de nos preparar para o futuro.”
Para o diretor dos CDC África, o continente precisa de começar a pensar como é que, no futuro, será autossuficiente (ou quase) no que diz respeito ao fornecimento de vacinas, tratamentos, meios de diagnóstico ou equipamentos de proteção individual, para não estar sempre dependente dos envios a partir de outros continentes. Depois, os países precisam de pensar que profissionais precisam no futuro, porque a tecnologia pode evoluir, mas continua a ser feita e operada por pessoas. E por último, ainda que não menos importante, Nkengasong defendeu que África “precisa de uma nova arquitetura de financiamento”.