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Enfermeira Isabel Pereira Lopes: "Não é fácil saber que estamos a expor a família. É um peso grande. Cheguei a ser preparada para o pior"

Isabel Pereira Lopes foi internada com Covid na UCI do hospital onde trabalhou. O marido, que terá sido infetado por ela, ficou em estado muito mais grave. Disseram-lhe que "podia não ser reversível".

Enfermeira diretora do Hospital de Cascais durante uma década, Isabel Pereira Lopes nem sequer estava a tratar de doentes quando no final de março do ano passado, ainda a pandemia não tinha atingido o país com a força que entretanto lhe conhecemos mas já estava o primeiro confinamento em vigor, foi infetada com o novo coronavírus. Tinha assumido há um ano um cargo de gestão, era — e é — diretora de Qualidade e Segurança do Doente do grupo Lusíadas — e apesar de não ter contacto direto com pacientes infetados, passava os dias entre clínicas e hospitais, em reuniões com equipas de médicos e enfermeiros.

Nunca saberá como, acabou por ser contagiada, percebeu-o um dia antes de ser testada, no momento em que levou à boca a primeira garfada do jantar e não conseguiu sentir o sabor da comida. Logo ali, à mesa com o marido e os três filhos e ainda antes de fazer a zaragatoa e de receber o resultado do teste PCR, a enfermeira, de 57 anos, temeu tê-los infetado. “Estando em confinamento, estando tudo muito em casa, eu seria o agente com maior probabilidade de levar a infeção. Lidar com isso não é fácil, saber que estamos a expor a família… Todos os profissionais de saúde, de há um ano para cá, devem viver com algumas angústias, muitos afastaram-se das famílias… Este é um peso grande que as pessoas carregam”, reconhece agora, mais de dez meses depois.

Não estava errada: não só teve de ser admitida no “seu” hospital, onde chegou a ter de receber tratamento na unidade de cuidados intensivos, como acabou por ver chegar o marido, também positivo, para um internamento que se prolongaria por mais de um mês e meio e que quase lhe custaria a vida. “A situação foi muito, muito, muito complicada. Muito. Cheguei a ser preparada para o pior, houve uns dias em que a equipa achou que a situação podia não ser reversível.”

Isabel Pereira Lopes esteve 13 dias internada, cinco deles nos cuidados intensivos

Leonel de Castro/Global Imagens

Em entrevista com o Observador, a enfermeira Isabel Pereira Lopes recorda os dias do seu internamento — que chegaram ao fim no dia em que o marido foi transferido para os cuidados intensivos, onde foi posto em coma induzido e ventilado —; o sofrimento por que passou até ao dia de maio em que, pela primeira vez, as notícias sobre o estado clínico dele foram positivas; as dificuldades pelas quais o viu passar durante a longa recuperação que se seguiu à alta e as sequelas que ficaram.

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Quase um ano depois, no trabalho, diz que uma das suas grandes preocupações é tentar sensibilizar as equipas para o outro lado, o humano, muitas vezes esquecido quando em causa estão vidas e as mãos já não chegam para todos os doentes. Muito porque sabe o que é estar em casa, com o coração nas mãos, à espera de um telefonema diário, único contacto possível com um familiar querido e internado. “Muitas vezes os recursos são escassos, por vezes o número de doentes por profissional é para lá daquilo que é suposto, mas devemos tentar, mesmo assim, dar alguma segurança e confiança aos doentes e às famílias. Porque as famílias também se sentem muito inseguras de ter os doentes nos hospitais, apenas entregues aos profissionais. Um telefonema pode não ser suficiente, mas se calhar uma vídeo-chamada pode já ser melhor.”

"Ir para um hospital onde se tem pessoas com quem se trabalhou, é um pouco entregar-se nas mãos de quem se conhece, ter a certeza de que vai ser bem cuidada e que vai estar bem entregue. De qualquer forma, não me ocorreu que a situação pudesse ter algum nível de gravidade, tinha aquela pressão no peito mas não valorizei muito, na altura também ainda não se falava tanto assim de toda a sintomatologia"

Março de 2020 parece que já foi há mil anos, tanto foi o que aconteceu entretanto. Consegue retroceder até lá e recordar o início? O momento em que percebeu que estava infetada?
Nessa altura estava a trabalhar com equipas de saúde, enfermeiros e médicos, na formação e preparação para eventualmente recebermos numa das nossas unidades doentes Covid, por isso nem estava a cuidar ou com alguma proximidade de doentes. E tinha algum cuidado. Nessa fase ainda nem sequer era obrigatório todos usarem máscara, a não ser quem cuidava mesmo dos doentes, e estávamos muito no início. Tudo era ainda muito novo e nessa mesma altura senti o que tinha todos os anos, tipo rinite, uma coisa mais alérgica, que não valorizei muito. De qualquer forma pedi às pessoas, nas reuniões de trabalho, para se afastarem, mas nunca interiorizei nem assimilei que pudesse ser alguma infeção. Mas diziam-me: “É melhor ir ver”.

Ouça aqui a entrevista na íntegra.

Enfermeira poderá ter contaminado o marido, que ficou em estado grave

Na altura havia muito poucos casos em Portugal ainda…
Sim, e eu só dizia: “Isto é igual a todos os anos, porque é que vou valorizar os sintomas?”. Mas entretanto comecei a perceber que a febrícula, que era uma coisa que não costumava ter muito, estava nos 37,5ºC; e houve um dia em que saí da Clínica de Santo António, onde estava, e fui fazer o teste a Lisboa. Mas descomprometidamente.

A achar que era só excesso de zelo…
Depois no dia seguinte recebi o resultado — era positiva — e foi nesse mesmo dia também que senti que a minha condição clínica estava a piorar. Sentia uma pressão enorme no peito, mas nunca tive aqueles sintomas que inicialmente toda a gente valorizava. Nunca senti nada disso, nem tosse, nem espirros, era mais a pressão no peito. E foi aí que a coisa, de um dia para o outro, descompensou, e fui para o Hospital de Cascais.

Que conhecia muito bem. Como é que foi entrar no Hospital de Cascais, para o lado de lá?
Inicialmente foi uma sensação de confiança. Ir para um hospital onde se tem pessoas com quem se trabalhou, é um pouco entregar-se nas mãos de quem se conhece, ter a certeza de que vai ser bem cuidada e que vai estar bem entregue. De qualquer forma, não me ocorreu que a situação pudesse ter algum nível de gravidade, tinha aquela pressão no peito mas não valorizei muito, na altura também ainda não se falava tanto assim de toda a sintomatologia.

Sei que entrei na urgência — que já era destinada só a doentes Covid —, fizeram os exames e estranhei um pouco porque fui a conduzir e quando lá cheguei já tinha mais de 39 graus de temperatura e nem me apercebi. Acho que a pessoa está tão mergulhada no trabalho que às vezes nem valoriza alguns sintomas… Para mim o que foi marcante foi o enfermeiro-chefe, que conhecia muito bem, chegar ao pé de mim e dizer-me: “Vais ter de ir para os cuidados intensivos”. Foi um choque muito grande, foi o primeiro choque: “Como é que, de repente, isto me acontece?”

"Todos os doentes estavam ventilados menos eu, tinha uma pneumonia mas o nível de gravidade foi controlado, e estive aqueles cinco dias nos cuidados intensivos a olhar e a ver através do vidro os cuidados que eram prestados. A tentar colocar-me no papel da equipa, a cuidar dos doentes; mas por outro lado a pensar: 'É isto que me vai acontecer? Tenho a família em casa'. Entretanto não queria assustar os filhos e o marido... Enfim, é um misto de sentimentos bastante complexo"

Foi direta para os cuidados intensivos ou chegou a estar em enfermaria?
Fui da urgência direta para os cuidados intensivos.

Mas nunca chegou a estar ventilada?
Não, estive sempre com oxigénio, tive muita sintomatologia, sabemos agora, neurológica, com dores de cabeça monumentais, e muita febre. Estive numa box dos cuidados intensivos, toda de vidro, onde podia observar toda a unidade.

O que é que viu nesses dias?
Tinha minutos em que era profissional de saúde e tinha minutos em que era só doente, em que vinha o medo — “Será que vou passar… O meu próximo passo é aquele filme”. Todos os doentes estavam ventilados menos eu, tinha uma pneumonia mas o nível de gravidade foi controlado, inicialmente pensou-se que pudesse até ser mais grave. Estive aqueles cinco dias nos cuidados intensivos a olhar e a ver através do vidro os cuidados que eram prestados. A tentar colocar-me no papel da equipa, a cuidar dos doentes; mas por outro lado a pensar: “É isto que me vai acontecer? Tenho a família em casa”. Entretanto não queria assustar os filhos e o marido… Enfim, é um misto de sentimentos bastante complexo.

E, lá está, tem marido e três filhos, que na altura ficaram em casa. Já temia tê-los infetado quando estava nos cuidados intensivos? Já pensava nisso?
Já. Tentei sempre acreditar que não, que não ia acontecer nada, mas a verdade é que já, porque quando me dei conta e fui fazer o teste foi quando de repente perdi o paladar e o olfato e isso foi muito óbvio. Sei que, nesse dia, cheguei a casa, sentei-me à mesa para jantar e percebi — “Ok, afinal isto já não é rinite”.

Sendo que na altura esses sintomas ainda nem sequer eram muito conhecidos, pelo menos pelo público em geral.
Já discutíamos, já sabíamos que havia uma grande parte das pessoas que referiam este sintoma, e tive essa consciência. E nesse preciso momento, à mesa, pensei: “Ok, estamos todos aqui à volta da mesa, se calhar já aconteceu”. E depois ficou aquela preocupação sempre ali, muito latente. “Eu estou, o que é que vai acontecer a seguir?”.

O marido de Isabel Pereira Lopes esteve ventilado e em coma induzido: "Cheguei a ser preparada para o pior, houve uns dias em que a equipa achou que a situação podia não ser reversível"

E o que é que aconteceu a seguir? Eles acabaram por fazer testes…
Sim, já eu estava nos cuidados intensivos, foram todos fazer teste. Os meus filhos mais novos estavam negativos, o mais velho estava positivo e o meu marido também. Entretanto o meu marido teve de ficar também internado, porque tinha pneumonia. Quando fez o teste foi também fazer uma TAC, estava com febre e tinha tido uns sintomas gastrointestinais apenas — também não teve tosse, não teve rigorosamente nada disso —, e quando fez a TAC perceberam que já tinha pneumonia e ficou internado. Nessa altura, fui transferida para a enfermaria.

Vocês ainda chegaram a estar no mesmo quarto, não foi?
Sim, já estava na enfermaria quando ele começou com esses sintomas e entretanto foi ter comigo, por isso estivemos juntos ainda uns dias, seis ou sete. Foi quando ele começou a agravar. Eu estava a melhorar e no dia em que tive alta ele foi transferido para os cuidados intensivos.

Como profissional de saúde viu isso tudo a acontecer. Apercebeu-se de que ele estava a piorar ou não chegou a ter essa perceção?
Percebi que ele estava a piorar, de tal maneira que comecei a telefonar a alguns médicos de referência do Hospital de Cascais. Porque se meteram também uns dias difíceis, passámos a Páscoa no hospital. Na segunda-feira a seguir ao domingo de Páscoa, estava já altamente preocupada, falei com os médicos e também com o diretor dos cuidados intensivos. Ele esteve a ver os exames e disse: “A situação está a agravar-se, vamos transferi-lo já para a unidade de cuidados intensivos”.

"Foi um processo muito doloroso. É que eu sabia bem o que se ia passar a seguir e ele não tinha essa noção. E tinha estado a assistir. Ver esta situação pelo lado profissional enquanto, por outro lado, está a tocar-nos à porta é difícil de gerir. Ele esteve nos cuidados intensivos, nem sempre ventilado, durante um mês e meio"

Sendo que a passagem dele por essa unidade não foi em nada parecida com a sua.
Não. Ele esteve três dias sem ser ventilado, tentaram manter o nível de oxigenação e compensar a situação mas não foi possível. Chegou a um momento em que tiveram de fazer a opção de ele ser ventilado. Ele não tinha sequer a noção, achava que estava a melhorar. Por tudo isso foi um processo doloroso, estar a explicar ao telefone o que é ser ventilado, para depois o médico também explicar exatamente o mesmo, falar com a família, com os filhos… Eu sabia bem o que se ia passar a seguir e ele não tinha essa noção. E eu tinha estado a assistir. Ver esta situação pelo lado profissional enquanto, por outro lado, está a tocar-nos à porta, é difícil de gerir. Ele esteve nos cuidados intensivos, nem sempre ventilado, durante um mês e meio.

Portanto foi mesmo uma situação complicada.
Muito, muito, muito complicada, muito.

Chegou a correr risco de vida?
Chegou. Cheguei a ser preparada para o pior, houve uns dias em que a equipa achou que a situação podia não ser reversível.

O que é que lhe disseram nessa altura?
Foram sempre altamente transparentes comigo, todos os dias tinha uma chamada da unidade de cuidados intensivos, do diretor da unidade, médico, que me falava de forma aberta e transparente da situação clínica. Por isso sabia a verdade, sabia o que se estava a passar, fui sempre acompanhando todo este processo, que teve um nível de gravidade muito grande, e houve mais do que um dia em que me disseram que não sabiam se conseguiam… se conseguíamos ultrapassar esta fase. Foram momentos difíceis.

"Estando tudo em casa, eu terei sido o agente com maior probabilidade de levar a infeção. Lidar com isso não é fácil, saber que estamos a expor a família... Todos os profissionais de saúde, de há um ano para cá, devem viver com algumas angústias, muitos afastaram-se das famílias... Este é um peso grande que as pessoas carregam, porque entre filhos, maridos, pais, pessoas de idade, há sempre um risco acrescido de se infetarem a eles próprios e de transmitirem a doença, e isso é uma carga pesada"

Na altura estava em casa ou tinha voltado ao trabalho?
Não, não tinha condições para voltar ao trabalho. Fiquei muito sintomática durante bastante tempo, só no dia 27 de abril é que fiquei negativa, e o cansaço… Em 13 dias que estive internada perdi 7 quilos, sentia uma falta de energia enorme, foi um processo de recuperação difícil. Até porque naquela altura a abordagem do doente não era a mesma que temos hoje; agora já sabemos mais da doença, já temos outro tipo de abordagem clínica.

Como foram esses dias em casa? Como foi receber esses telefonemas? Como foi viver com a ideia de que teria sido a própria Isabel a levar aquela infeção para casa?
Pensamos que sim, mas nunca ninguém consegue ter a certeza disso. Estando em confinamento, estando tudo em casa, terei sido o agente com maior probabilidade de levar a infeção. Lidar com isso não é fácil, saber que estamos a expor a família… Todos os profissionais de saúde, de há um ano para cá, devem viver com algumas angústias, muitos afastaram-se das famílias… Este é um peso grande que as pessoas carregam, porque entre filhos, maridos, pais, pessoas de idade, há sempre um risco acrescido de se infetarem a eles próprios e de transmitirem a doença, e isso é uma carga pesada. No meu caso em concreto, um dos filhos estava positivo. Quando cheguei a casa, mesmo debilitada e com um cansaço monstruoso, tivemos de definir circuitos, tivemos de dividir a casa ao meio e de fazer ali uma reunião familiar para definir o que eram as boas práticas, o que se podia ou não fazer. Dois filhos ficaram de um lado e eu e o filho infetado do outro.

Eles já são adultos, não é?
Sim, tenho os gémeos, que têm 20 anos, e o mais velho, que na altura tinha 28. Por isso tivemos de alinhar ali as práticas em casa. Correu bem essa parte. E depois, foi esperar… Só me lembro do dia em que fiquei negativa e em que saltaram todos para cima de mim. Eles estavam a sofrer imenso, com o pai assim, e todos os dias sofríamos em conjunto naquele telefonema, mas nem sequer podia haver abraços. Emocionalmente e afetivamente foi muito duro para eles também, e não foi de todo fácil gerir os afetos e estes sentimentos todos em família. Mas, por outro lado, se não fosse em família teria sido ainda mais difícil.

Até ao dia em que houve um telefonema bom.
Sim, acho que foi mesmo no primeiro dia de maio, finalmente houve uma notícia de melhorias. Finalmente tinham conseguido fazer desmame de ventilação e diminuição do volume do oxigénio. Um dos passos de que me recordo e que foi determinante foi quando ele fez a traqueostomia e nos dias seguintes houve claramente melhorias.

Por que motivo foi necessária a traqueostomia?
Em doentes que estão ventilados muito tempo a traqueostomia é quase mandatória. Para evitar sequelas e complicações tardias, deve ser feita a traqueostomia, e a ventilação muitas vezes melhora a partir dessa etapa. A situação clínica dele, ainda que com alguma gravidade, começou a melhorar a partir daí, foram os primeiros sinais positivos.

Quando é que o seu marido saiu finalmente da UCI?
Ele saiu dos cuidados intensivos a 26 ou 28 de maio, se bem me lembro foi num desses dias que foi transferido para a enfermaria. Tinha sido internado no hospital no dia 8 de abril.

Como é que estava quando saiu? Temos ouvido da parte de especialistas em cuidados intensivos que este tipo de tratamento não serve para todos os pacientes. O seu marido era saudável? Que idade tem? Tinha alguma comorbilidade?
Na altura tinha 55, era saudável, se calhar tinha um bocadinho de excesso de peso, mas não tinha nenhuma doença, não fazia nenhum medicamento, nada.

Nada que o colocasse no grupo de risco. Portanto quando ele saiu como é que estava? Se a Isabel perdeu sete quilos internada em enfermaria, nem imagino quantos perdeu o seu marido, internado e ventilado…
Perdeu 18 quilos. Foi difícil todo este processo, foi tudo uma aprendizagem. Voltar a andar, andar de andarilho… Foi fundamental a fisioterapia, mesmo da parte respiratória, porque tinha sequelas e também um cansaço muito grande. Esteve em risco de ter de fazer uma cirurgia torácica mas depois conseguiu melhorar, ficou com algumas sequelas mas que não interferem no seu quotidiano para já, portanto evitámos essa cirurgia, o que foi muito bom. Ficou com úlceras de pressão, teve de aprender a andar outra vez, perdeu sensibilidade numa série de locais, o que é normal nestes doentes que estão muito tempo em cuidados intensivos, é uma das complicações. Foi tudo um recomeçar.

"Estes doentes que estão muito tempo em cuidados intensivos e que passaram por situações muito graves, com risco de vida grande, ficam com um quadro como se fosse um stress pós-traumático. Essa é uma das complicações que podem acontecer. Ele também foi acompanhado e felizmente conseguiu reverter. E tem uma grande vantagem: consegue falar sobre as coisas todas e sobre os medos e sobre os pesadelos, o que é ótimo"

Entretanto já passaram largos meses, como é que está o seu marido agora?
Está muito bem, teve alta da fisioterapia agora, durante o mês de janeiro. Já recuperou, em termos de voltar a ter sensibilidade no couro cabeludo e nas pernas, diria que a 98%. Relativamente a feridas, às tais úlceras de pressão, também recuperou tudo, e algumas coisas que se mantenham ainda acho que é o tempo que vai apagar. Há uma nova forma de olhar e de valorizar as pequenas coisas da vida, que é uma aprendizagem que ele também está a fazer, até na forma de viver a vida com outra tranquilidade. Há uma diferença de estar e de olhar para as coisas, ele todos os dias vai falando um pouco sobre isso. Está muito mais calmo, tranquilo, houve uma fase difícil de pesadelos que já passou.

Os pesadelos são associados à doença ou a estes internamentos prolongados?
São associados a situações de trauma, estes doentes que estão muito tempo em cuidados intensivos e que passaram por situações muito graves, com risco de vida grande, ficam com um quadro como se fosse um stress pós-traumático. Essa é uma das complicações que podem acontecer. Ele também foi acompanhado e felizmente conseguiu reverter. E tem uma grande vantagem: consegue falar sobre as coisas todas e sobre os medos e sobre os pesadelos, o que é ótimo. Verbalizando acho que se consegue mais facilmente ultrapassar. Diria que neste momento ele está muito bem.

E dizia-me há pouco que sobram algumas coisas, mas que deverão ser ultrapassadas com o tempo. Que coisas são essas?
São coisas normais, que todos os dias vão aparecendo e que o lembram outra vez de onde esteve e do que lhe aconteceu. Há memórias que nós gostaríamos de guardar numa caixinha e de voltar a pegar nelas mais à frente. Neste caso não é possível, todos os dias há alguma coisa. Ainda por cima estamos a viver um contexto tão difícil, e, neste momento, muito pior. Se naquela altura achávamos que nos tinha caído o mundo em cima, afinal estávamos muito longe disso, não é? No dia a dia, o que é que ouvimos de manhã à noite? O que é que se ouve em todo o lado? Qual é o grande medo e receio? Todo este contexto não deixa guardar tudo aquilo que se passou. Pelo contrário, vive-se muito. Mesmo assim acho que ele está a lidar muito bem com isso, apesar de ter algum receio da situação atual — nós não sabemos se ficamos com imunidade para sempre.

Mas serão tudo problemas do foro psicológico, não do neurológico?
Não. Diria que há pequenas coisas que podem ainda sentir-se mas não me parece nada de grave, no dia a dia vou-me apercebendo de pequenas coisas, de que ele também se apercebe e que vão melhorando todos os dias.

Temos ouvido falar muito nas sequelas da Covid, que muitas vezes são coisas que não têm nada a ver com a génese de um vírus respiratório. 
Acho que este momento ainda não é a altura de conseguir ter a informação toda e de fazer um balanço sobre o que fica em termos de sequelas, ainda está tudo muito focado na situação crítica. Esse balanço vai fazer-se à frente, quando tudo isto se esbater mais e tivermos dados suficientes para poder ter essa análise. A ciência vai dizer-nos mais alguma coisa sobre tudo isto.

Atualmente, no seu trabalho, como é que está a situação?
Todos os dias temos reuniões entre nós, no grupo Lusíadas, além das notícias e dos colegas que vão telefonando de outros hospitais, uns a perguntar se podemos receber doentes, outros a perguntar se temos enfermeiros para ajudar. O contexto continua a ser difícil, este grau de incerteza na gestão diária do número de doentes que entra nas unidades, se estão ou não positivos; do números de profissionais que estão ou não positivos — todos os dias há mais um ou dois que ficam doentes, entretanto vão regressando um ou dois… Este nível de incerteza é difícil e temos de ser resilientes o suficiente para conseguir gerir a situação. Nós não conseguimos dizer que hoje é branco e que amanhã é amarelo, por isso vamos ter de perceber se realmente é amarelo ou não. É uma gestão ao dia, o nível de resiliência e o sentido de missão que os profissionais de saúde têm que ter, e ainda esta vontade de querer ajudar sempre, são importantíssimos para conseguirmos levar tudo isto a bom porto. Mas na perspetiva dos profissionais de saúde e das organizações de saúde é uma prova de fogo muito grande.

"Acho que continuamos a ter espírito de missão, felizmente. Agora, obviamente que pelo meio, tal como na guerra, alguns vão ficando mais desgastados e com algumas lesões e vão ter de recuperar. Não sei qual vai ser no final o balanço de tudo isto, mas atrevo-me a dizer que os profissionais de saúde vão ter de ser muito cuidados depois de terem cuidado de tantos. Vão precisar de muitos cuidados, isto tem sido um grande desafio"

Sente que as pessoas estão cansadas e desanimadas? Fala nesse espírito de missão, o que é que prevalece?
Acho que continuamos a ter espírito de missão, felizmente. Agora, obviamente que pelo meio, tal como na guerra, alguns vão ficando mais desgastados e com algumas lesões e vão ter de recuperar. Não sei qual vai ser no final o balanço de tudo isto, mas atrevo-me a dizer que os profissionais de saúde vão ter de ser muito cuidados depois de terem cuidado de tantos. Vão precisar de muitos cuidados, isto tem sido um grande desafio.

Que tipo de cuidados é que lhes podem ser prestados?
Vão precisar de descansar, mesmo fisicamente. E psicologicamente. Isto tem sido uma violência muito grande para a qual ninguém estava preparado e ninguém sabia provavelmente os seus limites como profissional. Acho que isto foi uma prova aos limites individuais e coletivos. Individuais porque a pessoa acha que já chegou ao seu limite e no dia seguinte ainda está lá outra vez. Tenho relatos de alguns colegas exatamente a dizer isto, e de pessoas que me dizem “já não aguento mais”, mas a verdade é que estão lá na semana seguinte. E coletivamente numa perspetiva de que, em equipa, tudo é mais fácil de conseguir. Quando a pessoa está quase a desistir há alguém ao lado que vai lá, vão-se apoiando uns aos outros. Mas à frente vamos ver as sequelas que vão ficar também nestes grupos.

No seu caso, que durante décadas trabalhou na linha da frente com os doentes, e que agora está numa posição mais de gestão, como é que está a viver esta situação?
Diria que há quem esteja certamente a passar muito pior do que eu. Consigo ter uma função em que provavelmente não estou a ser exposta no dia a dia como outros. A minha grande preocupação é também passar para as equipas a preocupação com o outro, com o lado humano, porque quem está doente, sozinho, sem visitas… No meio de tudo isto, destas proteções individuais e das máscaras, como é que criamos laços e pontes de afeto com os doentes e as famílias? Acho que também é muito importante haver pessoas que estão preocupadas com isto, porque muitas vezes os recursos são escassos, por vezes o número de doentes por profissional é para lá daquilo que é suposto, mas devemos tentar, mesmo assim, dar alguma segurança e confiança aos doentes e às famílias. Porque as famílias também se sentem muito inseguras de ter os doentes nos hospitais, apenas entregues aos profissionais. Um telefonema pode não ser suficiente mas se calhar uma vídeo-chamada já pode ser melhor. Isto é muito importante, não podemos nunca descurar esta parte.

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