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O Observador acompanhou a intervenção da equipa de apoio domiciliário na área da saúde mental, "Cuidando Ilha Terceira", da Casa de Saúde S. Rafael, em Angra do Heroísmo, Açores. 3 de Novembro de 2022 Ilha Terceira, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Um dos projetos que o Programa Regional para a Saúde Mental nos Açores considera que deve ser mantido é a estrutura de apoio domiciliário "Cuidando Terceira"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Um dos projetos que o Programa Regional para a Saúde Mental nos Açores considera que deve ser mantido é a estrutura de apoio domiciliário "Cuidando Terceira"

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"Estamos a funcionar por carolice." As queixas de solidão, cansaço e falta de apoio no sistema de saúde dos Açores

Falta de financiamento pode condenar projeto que poupa milhares de euros ao serviço de saúde nos Açores. Médicos queixam-se de falta de meios e assumem cansaço. Novo programa não responde a tudo.

— “Concentre-se na nossa voz.”

Os clamores desesperantes de Vera Costa soam por toda a casa. Chora, mas não liberta lágrimas, e a articulação das palavras dilui-se nos seus queixumes. Ignora as perguntas que José Gomes, enfermeiro da Casa de Saúde São Rafael, na ilha açoriana da Terceira, lhe vai colocando sobre os acontecimentos dos últimos dias. Mesmo quando a mão de Sara Loureiro, psicóloga na mesma instituição, pousa sobre a sua e conquista momentaneamente a sua atenção.

Responde que sim a tudo — que tem tomado toda a medicação tal como prescrita pelo médico, que tem cumprido a promessa de sair da cama todos os dias e manter os autocuidados. Mas nada diz sobre o facto de ter encontrado o marido deitado no chão da cozinha, sem consciência e ensanguentado, a uns centímetros de onde está sentada agora. Nem do facto de Humberto ter sido retirado para São Miguel às portas da morte com um traumatismo cranioencefálico. E até já fala dele no passado (“Este era o quarto onde o Humberto dormia antes de morrer”), quando nos mostra uma fotografia do dia em que casaram e do quarto do marido. Naquele momento, porém, Humberto ainda permanecia nos Cuidados Intensivos do hospital de Ponta Delgada — o óbito do marido só viria a ser declarado dias deste episódio na casa de Vera. Mas a sua maior preocupação, naquele momento, é outra: quer companhia para ir aos correios fazer um depósito.

“Uma equipa só pode andar no terreno a acompanhar dezenas de pessoas se estiver dedicada a corpo inteiro, mas neste momento funcionamos com os nossos próprios recursos especializados”, justifica. O financiamento público já está protocolado, mas a portaria que desbloquearia o financiamento nunca foi publicada. “Estamos a funcionar por carolice, por uma grande força de vontade”.

— “Não se preocupe, nós ajudamo-la. Mas agora vamos conversar um bocadinho.”

Vera, 59 anos, pintou os lábios de vermelho, a mesma cor que escolheu para o verniz, vestiu um casaco de malha a condizer e colocou um coração de Viana ao peito. Sabia que hoje receberia uma visita, além da do pássaro amarelo e preto que todos os dias espreita pela janela da cozinha: Vera é utente da Casa de Saúde São Rafael e está a ser acompanhada, como o acontecia também com o marido, pelo projeto “Cuidando Terceira”, um programa implementado pela instituição em 2017 (replicando o que já tinha sido desenvolvido em Barcelos em 2009), em que uma equipa especialista em saúde mental presta apoio domiciliário a doentes referenciados. Normalmente, as visitas acontecem de duas em duas semanas. Desta vez, por causa do acidente de Humberto, José e Sara decidiram marcar um encontro extra.

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O Observador acompanhou a intervenção da equipa de apoio domiciliário na área da saúde mental, "Cuidando Ilha Terceira", da Casa de Saúde S. Rafael, em Angra do Heroísmo, Açores. 3 de Novembro de 2022 Ilha Terceira, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR O Observador acompanhou a intervenção da equipa de apoio domiciliário na área da saúde mental, "Cuidando Ilha Terceira", da Casa de Saúde S. Rafael, em Angra do Heroísmo, Açores. 3 de Novembro de 2022 Ilha Terceira, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR O Observador acompanhou a intervenção da equipa de apoio domiciliário na área da saúde mental, "Cuidando Ilha Terceira", da Casa de Saúde S. Rafael, em Angra do Heroísmo, Açores. 3 de Novembro de 2022 Ilha Terceira, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR O Observador acompanhou a intervenção da equipa de apoio domiciliário na área da saúde mental, "Cuidando Ilha Terceira", da Casa de Saúde S. Rafael, em Angra do Heroísmo, Açores. 3 de Novembro de 2022 Ilha Terceira, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

A psicóloga Sara Loureiro e o enfermeiro José Gomes visitaram Vera Costa, utente do projeto "Cuidando Terceira"

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Apoio domiciliário acompanha oito utentes, mas elegíveis são mais de 30

A continuação do projeto “Cuidando Terceira” é uma das recomendações que constam no Programa Regional para a Saúde Mental, um documento com orientações para a reestruturação do serviço regional de saúde na área da saúde mental coordenado pelo médico psiquiatra Henrique Prata Ribeiro e concebido numa parceria entre o Governo Regional dos Açores e a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD).

Algumas das medidas sugeridas no documento já estão a ser desenvolvidas: os médicos de saúde geral e familiar já estão a receber formação na área da psiquiatria mediante inscrição e o programa está aberto a clínicos de outras especialidades. E já está projetado o pátio exterior que será construído no hospital da Terceira. Mas, em entrevista ao Observador, o diretor da Casa de Saúde São Rafael, Marco Pavão, alerta: o projeto “Cuidando Terceira”, mencionado no programa, não está a ser financiado e a sua continuação depende disso.

Governo dos Açores e FLAD assinam protocolo para reformar saúde mental no arquipélago

“Uma equipa só pode andar no terreno a acompanhar dezenas de pessoas se estiver dedicada a corpo inteiro, mas neste momento funcionamos com os nossos próprios recursos especializados”, justifica. O financiamento público já está protocolado, mas a portaria que desbloquearia o financiamento nunca foi publicada. “Estamos a funcionar por carolice, por uma grande força de vontade”, confirma Sara Loureiro: “Trabalhamos com os recursos que temos, mas mais esticados; e dividimo-nos entre este projeto e as tarefas por que já somos responsáveis na casa de saúde.”

Duas semanas antes da queda que o viria a vitimar, e após anos de acompanhamento clínico, tinha conquistado um novo marco: depois de uma manhã de preparativos, saiu de casa pela primeira vez em 10 anos e passeou com a mulher, de mão dada, até à freguesia vizinha. A roupa que Vera vestiu no dia em que o Observador a visitou, à boleia de José Gomes e Sara Loureiro, foi a que tinha usado nesse dia.

Neste momento, os três profissionais de saúde do projeto “Cuidando Terceira” — um enfermeiro, um psicólogo e um psiquiatra — acompanham oito utentes. Visitam-nos de duas em duas semanas para auxiliar os doentes na sua transição da unidade de internamento para casa e, depois, na reinserção na comunidade. “Eu, enquanto enfermeiro, dou muito [medicamentos] injetáveis”, exemplifica José Gomes: “Mas um dos meus objetivos nas visitas domiciliárias não é administrá-lo. É conseguir que a pessoa utilize recursos como o centro de saúde para periodicamente ir fazê-lo de forma independente”. A ideia é diminuir as taxas de reinternamento e evitar o abandono terapêutico.

Os números têm demonstrado que o modelo funciona, mesmo com as alterações que foram introduzidas por causa da pandemia de Covid-19 — nomeadamente a suspensão das visitas domiciliárias e a substituição delas por acompanhamento telefónico. Em 2021, quando as visitas presenciais já tinham sido retomadas, mas sofriam suspensões quando se detetava um surto de infeções, 66,7% dos utentes sentiram-se mais incluídos na vida comunitária, 50% reportaram ter sentido uma melhoria na qualidade de vida e 83,3% assumiram sentir-se mais empoderados. Mais de três quartos dos doentes alcançaram todos os objetivos que a equipa tinha traçado no seu plano individual de trabalho; e as taxas de reinternamento desceram para metade.

O Observador acompanhou a intervenção da equipa de apoio domiciliário na área da saúde mental, "Cuidando Ilha Terceira", da Casa de Saúde S. Rafael, em Angra do Heroísmo, Açores. 3 de Novembro de 2022 Ilha Terceira, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Marco Pavão, diretor da Casa de Saúde São Rafael; Sara Loureiro, psicóloga; e José Gomes, enfermeiro

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Vera foi um desses casos de sucesso. Terceirense, chegou a emigrar para Toronto com o marido — ele era taxista, ela trabalhava numa fábrica e os dois costumavam caçar coelhos nas florestas canadianas nos dias de folga. Saturados dos invernos severos do Canadá, regressaram a Portugal e Vera foi então diagnosticada com esquizofrenia. O comportamento que o Observador testemunhou é típico da sua condição, contextualizaram os profissionais de saúde: o choro fingido é uma chantagem emocional — uma tentativa de sensibilizar terceiros para acederem aos seus pedidos. E age como uma criança quando quer ver os seus caprichos serem atendidos. Não é ela, é a doença.

Humberto caía frequentemente nessa tática. Vivia envergonhado pelos conflitos que a mulher protagonizava em espaços públicos, a ponto de Vera se ter tornado persona non grata. Cada vez mais isolado, resguardava-se em casa para evitar esses problemas. Acabou por desenvolver uma fobia social que o impediu de descer do último degrau das escadas de casa durante uma década. Mas duas semanas antes da queda que o viria a vitimar, e após anos de acompanhamento clínico, tinha conquistado um novo marco: depois de uma manhã de preparativos, saiu de casa pela primeira vez em 10 anos e passeou com a mulher, de mão dada, até à freguesia vizinha. A roupa que Vera vestiu no dia em que o Observador a visitou, à boleia de José Gomes e Sara Loureiro, era a que tinha usado nesse dia.

O Observador acompanhou a intervenção da equipa de apoio domiciliário na área da saúde mental, "Cuidando Ilha Terceira", da Casa de Saúde S. Rafael, em Angra do Heroísmo, Açores. 3 de Novembro de 2022 Ilha Terceira, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Vera Costa num passeio com a equipa do projeto "Cuidando Terceira"

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Desde que foi implementado, o projeto acompanhou um total de 20 pessoas com dificuldades semelhantes às de Vera e Humberto: a maioria dos utentes da Casa de Saúde São Rafael sofre de depressão, psicoses e fobias. Haveria dezenas de outras pessoas que poderiam beneficiar da entrada no “Cuidando Terceira”. Sem essa resposta mais alargada, algumas mantêm-se internadas por mais tempo para garantir que são acompanhadas e vigiadas; outras são efetivamente enviadas para casa, sujeitas a regressar pouco tempo depois ao hospital por instabilidade mental.

Governo dos Açores prepara reestruturação na Saúde com novo Plano Regional

A Casa de Saúde São Rafael estima que haja mais de 30 pessoas na Terceira elegíveis para a entrada no projeto; e que o número até pode ser maior porque a expansão do projeto poderia motivar a chegada de mais referenciações. Mas isso só seria possível com uma equipa dedicada exclusivamente ao apoio domiciliário. E, para isso, é preciso financiamento — um reforço que poderia trazer poupanças ao Estado, acredita Marco Pavão.

Porque é que esse financiamento não chegou, então? “Na minha opinião apenas por falta de vontade política até agora”, considerou Marco Pavão: “O projeto foi considerado pela secretaria como muito válido. O que nos foi dito é que o serviço regional de saúde ainda não estava robusto o suficiente para operacionalizar a nossa equipa e disseminar o projeto em todo o arquipélago”.

Cada visita bi-semanal custa ao serviço regional de saúde 45 euros. Os internamentos, no entanto, custam em média 1.300 euros. E são tanto mais comuns quanto mais surtos a pessoa desenvolver por abandono terapêutico — uma realidade comum quando um utente deixa de ser acompanhado com regularidade: “Estabilizar é tanto mais difícil quanto maior o número de surtos que uma pessoa sofre”, confirma José Gomes: “Envolve mais dose de medicação, mais dose terapêutica, e isso sai mais caro.”

Porque é que esse financiamento não chegou, então? “Na minha opinião, apenas por falta de vontade política até agora”, considera Marco Pavão: “O projeto foi considerado pela secretaria como muito válido. O que nos foi dito é que o serviço regional de saúde ainda não estava robusto o suficiente para operacionalizar a nossa equipa e disseminar o projeto em todo o arquipélago.”

Psiquiatria nos Açores sobrevive com parceria com privados há quase 100 anos

Neste momento, 97% das camas dedicadas à saúde psiquiátrica nos Açores estão concentradas nas casas de saúde. A dependência do sistema de saúde público com o setor privado é uma questão com raízes na história, conta ao Observador a diretora do serviço de psiquiatria do Hospital de Santo Espírito da Ilha Terceira e diretora clínica da Casa de Saúde do Espírito Santo — Irmãs Hospitaleiras, Margarida Moniz.

Vice-presidente do Governo dos Açores quer saúde pública a coexistir com privados

Até 1927, os doentes mentais eram “maltratados”, mantidos em caves húmidas com grades no antigo hospital da Terceira. Só com a fundação da Casa de Saúde São Rafael é que se deu “um passo em frente em termo da humanização dos cuidados em saúde mental”. Durante cerca de 20 anos, a instituição só recebia doentes do sexo masculino. Depois, abriu-se uma ala para mulheres, mas desempenhavam serviços domésticos. Nos anos 60, as irmãs hospitaleiras formam a sua própria casa de saúde — a segunda na ilha, dedicada exclusivamente ao sexo feminino.

Margarida Moniz garante que os doentes têm acesso ao espaço exterior porque são regularmente acompanhados por profissionais de saúde em passeios pelo jardim junto ao hospital. “Neste momento não me faz diferença nenhuma que haja um pátio exterior aqui”, confessou: “Não é ele que nos vai trazer essa equidade. Para ela existir tinha-se de recrutar recursos humanos. Essa é que devia ser a prioridade”.

Mas o hospital de Angra do Heroísmo só recebeu o primeiro médico psiquiatra em 1986 — até ali, a saúde mental estava aos cuidados de um clínico geral especializado em medicina interna, Hélio Flores Brasil, que adquiriu o título de psiquiatra graças à dedicação que demonstrou para essa área da saúde. Em 1992, foi contratada a primeira equipa médica em psiquiatria: eram quatro e Margarida Moniz era uma delas. Agora, é a médica psiquiátrica mais antiga da Terceira e confirma: as oito camas no serviço não bastam para todas as necessidades da região.

Entrevista a Margarida Moniz, diretora do serviço de psiquiatria do hospital do Santo Espirito da Terceira, e diretora clinica da Casa de Saúde das Irmãs Hospitaleiras. 4 de Novembro de 2022 Angra do Heroísmo, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Entrevista a Margarida Moniz, diretora do serviço de psiquiatria do hospital do Santo Espirito da Terceira, e diretora clinica da Casa de Saúde das Irmãs Hospitaleiras. 4 de Novembro de 2022 Angra do Heroísmo, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Margarida Moniz, diretora do serviço de psiquiatria do Hospital do Espírito Santo da Terceira

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“O nosso centro de adictologia está num contentor a ser gerido por um ótimo médico, mas a rebentar pelas costuras. Os doentes sobram para as urgências e nós não temos condições para os receber. Internamo-los quando há comorbilidade, quando entram em surtos psicóticos, mas não temos condições para mais”, relatou em entrevista ao Observador. Assim que são estabilizados, uma de quatro coisas acontece: são enviados para unidades terapêuticas no continente; colocados em acompanhamento nas casas de saúde; recebem alta para o hospital de dia; ou, no caso da toxicodependência, são encaminhados para o centro de adictologia para receberem metadona.

Uma das medidas propostas no Programa Regional para a Saúde Mental nos Açores prevê a construção de um pátio exterior no hospital da Terceira — uma questão de “equidade”, afirmam os autores do programa, porque esse espaço exterior existe em Ponta Delgada, mas não em Angra do Heroísmo. “O acesso ao espaço exterior por parte dos doentes psiquiátricos internados é considerado essencial”, pode ler-se no documento: “Este contacto com o espaço exterior não é apenas uma forma de ajudar a recuperação psicológica, mas também um direito humano do qual muitas vezes estes doentes se veem arbitrariamente privados.”

Margarida Moniz garante que os doentes têm acesso ao espaço exterior porque são regularmente acompanhados por profissionais de saúde em passeios pelo jardim junto ao hospital. “Neste momento, não me faz diferença nenhuma que haja um pátio exterior aqui”, confessou: “Não é ele que nos vai trazer essa equidade. Para ela existir ter-se-ia de recrutar recursos humanos. Essa é que devia ser a prioridade”, defende a diretora do serviço de psiquiatria do Hospital Espírito, na Terceira.

Acabou por ser rendida por um interno que assegurou o serviço na totalidade durante uma semana, para que a diretora pudesse viajar para Lisboa a fim de ser operada. Assim que regressou aos Açores, dividiu a tarefa com o médico: ainda em recuperação, assegurava as consultas de casos mais urgentes, e voltou a ser totalmente substituída pelo mesmo interno quando voltou a viajar para realizar a reconstrução mamária. Mas a quimioterapia fê-la enquanto trabalhava: “Isto é para ver como isto é duro nas trincheiras”.

Segundo a diretora do serviço, existem no hospital quatro psiquiatras fixos: ela própria; um médico espanhol que não entra para a escala de urgência; outro que faz três dias de consultas por semana e uma urgência por mês; e uma médica que está de baixa por ter uma gravidez de risco. Outros dois médicos vão à Terceira alternadamente uma vez por mês: trabalham dois meios dias e um fim de semana.

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É “bem bom”, diz Margarida Moniz, mas não chega para o volume de trabalho que o hospital tem recebido — muito menos quando, além do atendimento ao público, ainda é responsável por analisar juntamente com o tribunal os casos de inimputabilidade. E isso já teve consequências pessoais para ela, confessa: em 2016, diagnosticada recentemente com cancro da mama, esteve duas semanas entre telefonemas com colegas para que alguém a substituísse enquanto fazia tratamentos.

Acabou por ser rendida por um interno que assegurou o serviço na totalidade durante uma semana, para que a diretora pudesse viajar para Lisboa a fim de ser operada. Assim que regressou aos Açores, dividiu a tarefa com o médico: ainda em recuperação, assegurava as consultas de casos mais urgentes, e voltou a ser totalmente substituída pelo mesmo médico interno quando voltou a viajar para realizar a reconstrução mamária. Mas a quimioterapia, fê-la enquanto trabalhava: “Isto é para ver como isto é duro nas trincheiras.”

Bruno Seixas diz que trabalha “numa unidade unipessoal”. Está “sozinho, esquecido” e espera que “o momento presente corresponda ao bater no fundo”. Quando chegou do continente diz ter encontrado profissionais acomodados, alguns cansados, outros com perfis que considera pouco adequados aos cargos que desempenhavam. “Tinha várias opções”, atira: “Ou sobrevivia com eles, apesar deles, ou dizia basta”. Optou por sobreviver e focar-se nas consultas.

Um único pedopsiquiatra a tempo inteiro no público: “É anedótico”

São dificuldades como esta que alimentam o ceticismo de Margarida Moniz sobre o Programa Regional para a Saúde Mental nos Açores: “Falaram comigo de maneira muito breve. Pediram-nos opinião, escrevemos umas emendas, mas a versão final é quase igual à inicial.”

Esta é, de resto, uma queixa recorrente entre os médicos psiquiatras entrevistados pelo Observador — incluindo Bruno Seixas, médico no Hospital Divino Espírito Santo de Ponta Delgada (ilha de São Miguel), que segundo Henrique Prata Ribeiro não foi abordado numa fase inicial por não ser chefe de nenhum serviço hospitalar.

Mas que tem um papel que o próprio classifica de “anedótico”: é o único pedopsiquiatra a tempo inteiro no sistema público de saúde dos Açores. “É uma experiências sui generis”, admite: “Há mais de 11 anos pediram-me para me dividir  entre os Hospitais de São Miguel e a Terceira. Não havia nenhum pedopsiquiatra no hospital a não ser por protocolo, com uma clínica particular de São Miguel. Era mais novo, mais verdinho e aceitei o desafio. Revelou-se impossível.”

Secretário da Saúde dos Açores mantém confiança na administração do Hospital de Ponta Delgada

Bruno Seixas diz que trabalha “numa unidade unipessoal”. Está “sozinho, esquecido” e espera que “o momento presente corresponda ao bater no fundo”. Quando chegou do continente diz ter encontrado profissionais acomodados, alguns cansados, outros com perfis que considera pouco adequados aos cargos que desempenhavam. “Tinha várias opções”, atira: “Ou sobrevivia com eles, apesar deles, ou dizia basta.” Optou por sobreviver e focar-se nas consultas.

Desistir, como muitos têm feito por falta de condições de trabalho, não seria opção para o médico — porque é esse o seu “espírito de missão”. “Não corresponde ao meu modelo formativo de base”, argumenta: “Desde que estou em São Miguel, acompanhei muitas crianças e jovens que entretanto entraram na vida adulta, se autonomizaram, mantêm atividades laborais ou concluíram o percurso escolar e até licenciaturas. Alguns são adultos que me conheceram pelos seus seis, sete anos, e já não necessitam de suporte especializado. Revejo-me nesse percurso.”

Entrevista ao pedopsiquiatra Bruno Seixas, o único da sua expecialidade no sistema público a tempo inteiro em todo o arquipélago dos Açores, no hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada. 31 de Outubro de 2022 Ilha de São Miguel, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Bruno Seixas, pedopsiquiatra do Hospital Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, São Miguel

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Mas as frustrações vieram à tona quando recebeu o telefonema do coordenador do programa: “Senti-me acossado, só tinha sabido da iniciativa pela comunicação social.” O pedopsiquiatria diz ter perguntado a Henrique Prata Ribeiro como é que o programa beneficiaria a prática clínica, mas as respostas só o levaram a uma conclusão: “Recordou-me um pouco o que tenho ouvido a respeito da política em Portugal Continental, em que há uma espécie de desconexão entre a realidade e o discurso político. Eu sinto muito isso, ou seja, não me sinto representado por estas iniciativas.

Henrique Prata Ribeiro considera as críticas “normais”: “Não há nunca um programa feito sem viés, que tentou ser cientificamente independente, que responda àquilo que cada pessoa considera as necessidades mais prementes. O que se pretende é que, dentro do que são as necessidades mais prementes de cada serviço, o programa consiga dar resposta dentro do enquadramento e da função do programa”.

Médico psiquiatra no Hospital de Loures, Henrique Prata Ribeiro foi convidado pelo governo regional a fazer consultoria à Secretaria Regional da Saúde e Desporto por causa do seu envolvimento no Health Parliament, um projeto europeu relacionado com o delineamento de políticas públicas de saúde. Algumas semanas depois de ter entregue o primeiro relatório de consultoria, foi convidado a converter esse relatório num programa de saúde e implementá-lo. Foi daí que se criou a Estrutura para a Saúde Mental, cujo Programa Regional para a Saúde Mental nos Açores conta com financiamento da FLAD e do governo regional.

Uma intervenção meramente casuística e avulsa não seria a resposta adequada para a densidade dos nossos problemas”, admitiu Clélio Meneses, secretário regional da Saúde e Desporto, ao Observador: “Por isso é que se entendeu que devia ser uma resposta estruturada, com princípios estratégicos, de intervenção que envolva todo o serviço regional de saúde.” O coordenador do programa foi apresentado ao governo regional pela própria FLAD e começou aí a parceria.

Governo Regional defende Plano Saúde dos Açores “real e não apenas formal”

Entrevista ao Secretário Regional da Saúde e Disporto do governo dos Açores, Clélio Meneses. 1 de Novembro de 2022 Ponta Delgada, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Clélio Meneses, secretário regional da saúde e desporto do Governo Regional dos Açores

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Henrique Prata Ribeiro não é dos Açores, nem tem nenhuma ligação particular com o arquipélago — o que, para alguns dos médicos entrevistados pelo Observador, pode constituir um entrave ao desenvolvimento de medidas adaptadas à realidade das nove ilhas. Em entrevista ao Observador, o médico psiquiatra discorda e vê vantagens nessa falta de vínculo direto: “Desde que começámos o projeto já visitei São Miguel, Terceira, Faial e Pico, mas ainda quero ir às restantes ilhas. Foi muito importante ter feedback de pessoas de lá e aí tive muita ajuda. A vantagem de ser alguém de fora é poder olhar de uma forma sem viés para a realidade.

Questionado sobre as críticas de quem diz ter dificuldades em encontrar sugestões que efetivamente melhorem a qualidade do trabalho dos profissionais de saúde, Henrique Prata Ribeiro considera-as “normais”: “Não há nunca um programa feito sem viés, que tentou ser cientificamente independente, que responda àquilo que cada pessoa considera as necessidades mais prementes. O que se pretende é que, dentro do que são as necessidades mais prementes de cada serviço, o programa consiga dar resposta dentro do enquadramento e da função do programa.”

Falta de meios em pedopsiquiatria leva a quebra das normas da Ordem dos Médicos

O programa faz referência à falta de pedopsiquiatras na região e considera a situação “preocupante”. Aliás, uma das sugestões é a “contratação de profissionais especializados, com especial enfoque na pedopsiquiatria nas ilhas de São Miguel, Terceira e Faial” e a criação de acordos entre três serviços de pedopsiquiatria, dotando-os das “necessárias condições tecnológicas para que seja feita constante consultoria na área, quer aos médicos de medicina geral e familiar, quer aos médicos pediatras”.

“A adição de leitos hospitalares para psiquiatria da infância e adolescência deve igualmente ser considerada”, considera-se no programa. É que, atualmente, Bruno Seixas dá por si a fazer uma gestão “muito esperançosa, na falta de melhor termo, dos casos difíceis”. Por vezes, são enviados para o Hospital Dona Estefânia, um dos centros de referência na área. Se não forem aceites, embora descompensados, podem vir a ocupar camas dos serviços de pediatria ou de psiquiatria — o que contraria as normas internacionais. E se esses serviços estiverem saturados, alguns são seguidos em ambulatório, mesmo com quadros clínicos graves que necessitariam de uma atenção mais próxima, admite Bruno Seixas.

Entrevista ao pedopsiquiatra Bruno Seixas, o único da sua expecialidade no sistema público a tempo inteiro em todo o arquipélago dos Açores, no hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada. 31 de Outubro de 2022 Ilha de São Miguel, Açores TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Bruno Seixas, pedopsiquiatra do Hospital Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, São Miguel

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Neste momento, o tempo entre um pedido de primeira consulta e o atendimento é de dois meses e meio a três meses — números que chegam no rescaldo do período de pandemia, em que as referenciações diminuíram por se terem realizado menos consultas dos referenciadores. A gestão desta lista obriga Bruno Seixas a fazer mais de quatro primeiras consultas por semana, o que implica observá-la novamente, e em tempo útil, na maioria das vezes todas as semanas. Mas “é impossível”, remata o pedopsiquiatra: “Nas minhas consultas deixei de propor abordagens psicoterapêuticas estruturadas. A tipologia de intervenções acaba por ser similar em todos os níveis, nos cuidados de saúde primários e nesta unidade hospitalar.”

Antes de nos receber no seu consultório, o médico tinha feito 10 consultas. Mas, segundo as normas do Colégio da Especialidade da Ordem dos Médicos, cada consulta subsequente de pedopsiquiatria teria 45 minutos; e cada primeira consulta teria até uma hora e meia. O resultado? “Trabalho um número de número de horas muito superior ao que consta do meu horário e, para acomodar o número crescente de utentes, reservo-lhes frequentemente um tempo inferior ao preconizado”, conclui.

Governo dos Açores analisa queixa contra médicas que terão ignorado lista de espera

Os números das consultas têm efetivamente subido na Terceira, mas Bruno Seixas alerta que isso está a acontecer “à custa de um empobrecimento da atividade”: “Os indicadores que avaliam o trabalho médico são o número de dias ou meses que se espera por uma consulta de especialidade e o número de atos praticados, de várias tipologias. Não parece haver lugar para a qualidade.”

A falta de recursos humanos apontada tanto por Bruno Seixas como pela psiquiatra Margarida Moniz foi constatada pelo coordenador do programa celebrado entre o governo regional e a FLAD; e chega a ser mencionado no documento. O número atual de psiquiatras e pedopsiquiatras na região autónoma dos Açores é de 5,9 por 100 mil habitantes habitantes, quando o rácio mínimo recomendado é de 10. Mas há um número de psicólogos superior à média nacional: são 16,6 por 100 mil habitantes e, com a “estratégia preventiva” que o programa implementará, o rácio chegara aos 25 por 100 mil habitantes.

Clélio Meneses assegura que a secretaria regional da saúde está a trabalhar nesse ponto. Aponta culpas ao anterior governo, dizendo que “há défice de recursos de profissionais de saúde mental” porque “não houve uma aposta estratégica” na área. Isso mudou com o Executivo que entrou há menos de dois anos: já contrataram mais sete psiquiatras e está em curso um processo de contratação de 20 psicólogos, exemplifica ao Observador: “Estamos a fazer um esforço para ter uma capacidade mais interventiva neste fenómeno”.

Uma das propostas gerais que constam no programa é o desenvolvimento de “propostas para fixação no arquipélago de mais médicos psiquiatras, enfermeiros especialistas de saúde mental, psicólogos, técnicos de saúde ocupacional e psicomotricistas”. Isso implica a criação de regimes de contratação mais flexíveis para os profissionais especializados em saúde mental, que lhes permita trabalhar nos serviços públicos e privados a tempo parcial ou em alternância — ideias que, para os profissionais entrevistados pelo Observador nos Açores, não são concretas o suficiente.

Governo dos Açores propõe incentivos de cinco anos para fixar médicos e enfermeiros

Entrevista ao professor universitário e psiquiatra, Henrique Prata Ribeiro, coordenador do novo Programa Regional para a Saúde Mental dos Açores. 29 de Novembro de 2022, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Henrique Prata Ribeiro, médico psiquiatra no Hospital Beatriz Ângelo e coordenador do Programa Regional para a Saúde Mental nos Açores

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Henrique Prata Ribeiro sabe disso. Mas tem uma explicação: “Há coisas que faltam ou que podem ser melhoradas nos serviços, mas que não são resolvidas através de uma estrutura para a saúde mental. São coisas a nível da administração hospitalar ou da direção regional”, justifica.

O objetivo do programa era focar-se em criar infraestruturas e em reorganizar os serviços com os recursos que têm neste momento. A contratação de mais profissionais de saúde e o financiamento que a Casa de Saúde São Rafael ainda espera para o projeto “Cuidando Terceira” saem do âmbito do programa, defende Henrique Prata Ribeiro, porque a FLAD — a entidade privada a que o governo regional se uniu — não se poderia responsabilizar pelo pagamento desses profissionais de saúde para lá da vigência do plano.

Institutos Hospitaleiros ponderam suspender acordos de psiquiatria nos Açores. Executivo já reagiu e garante estar à procura de “soluções”

Mas Clélio Meneses assegura que a secretaria regional da saúde está a trabalhar nesse ponto. Aponta culpas ao anterior governo, dizendo que “há défice de recursos de profissionais de saúde mental” porque “não houve uma aposta estratégica” na área. Isso mudou com o Executivo que entrou há menos de dois anos: já contrataram mais sete psiquiatras e está em curso um processo de contratação de 20 psicólogos, exemplifica ao Observador: “Estamos a fazer um esforço para ter uma capacidade mais interventiva neste fenómeno.”

A esperança do diretor daquela casa de saúde é que a menção do projeto no Programa Regional para a Saúde Mental nos Açores acelere a publicação da portaria. Mas estas limitações também geram mais ceticismo em Marco Pavão: “Com todos os constrangimentos da saúde na região, e a coberto de não haver dinheiro, por conta da política de endividamento zero que o  governo regional adotou, temo que seja protelado.” Até lá, doentes como Vera Costa continuarão a depender da “carolice” das equipas de apoio domiciliário da Casa de Saúde Rafael.

O Observador viajou a convite da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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