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No total, são mais de 18 mil pipas para cuidar. Normalmente, os problemas mais comuns são a madeira partida ou traçada ou os “pentes” (parte superior das pipas) partidos. Aqui não se utiliza madeira nova para reparar as pipas
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No total, são mais de 18 mil pipas para cuidar. Normalmente, os problemas mais comuns são a madeira partida ou traçada ou os “pentes” (parte superior das pipas) partidos. Aqui não se utiliza madeira nova para reparar as pipas

Octavio Passos/Observador

No total, são mais de 18 mil pipas para cuidar. Normalmente, os problemas mais comuns são a madeira partida ou traçada ou os “pentes” (parte superior das pipas) partidos. Aqui não se utiliza madeira nova para reparar as pipas

Octavio Passos/Observador

"Estamos aqui para não deixar isto morrer". Os homens que reparam à mão as pipas de vinho do Porto

São os tanoeiros que reparam, manualmente, os cascos onde o vinho do Porto fica a envelhecer. Uma arte dura, suja e quase em extinção. Mas, nas caves de vinho em Gaia, há quem não a deixe morrer.

Na tanoaria da Cockburn’s, em Vila Nova de Gaia, há ferramentas pesadas, cascos de madeira e arcos em ferro espalhados por todo o lado — em cima das mesas, encostados à parede e pousados no parapeito das janelas, que vão deixando a luz natural entrar. O barulho das máquinas e dos martelos vai enchendo o armazém, mas o que salta à vista são as várias pipas de madeira, colocadas estrategicamente de acordo com o seu estado. “Deste lado estão as ‘rotas’, ali à frente as que já estão prontas e aqui são as que estão a ser arranjadas”, explica António Sá, tanoeiro há mais de 30 anos.

É neste espaço que uma equipa de seis tanoeiros trabalha diariamente para manter e reparar as pipas onde o Vinho do Porto fica a envelhecer. É também aqui que se tenta manter viva uma arte que tem sofrido com o aparecimento de nova maquinaria e a mudança de prioridades nas empresas. Mas, garante António Sá, “os melhores vinhos estão em cascos” e será sempre preciso quem os proteja e arranje. Um ofício duro, importante para assegurar a qualidade do vinho, mas cada vez mais raro de se encontrar nos armazéns.

Atualmente, a tanoaria da Cockburn’s é a última em atividade na cidade “e a única no país que tem seis tanoeiros no ativo”, uma vez que a maior parte das casas de Vinho do Porto subcontrata tanoeiros para fazerem alguns trabalhos. Apesar deste cenário contrastar com os tempos em que só numa casa existiam 20 tanoeiros a trabalhar, há ainda resistentes que continuam a luta para não deixar este ofício morrer. Há cerca de quatro anos chegou sangue novo à Symington Family Estates (que detém a Cockburn’s e mais cinco marcas de Vinho do Porto), com a entrada de tanoeiros mais jovens. “Aprenderam as coisas a seu tempo e agora já caminham pelos seus próprios pés”, garante o tanoeiro chefe, que conhece este trabalho como a palma da sua mão.

António Sá aprendeu esta arte com 14 anos, quando foi “recrutado” pelo chefe do seu pai, que “estava a precisar de uns rapazitos novos para aprender” tanoaria. A partir daí nunca mais parou: “Comecei a aprender, passei também por barrileiro, casqueiro, tanoeiro de terceira e de segunda até chegar a tanoeiro de primeira e continuei a minha carreira até engrenar aqui, onde estou há 16 anos”. Agora, desconfia que passa mais tempo neste armazém do que em casa, tem nas mãos o reflexo da dureza do trabalho e só de olhar para os cascos de madeira de carvalho francês consegue perceber o que foi alvo de reparação.

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António Sá é o chefe da equipa de tanoeiros dos armazéns da Cockburn's. Começou aos 14 anos e nunca mais deixou este ofício

Octavio Passos/Observador

Durante o período de aprendizagem, António Sá fez de tudo — desde a manutenção de pipas (que têm capacidade até 600 litros) aos balseiros ou toneis (que chegam aos 1000 litros), passando até por artesanato com os restos de material que iam sobrando — bancos, pratos, puxadores de portas, e até pegas para cestos e caixas. “Adoro tudo o que seja trabalhar em madeira. Foi a primeira e única arte que aprendi até à data“, conta. Agora, lamenta, os tanoeiros mais jovens apenas aprendem maioritariamente a manutenção de pipas e só “de vez em quando” são chamados para trabalhos diferentes, mantendo-se o desejo “de ensinar estas coisas à rapaziada mais nova”.

E porque a arte secular da tanoaria não se aprende num dia — “quatro anos, no mínimo” –, é preciso atenção para se ouvir e ver as várias fases do processo de manutenção de um casco e são incontáveis os nomes técnicos de ferramentas e materiais espalhados pelo armazém. O armazém continuou a funcionar com a pandemia de Covid-19, mas o trabalho sofreu algumas alterações e deixaram de existir as visitas dos turistas, que muitas vezes aplaudiam os tanoeiros. Apesar de ser um trabalho de equipa, cada tanoeiro trabalha na sua “praça” — o local onde cada um tem as suas ferramentas e executa as suas tarefas.

Atualmente, a tanoaria da Cockburn's é a última em atividade na cidade "e a única no país que tem seis tanoeiros no ativo"

Octavio Passos/Observador

Vistorias semanais, um processo complexo e as ferramentas que já não se arranjam “em lado nenhum”

À entrada do armazém, há um conjunto de pipas colocadas do lado direito que estão na “fila de espera” para a manutenção. São as chamadas pipas “rotas”. Algumas têm um “X” assinalado, para se saber exatamente onde estão partidas. As pipas são recolhidas para aquele espaço depois de os tanoeiros fazerem, semanalmente, uma revisão dos lotes nos seis armazéns de vinho do Porto da Symington para perceberem o que tem de ser reparado. No total, são mais de 18 mil pipas para cuidar. Normalmente, explica António Sá, os problemas mais comuns são a madeira partida ou traçada ou os “pentes” (parte superior das pipas) partidos. Aqui não se utiliza madeira nova para reparar as pipas, “porque isso vai contaminar o vinho com o sabor a tanino da madeira”. Por isso, reutiliza-se sempre a madeira já avinhada de outros cascos.

Com o casco de pé, os arcos das pipas são retirados, “mete-se a mole de virar” (um primeiro arco em ferro usado para apertar a madeira) e as várias aduelas que compõe a pipa são enumeradas com giz branco — caso uma delas caia, os tanoeiros sabem a sua posição. “Agora, corremos na máquina as aduelas parceiras, que são as que estão ao lado da madeira partida, para depois a peça nova encaixar bem com as outras todas”, explica o tanoeiro chefe. Fechado o casco, o topo da pipa é acertado para que as aduelas fiquem todas iguais e do mesmo tamanho. Depois, seguem-se cinco fases: “Cortar, parejar, rebotar, jabrar e arrunhar”, enumera o tanoeiro, com todo o processo na ponta da língua. A partir daí, passa-se para o fundo da pipa.

Antes de os cascos serem reparados, as suas aduelas são enumeradas com giz branco -- caso uma delas caia, os tanoeiros sabem a sua posição original

Octavio Passos/Observador

Nas juntas, entre as aduelas, é também colocada palha para ajudar a vedar a madeira. Mas ainda há mais: de seguida, é preciso voltar a colocar os vários arcos na pipa, cada um com um nome específico: mole, javre, colete, rabo de palhas, bojo e sobrebojo. “Aqui trabalhamos com arcos mais grossos, que dão para poder amassar à vontade que não arrebentam”, informa António Sá, enquanto se ouve o som do martelo a colidir com o ferro do arco como fundo. Quando tudo está terminado, é preciso encher a pipa de água com uma solução sulfurosa para fazer a desinfeção do casco e avaliar a sua estanquicidade. “Se estiver bom é lavadinho e vai para o lote para encher com vinho”.

O processo é complexo e específico e, no caso deste armazém, ainda conta com muitas fases feitas à maneira antiga, continuando a exigir habilidade e força de braços, persistência e concentração. “Embora estejamos já a meter mais maquinismo novo para rentabilizar mais trabalho, o resto é tudo feito à mão”, descreve o tanoeiro, acrescentando que o facto de ainda trabalharem à moda antiga traz algumas dificuldades. “Às vezes até nos vemos à rasca para arranjar as ferramentas, porque antigamente praticamente qualquer armazém de vinho tinha um ou dois tanoeiros ou até uma equipa”, acrescenta António Sá, enquanto carrega uma jevradoura, “peça praticamente de museu, com mais de 70 anos”, que serve para abrir um javre.

Por terem dificuldade em encontrar a ferramenta, tornou-se necessário recorrer à maquinaria. “Agora estamos a optar por uma topia elétrica, porque é mais rápido. Pomos a pipa ao alto, preparamos a máquina e andamos com a topia ali em cima. Temos dificuldade em arranjar material para isto. Já não se arranja nem o ferro nem estas peças”, sublinha.

Os jovens que chegaram ao armazém para continuar a arte da tanoaria

Enquanto António Sá caminha pelo armazém e explica o que faz um tanoeiro — algo que, lamenta, “quase ninguém sabe” — , Pedro Cruz, de 30 anos, vai cravando os arcos de ferro para as pipas. Pedro é um dos tanoeiros mais recentes que vieram dar um novo alento a este ofício: chegou há três anos à tanoaria e nunca tinha feito nada igual. “Tem sido um trabalho de aprendizagem. Não conhecia nada, vim a zero, mal sabia martelar e agora a verdade é que já consigo compor sozinho. Claro que tenho algumas dúvidas e pergunto sempre ao chefe, mas tenho gostado, tenho vindo a aprender”, refere ao Observador.

A arte da tanoaria, admite, “é um pouco dura”, mas o gosto está lá e até faz esquecer algumas marcas da dureza do trabalho. Também Tiago Fonseca, de 27 anos, decidiu trocar a mecânica automóvel pela tanoaria há cerca de quatro anos e aprender uma arte do zero. “Quando entramos para aqui era tudo novo, porque nunca tinha trabalhado com este tipo de máquinas. Trabalhava numa coisa totalmente diferente. Tive alguma dificuldade, é uma arte que demora bastante tempo a interiorizar, mas agora com a prática e o tempo vamos começando a aprender”, garante.

Nos primeiros tempos — e porque lidar com máquinas e ferramentas tão pesadas pode ser perigoso sem o conhecimento e práticas certos –, Pedro e Tiago foram sempre acompanhados pelos tanoeiros mais velhos. “Agora já trabalhamos sozinhos, já vamos fazendo um trabalho diferente”, explica Tiago, admitindo que não há muita gente que saiba o que é ser tanoeiro ou tenha vontade de aprender. “Não há muita gente para levar isto para a frente e nós estamos aqui é para não deixar isto morrer, para os mais novos continuarem”.

Tiago e Pedro são dos mais jovens do grupo de tanoeiros Cockburn's

Octavio Passos/Observador

Quem já conhece os cantos à casa e tem assistido às mudanças na profissão ao longo dos anos é Bernardo Marques, tanoeiro há mais de 20 anos, 13 deles passados na Cockburn’s. Aprendeu tanoaria “com os antigos”, quando se “fazia novo”, mas quando chegou a este armazém voltou a aprender “coisas que antes não fazia, como a cascaria velha de Vinho do Porto”. Antigamente, explica, “era ainda mais duro, porque não havia máquinas”. “Para os mais novos ainda é duro, mas vão-se habituando”, assegura, relembrando que chegou a trabalhar com 20 tanoeiros — uma imagem que nos dias de hoje não acontece.

“Isto veio a diminuir porque ninguém quer aprender, porque é uma profissão dura. Quem olha pode não pensar isso, pensa que é só bonito, mas temos muitas vezes algumas lesões derivado a movimentos que fazemos constantemente”, explica o tanoeiro, enquanto encavilha o fundo para um casco que está a reparar. Mas é também a dureza da tanoaria que o motiva: “Uma pessoa às vezes até gosta de puxar um bocadinho pelo corpo, para manter o corpo em forma. Muita gente vai para o ginásio para puxar, nós aqui não precisamos de ir para o ginásio, temos o ginásio aqui”, refere, entre risos. E garante: “É uma profissão dura, mas ao mesmo tempo é bonita”.

Para António Sá, a diminuição do número de tanoeiros e o risco de desaparecimento deste ofício é também fruto da “falta de divulgação”. “Muita gente não sabe o que é a tanoaria, mas quando se explica que é basicamente compor uma pipa já sabem o que é. Talvez se houvesse mais divulgação e mais formação sobre a nossa arte houvesse mais gente…e casas que empreguem”, atira. Por aqui, neste armazém em Gaia, “vai-se dando conta do recado” com a vontade e força de seis tanoeiros.

Bernardo Marques é tanoeiro há mais de 20 anos, 13 deles passados na Cockburn's. Aprendeu tanoaria "com os antigos"

Octavio Passos/Observador

“Isto demora o seu tempo, mas quem tiver gosto em aprender depressa chega lá. Por norma, até costumo dizer-lhes [aos tanoeiros mais jovens] isto: são sempre quatro anos no mínimo. Eu demorei quatro anos, mas aprendi de tudo, desde um barril a um balseirão ou tonel”, explica. No ano passado, dois tanoeiros mais velhos reformaram-se e este ano já entrou mais um tanoeiro jovem, havendo ainda “uma praça livre à espera que venha mais um funcionário”. “É como digo: isto é uma coisa que não se aprende em dois dias e é uma arte árdua, pesada, suja“, volta a sublinhar.

Em mais de 30 anos de carreira, António Sá gosta tanto do ofício como do papel de ensinar tudo o que sabe aos mais novos. Na lista de desejos tem ainda a oportunidade de ensinar outras vertentes da tanoaria, como o artesanato. E, no fim, só quer que saibam tanto ou mais do que ele. “Não me canso de lhes dizer isso. Para mim é um alívio e fico gratificado porque estou a ensinar uma coisa que sei, e sei que eles aprenderam ainda mais do que eu lhes ensinei. Sinto-me realizado com aquilo que estou a explicar às pessoas. Sinto-me feliz com aquilo que estou a fazer. Olho para eles e penso: ‘Expliquei-lhe tal e qual’, embora eles, com as suas capacidades, fossem aperfeiçoando cada vez mais, porque estamos todos aqui a aprender. Todos os dias aprendemos”.

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