Numa situação de grande afluência às urgências, e de aumento dos internamentos — como aquela a que Portugal tem vindo a assistir nas últimas semanas –, a capacidade das Unidades de Cuidados Intensivos (UCI) é também colocada à prova. Mas, neste momento, muitas unidades, um pouco por todo o país, não dão a resposta adequada, porque, para além de estarem sob grande pressão assistencial, não têm profissionais em número suficiente e, por isso, não estão a trabalhar na sua capacidade máxima. O mesmo é dizer que têm camas inativas.
O alerta é feito ao Observador pelo presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos. Paulo Mergulhão fala numa “situação preocupante”, numa altura em que se registam “taxas de ocupação muito elevadas”. Neste momento, alerta, “há uma grande ocupação dos serviços a Norte, Centro e Sul do território”, o que vem agudizar as carências estruturais que estes serviços hospitalares, de fim de linha, enfrentam há anos.
Coimbra com ocupação acima da média, São José a receber doentes de outros hospitais
O Observador questionou as maiores Unidades Locais de Saúde do país para perceber qual a situação atual no que diz respeito à ocupação das unidades. A ULS de Coimbra, que engloba o Hospital Geral de Coimbra (o maior da zona Centro), confirma uma “ocupação acima da média habitual e, em alguns dias, ocupação total”, admitindo estar particularmente pressionada por transferências de doentes graves provenientes de outros hospitais da região.
“Somos hospital de referência, para a região centro, de muitas situações patológicas”, realça a ULS. Já fonte oficial da ULS de São José, que conta com duas unidades de cuidados intensivos (uma no Hospital de São José e outra no Curry Cabral), relata uma situação de normalidade, apesar do elevado número de doentes recebidos de outros hospitais da zona de Lisboa e Vale do Tejo que chegaram ao limite da capacidades das respetivas UCI. As unidades periféricas, com serviços de Medicina Intensiva mais pequenos, são habitualmente as primeiras a esgotar a capacidade instalada.
O principal problema é a falta de profissionais, nomeadamente enfermeiros especialistas. “Há serviços que tiveram de fechar camas por falta de recursos humanos, nomeadamente de enfermeiros. Neste momento, há camas de Medicina Intensiva inativas por esse motivo”, diz Paulo Mergulhão, que fala em necessidades identificadas há anos, mas ainda não preenchidas.
Segundo um parecer da Ordem dos Enfermeiros, datado de 2020, o rácio recomendado em serviços de Medicina Intensiva é de um enfermeiro para cada doente, dada a complexidade dos casos. No entanto, persiste a falta de profissionais. “Há uma necessidade identificada e reconhecida de formação de mais médicos e enfermeiros, de modo a prestar melhores cuidados aos doentes”, realça o intensivista, admitindo que, apesar de ter havido alguma melhoria, Portugal “ainda não está no ponto que é necessário”.
Perante a falta de profissionais, e para não colocar em causa a segurança dos doentes internados, os hospitais limitam a lotação das unidades de cuidados intensivos, adiando a abertura de novas camas ou mesmo reduzindo a capacidade das UCI, diz Paulo Mergulhão. “A situação é preocupante. Desde há muitos anos que temos um número de camas de Medicina intensiva por 100 mil habitantes muito baixo, comparativamente com outros países. Isso cria várias situações de sobrecarga”, sublinha o intensivista. Em 2012, Portugal tinha 4,2 camas por 100 mil habitantes, e em 2016 esse número estava nos 6,4.
Ministro preocupado com aumento de internamentos em cuidados intensivos, apela utentes a vacinar-se
A pandemia veio colocar estas unidades no centro da agenda mediática, levando o Ministério da Saúde a mudar a estratégia e a concentrar verbas para aumentar, modernizar e dotar de mais profissionais muitas UCI. Em 2021, o número de camas subiu 40%; e, em 2022, já havia 9,5 camas por cada 100 mil habitantes, o objetivo que tinha sido definido pelo governo nos primeiros meses da pandemia. “Houve um aumento de camas. Passámos de [entre] 6,5 a 7 camas por 100 mil habitantes para 9,5”, refere o presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos. No entanto, neste momento, esse já não é o rácio real, porque algumas camas foram inativadas por falta de profissionais.
Falta de enfermeiros nas UCI é problema estrutural e leva ao fecho de camas
Um problema estrutural, realça o especialista, que vai muito para além da questão da escusas dos médicos à realização de mais horas extraordinárias, protesto que, na parte final de 2023, levou ao encerramento de camas de cuidados intensivos em vários hospitais, como Loures, Gaia ou Braga. “Não é um problema focado apenas nas escusas. Mesmo fora desse contexto, há camas de Medicina Intensiva inativa por falta de recursos”, diz o também coordenador da UCI do Hospital Lusíadas Porto.
Paulo Mergulhão alerta que, ultrapassado o primeiro trimestre de 2024, e sem um acordo apaziguador entre médicos e governo, as UCI podem voltar a ser bastante afetadas, uma vez que os intensivistas são dos médicos especialistas que mais horas extra acumulam ao longo do ano. “A questão das escusas está camuflada nos próximos meses, mas não ultrapassada. Na maior parte dos serviços de Medicina Intensiva, este plafond [de horas extra] esgota-se numa questão de meses. Em março ou abril, se não houver uma solução definitiva, é provável que o problema se coloque outra vez“, admite.
A falta de capacidade de resposta de algumas UCI tem dois efeitos imediatos, diz Paulo Mergulhão: a transferência de doentes críticos para outros hospitais (um procedimento “de risco” e que envolve muitos contactos com outras instituições) ou o adiamento de cirurgias programadas mais complexas, de modo a libertar camas para doentes agudos. “Às vezes, há necessidade de transferir doentes críticos por falta de vaga no hospital em que os doentes se encontram, e tem havido também necessidade de adiar cirurgias programadas que necessitem de internamento em UCI. Isto porque não há capacidade de resposta da Medicina Intensiva no pós-operatório”, refere o médico. Para os doentes agudos que precisam de ser internados numa UCI que esteja lotada, e que não são transferidos, pode haver atrasos na admissão a rondar as seis horas, adianta o médico.
Sobrelotação dos serviços contribuiu para a mortalidade, diz intensivista
A sobrelotação dos serviços hospitalares, nomeadamente das Unidades de Cuidados Intensivos, é uma das explicações para o aumento da mortalidade registado em Portugal, considera o especialista. “Numa situação de sobrecarga transversal, isso resulta num aumento da mortalidade“, sublinha, lembrando que “esta época gripal está a ser particularmente difícil, com os doentes a terem internamentos prolongados e complicações graves”. “Isso justifica algum do aumento de mortalidade que temos visto. Têm aparecido casos de Covid-19 graves, também”, revela o médico.
Mortalidade no nível mais elevado desde a pandemia e 25% acima dos valores do ano passado
Nos últimas três a quatro semanas, Portugal tem assistido a um aumento acentuado da mortalidade, comparativamente ao mesmo período dos anos anteriores. O número total de óbitos registado entre o Natal e o dia 18 de janeiro de 2024 é o segundo mais elevado dos últimos dez anos, apenas superado pelo período homólogo de 2020/2021, períodos mais críticos da pandemia de Covid-19, ainda com a esmagadora maioria da população não protegida pelas vacinas.
Num cenário de falta de recursos, Paulo Mergulhão pede ambição para dotar o país de camas de intensivos que respondam à evolução do perfil da população. “Vamos precisar de cada vez mais camas de Medicina Intensiva, é um fenómeno que se observa em todos os países desenvolvidos. As pessoas estão mais velhas, cada vez têm mais doenças crónicas. Nestas épocas de gripe, os episódios agudos levam a descompensações [das doenças crónicas] e é frequente as pessoas precisarem de cuidados intensivos”, explica o intensivista, recordando também a necessidade de “criar um sistema de referenciação regional mais robusto, que facilite a transferência de doentes” entre as várias unidades.