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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Flávia Aranha: a moda que começa na terra e à terra volta

Movida por uma consciência ambiental e social, Flávia Aranha criou uma marca assente no que a natureza dá. Colabora com 30 cooperativas e artesãos de todo o Brasil. Há um ano, chegou a Portugal.

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A moda de Flávia Aranha é singular. Distante do tropicalismo que muitas marcas brasileiras têm optado por exportar e posicionada a léguas de um setor que tem tanto de magnético como de perverso, o da fast fashion. Em Portugal, a criadora e empresária brasileira não quer apenas abrir uma porta para o mercado europeu. No ano passado, nasceu o primeiro ponto de venda do lado de cá do Atlântico e, em julho deste ano, a loja dentro da Casa Pau-Brasil, em Lisboa, foi replicada em Cascais. Aos 35 anos, está pouco ou nada interessada em falar de tendências sazonais, silhuetas ou ideais de cliente final. Por detrás de cada peça, há um processo e, acima desse, uma cadeia que conecta (um verbo favorito) esta designer paulista a agricultores, artesãos e cooperativas. No final, a moda de Flávia Aranha é o resultado de uma teia construída de olhos postos na sustentabilidade e na equidade social.

“Abri a marca com muita vontade de mudança, de mostrar ao mundo que existem relações afetivas na roupa. Desde então que construímos essa narrativa. É uma visão até romântica de impactar o consumidor pelo afeto. Se essa roupa tem essa história, esse processo, essa memória, então ela não é descartável, nem vai perder a validade amanhã. Não é roupa de uma estação. É uma roupa em que, assim como o processo foi lento e longo, a gente espera que ela tenha uma vida longa também”, explica Flávia ao Observador, numa das suas recentes visitas a Portugal. A ligação à terra é flagrante. No bairro do Príncipe Real, a pequena loja é pintada pela mesma escala de ocres, beges e terracotas. Os colares com pequenas gotas de vidro continuam a ser um clássico. Na verdade, a história remonta aos tempos de faculdade, quando Flávia descobriu uma fábrica de vidro e acabou por ser convidada a desenhar peças para um desfile da Osklen.

Hoje, há quem lhe chame alquimista. Tudo por conta da água que ferve no atelier e que tinge os tecidos num processo que permanece artesanal. Ambiente e sociedade são os campos de batalha. O crescimento da marca exige que outros trabalhos sejam feitos fora. Também aí, o impacto quer-se positivo. “A certa altura, perguntei como é que a gente ia escalar sem ter de terceirizar para uma fábrica, não sabendo onde estaria sendo feito. A gente começou a fomentar grupos de pequenos empreendedores, pequenas oficinas. Há uma métrica — o tempo que uma peça leva a ser feita, do começo ao fim. Aí, a gente vê quantos minutos demora e define o preço da mão-de-obra garantindo uma renda mínima justa para alguém que trabalha oito horas por dia, cinco dias por semana”, explica.

Vários pigmentos e produtos usados no processo de tingimento dos tecidos e fios © Flávia Aranha

Após um ano de avaliações, a marca recebeu, em 2015, o certificado do Sistema B, uma organização não governamental que atua a nível global e que promove a ideia de lucro com benefícios socioambientais junto das empresas. Mas o percurso de Flávia Aranha nem sempre esteve ligado à sua marca homónima. A designer passou pela pesada máquina da fast fashion e viu de perto as consequências ambientais e sociais que a moda está a ter do outro lado do mundo.

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“Fui à China e à Índia e vi de tudo”

Pouco tempo depois de acabar o curso de Moda na Faculdade de Santa Marcelina, em São Paulo, Flávia era mais do que designer dentro de uma grande marca brasileira de pronto-a-vestir. O contacto direto com a indústria têxtil do país, maioritariamente localizada a sul, e a aprendizagem sobre vendas e estratégia deixaram-na mais perto de ser uma mulher de negócios. “Era o oposto de tudo o que tinha vivido, era preciso fazer roupa para vender. Costumo dizer que saí de um mundo de bordados para fazer camiseta”, revela. Os processos de produção continuaram a ser um objeto de fascínio. Enquanto a maioria dos designers ficava no atelier, Flávia acompanhava de perto as diferentes formas como a roupa era feita, tratava por tu os principais industriais do setor e, aos 20 e poucos anos, descobria uma faceta dela própria, até então desconhecida — a de empreendedora.

Flávia Aranha na loja da marca, em Lisboa © João Porfírio/Observador

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Em 2007, foi desafiada a viajar até à Ásia. Tinha 40 dias para encontrar uma fábrica que produzisse polos por 2,90 dólares (cada unidade). “Fui à China e à Índia e vi de tudo. Aquele filme “The True Cost”? Vi com os meus olhos. Naquela época, não havia qualquer preocupação por mostrar o que fosse — crianças, idosos, aquela poeira no rosto, lugares com o pé direito muito baixo e muito sujos, aquela água azul a sair diretamente para o rio. Foi muito pesado”, recorda a criadora. Na Índia, o segundo destino, encontrou uma realidade, à primeira vista, mais parecida com a do Brasil — “muita cor e muita alegria, apesar da pobreza”, refere.

“Houve uma fábrica, em particular, que me deixou muito chocada. Entrei e o showroom era lindo. Continuei e vi mulheres lindas, coloridas, dando risada. De repente, vou andando e vejo mulheres no chão bordando. Achei estranho, mas eles também comem no chão e ainda pensei na questão cultural. Quando saí, do outro lado da fábrica, tinha uma espécie de favela onde as pessoas viviam. A divisória do quarto delas era um pano, o chão era terra batida, não havia esgoto”, relata. Naquela fábrica, um vestido em seda, todo bordado, tinha um custo de 20 dólares. Fora dela, a mesma peça podia vir a custar dez, 20 vezes mais. Além disso, os espaços usados como fachada eram uma realidade. Muitas fábricas investiam (e ainda investem) em showrooms e salas de produção de aspeto cuidado, outras em fábricas inteiras, só para desviar as atenções das condições deploráveis em que o grosso dos empregados continua a trabalhar.

Clutch feita em colaboração com a Marchetaria do Acre © Flávia Aranha

Flávia Aranha

Quanto aos polos, Flávia voltou para o Brasil com a missão cumprida. “Ganhei um grande bónus, mas também entendi o que era a fast fashion, ainda não estava claro para mim até então”, afirma. Não era só a marca para a qual trabalhava, era um setor inteiro, a nível mundial, a produzir da mesma maneira. “Enquanto estava ali, atingindo os meus objetivos individuais, estava a fomentar uma indústria que contribuía ainda mais para a desigualdade social e para a miséria. Pedi a demissão”, conclui.

Enveredar pelo mundo das artes plásticas pareceu-lhe, na altura, o caminho mais promissor. Contudo, virar as costas à moda não era algo que pudesse fazer de ânimo leve. Por outro lado, o horror minava os bastidores da indústria — “Como é que eu ia ser estilista?”, recorda. Ainda na Índia, contactou com a outra face da moeda — uma pequena oficina, em contraste total com a produção de escala, perdida no alvoroço de um mercado de rua. Lá dentro, estava um universo inteiro de pigmentos naturais e uma mulher com um discurso apaixonado sobre fazer cores a partir de plantas. O encanto revelou-se contagioso e Flávia Aranha criou uma marca de raiz. Em jeito de teimosia, quis provar que a moda podia seguir outros caminhos.

Cebola roxa, urucum e crajirú: as cores de Flávia Aranha

Pode dizer-se que Flávia Aranha partiu numa viagem de estudo, uma pesquisa itinerante que a levou a vários pontos do território brasileiro. Passou um mês com as rendeiras de Pernambuco. Em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, encontrou a Justa Trama, uma cooperativa de economia solidária que reúne agricultores, tecelões, costureiros e artesãos e que começou com um movimento social de mulheres a lutarem pelas suas terras. Hoje, continuam a ser parceiros da marca, assegurando a produção e o tratamento de algodão orgânico. “Voltei às minhas raízes. Então vi que a solução estava em todas essas pontas — no artesanato, nos movimentos políticos — que não tinham nada a ver com moda. Fui a primeira marca a conseguir conectar as iniciativas brasileiras que estavam acontecendo, mas que não estavam inseridas no mundo da moda”, afirma.

O processo de tingimento no atelier, em São Paulo © Flávia Aranha

Flávia Aranha

Flávia Aranha, a marca, arrancou em 2009 com a primeira loja atelier e uma equipa de duas pessoas — a própria designer e empreendedora e uma costureira. “A minha primeira coleção era toda tingida com chá. Eram 12 cores, mas ninguém enxergava as 12 cores, só eu. Todo o mundo falava que era tudo bege. Mas cada cor tinha um papel para além do seu tom. Tinha o processo, a memória da planta, a cultura da planta, de onde ela veio”, explica. As plantas e, consequentemente, a terra são o ponto de partida de qualquer desenho, peça ou coleção, do algodão que cresce a sul, à juta e à malva que crescem junto ao rio Amazonas, passando pelas amoreiras do Vale da Seda, no Paraná, a região que mais produz esta fibra no Ocidente. Do lado dos pigmentos, há outro mundo — pau-brasil, crajirú, urucum, macela, cebola roxa, erva-mate, romã, jabuticaba, entre muitas outras. Isto, para não falar nas folhas, flores e cascas secas usadas para obter estampados.

O processo é artesanal e, no ano passado, passou a ser feito num atelier maior. Apesar dos avanços tecnológicos, Flávia e a equipa de quatro pessoas encarregue dos tingimentos não abdicaram totalmente das grandes panelas que permitem aos tecidos ou meadas ganhar cor. Ali, tal como nas oficinas e ateliers parceiros e nos campos onde a matéria-prima cresce, tudo é inevitavelmente lento. O ritmo pressupõe, a jusante, uma relação diferente com a roupa. Através de um QR code colocado na etiqueta de cada peça, Flávia permite que o cliente final percorra a cadeia, ganhe respeito pelos seus intervenientes e termine a viagem a valorizar (e conhecer) mais o que está a vestir. “É uma visão holística e ecossistémica da moda. Integra tudo e pressupõe que tudo vem da terra e volta para a terra. É bem hippie, mas é muito verdadeiro para a gente”, afirma.

Atualmente, a marca colabora com 30 cooperativas, espalhadas pelo país. Entre elas está a Marchetaria do Acre, organização criada por um artesão investido na formação de novos profissionais. O trabalho minucioso dos encaixes em madeira é visível nas clutches Flávia Aranha. Uma outra, apoia mulheres com distúrbios mentais. É de lá que chegam alguns dos tricots que compõem as coleções da marca. “O legal é que a gente consegue ir crescendo. O Brasil é gigante e conforme a gente cresce consegue criar relacionamento com novas cooperativas”, acrescenta Flávia.

A criação de padrões, utilizando folhas, flores e cascas secas © Flávia Aranha

Flávia Aranha

Dentro desta rede, a comunicação é constante. A preparação de uma coleção pode começar com mais de um ano de antecedência, quando os produtores gerem as safras e o atelier precisa de assegurar as quantidades de matéria-prima necessárias. A partir do momento em que os tecidos chegam, uma peça pode demorar entre dois e oito meses a chegar à loja, no caso dos tingimentos e tecelagens totalmente manuais. “A gente consegue ter uma mistura de produtos com processos artesanais e com processos industriais. É um equilíbrio. Aquele casaco, por exemplo, é feito de lã ao natural, sem tingimento, mas em tear industrial. O forro é tingido na panela”, explica, referindo a uma das peças expostas na loja.

Portugal, uma segunda casa

No último ano, Flávia teve oportunidade de visitar Arraiolos, no Alentejo. A comoção foi inevitável. Ainda na faculdade, desenhou uma coleção onde o ponto tradicional da terra tinha o papel principal. Na época, colaborou com um grupo de mulheres lusodescendentes em Atibaia, no estado de São Paulo. Desenhou sobre a tela e elas preencheram-na. Mesmo que a vinda para Portugal seja, essencialmente, um passo estratégico de entrada no mercado europeu — a criadora admite que o público francês já tem empatia com a marca –, a viagem transatlântica tem de ser feita de forma sustentada.

Os tons finais das peças, ainda no atelier @ Flávia Aranha

Flávia Aranha

“A gente tem olhado muito para esse nosso modelo de relacionamento e pensado como é que a gente cria isso nossos lugares. A ideia [em Portugal] é fazer colaborações locais e usar a metodologia que a gente criou no Brasil, celebrando a potência de cada país”, esclarece. Para o início do próximo ano, a designer já planeia uma nova visita, desta vez à Serra da Estrela, ponto de interesse no setor dos lanifícios. Juntar organizações e artesãos portugueses a esta rede é uma possibilidade para o futuro, bem como o intercâmbio de ofícios e tradições.

No Brasil, a marca avança em várias frentes. Em abril, Flávia Aranha estreou-se na São Paulo Fashion Week, que há mais de um ano criou o Projeto Estufa, uma plataforma de discussão de ideias para o futuro da moda. Flávia não é a única a pensar neste modelo, mas é a que já o levou mais longe. A marca está a apoiar um novo núcleo de produção de algodão orgânico no Vale do Urucuia, em Minas Gerais, projeto que afetará cerca de 300 mulheres. Enquanto isso, a pesquisa de materiais continua. Em curso está a criação de um tecido de juta e malva em colaboração com uma empresa de sacos de café, agora desafiada a dar o seu contributo para o mundo da moda. O produto final será uma espécie de linho nativo brasileiro.

O crescimento terá sempre de ser comedido para uma marca como a Flávia Aranha. “Como ampliar o nosso impacto sem ter de crescer absurdamente? De algum jeito, a gente acredita que tem esse papel de influenciar o sistema, mas não necessariamente só fazendo roupa”, admite. Crescer à imagem das grandes empresas de fast fashion seria, na opinião da empresária, “um tiro no pé”. Alargar o raio de ação, muito além da produção de vestuário, é um plano também ele já em marcha. Falamos do Instituto Teia, estrutura anexa à marca ainda em processo de criação. Já há palestras e workshops de tingimento a acontecer, mas o objetivo é fazer mais para desenvolver cooperativas e proporcionar consultoria a pequenos artesãos e marcas.

Campanha verão 2019 © Flávia Aranha

Flávia Aranha

Em São Paulo, o projeto Roupateca conta com dezenas de peças de roupa, entre elas, algumas cedidas por Flávia Aranha. Podem ser alugadas, usadas e depois devolvidas, por uma fração do preço de venda. “Não é só a moda, é uma transformação do lifestyle“, afirma a criadora, enquanto justifica a criação de um sabão biodegradável para os clientes lavarem as peças. As iniciativas inteligentes não ficam por aqui. Recentemente, a marca começou a trabalhar com um banco de tecidos. Dezenas de empresas — grandes, médias e pequenas — recorrem a esta estrutura, obtendo créditos a partir da doação de restos da produção. Esses créditos podem depois ser usados para obter outros tecidos. “No outro dia, uma menina fez lingerie com sobras das nossas sedas. Ficou maravilhoso”.

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