Sem ajudas, com os mínimos conhecimentos e sem local próprio para a prática. Foi assim que em 2004 se começaram a fazer touchdowns em Portugal, no parque da cidade do Porto.

Touchdowns? Futebol Americano? Sim, o desporto existe no nosso país e o campeonato nacional já vai para a sexta edição. Começou por ser disputado por seis equipas, incluindo uma equipa espanhola convidada, e neste momento é composto por dez equipas, todas nacionais.

Passou uma década desde que um grupo de jovens do Porto começou a praticar o desporto na Invicta. O que conheciam do jogo tinham visto na internet e nos jogos transmitidos na televisão por cabo e mesmo sem muita competência, divertiam-se a jogar. A brincadeira que começou por ser, ganhou responsabilidade e acabariam por formar os Porto Renegades, uma das equipas que ainda hoje faz parte do campeonato.

Alberto Aliberti é americano, está em Portugal há nove anos por causa de negócios e foi um dos primeiros treinadores no nosso país. “Estava cá há quatro semanas e já não podia ver futebol à frente. Morava perto do parque da cidade e um sábado ouvi um barulho e disse “Estão a jogar football”. Corri o parque, vi “football” e não queria acreditar. Ninguém estava a ver. Estavam 12 miúdos a jogar. Era terrível, mas divertiam-se e fiquei a ver. Até que um deles faz uma grande jogada e eu gritei “Yeeeaahhh” e eles pararam e ficaram a olhar para mim”, conta sorridente Alberto ou “Coach” (apesar de já não ter essas funções) como o tratam nos Mutts, equipa com quem agora só colabora. O grito tinha-lhe valido a abordagem dos jovens e passou, a partir dali, a ser o treinador.

Hoje tudo é diferente. Já ninguém treina no parque da cidade da Invicta, existem campos, material próprio e pessoas com competência no desporto. Paulo Vasconcelos, treinador principal dos Porto Mutts dá o exemplo do que acontece com a sua equipa: “Estamos num processo de evolução. Inicialmente, começámos com apoios de amigos ou de familiares, mas hoje já temos um patrocínio sério. Alguém que nos apoia e que nos ajuda a valorizar a marca. Primeiro é preciso valorizar a marca e o desporto. Só assim é que vão surgir mais apoios”.

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O Superbowl, final do campeonato nacional dos EUA, é o auge do futebol americano mundial e os números atingidos demonstram a grandeza do evento. A realidade portuguesa está a anos-luz deste fenómeno mediático. “Temos que saber onde estamos. Temos uma cultura muito futebolística. Gostava que o futebol americano chegasse ao nível do râguebi e que depois melhorasse, evidentemente”, refere Amílcar Piedade, treinador dos Lisboa Navigators. “Pensar em profissionalismo será pôr o carro à frente dos bois. Não estou a ver isso a acontecer pelo menos na próxima década”.

Para além de todos os obstáculos já referidos, Amílcar Piedade e Paulo Vasconcelos falam de um outro que surge dentro do próprio clube. Contam que são muitos os treinos em que não têm todos os atletas e que muitos desistem por falta de tempo. Ricardo Pereira, jogador dos Maximinos Warriors (Braga), é um dos que tenta lutar contra essa falta de tempo. “Tira muito tempo mas quando fazes por gosto, onde o único ganho que tens é a tua própria satisfação e prazer, é fácil conciliar tudo. Em bom português, há quem prefira ir para o café dar à treta ou ir ao cinema, eu prefiro ir treinar”.

O jogador português

Alberto Aliberti, que conhece melhor que ninguém o desporto, procura ajudar os jovens que surgem. Vê no jogador português qualidade, mas identifica prontamente as principais diferenças para o americano: “Primeiro são demasiado agradáveis, não são suficientemente agressivos. Depois a sua mentalidade desportiva é a do futebol europeu. Preocupam-se mais com eles próprios e com as suas qualidades do que com a equipa. Estão sempre à procura de ser a estrela do jogo. E no futebol americano é completamente diferente, as suas necessidades são secundárias.”.

A falta de agressividade descrita pelo coach é uma ideia partilhada por treinadores e jogadores. Miguel Caratão, conhecido também por “Rat”, refere que falta ao jogador português essa mudança de mentalidade para fazer dele ainda melhor: “Somos boas pessoas fora de campo e dentro de campo. A diferença para os EUA é que eles são boas pessoas fora de campo e, quando entram em campo, são máquinas destruidoras, sabem que estão ali para bater. Depois até são capazes de ir tomar café com o adversário, até são amigos de college e estão em equipas diferentes só porque calhou”.

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“Máquinas destruidoras”, “agressividade”, capacetes, ombreiras, placagens são expressões que remetem para uma ideia de um desporto violento. Os protagonistas garantem que não. “Já pratico futebol americano há mais de 10 anos e não considero um desporto violento, é agressivo mas não violento”, diz Nélson Fernandes, ou “Canada” quando põe o capacete e as ombreiras. “Quem pensa em violência pensa em violência “barata”. Pessoas a tentar partir braços e pernas e a lesionar de propósito. Isso não existe”. Ricardo Pereira confirma o jogador dos Mutts e aponta para as estatísticas: “É óbvio que há brutalidade no jogo e uma certa violência, mas não da maneira que pensam. Chegou a haver um estudo e o índice de lesões graves era semelhante ao nosso futebol europeu.”.

Para poder praticar o jogo é preciso um atleta muito bem preparado fisicamente que não treine apenas a modalidade mas que a complemente com outras atividades. Amílcar Piedade destaca esse comportamento como um dos trunfos dos atuais campeões nacionais: “O jogador americano trabalha muito mais a sua preparação física, pratica outros desportos como a natação, vai ao ginásio, e nos Navigators grande parte dos jogadores faz isso”. Para além da boa preparação física, defende mais duas características fundamentais nos praticantes da modalidade: a capacidade de sofrimento e a inteligência tática.

“É um jogo muito complexo taticamente. É preciso grande espírito de sacrifício e de entrega, porque é um jogo de colisão que nem sempre é agradável jogar e, às vezes, é preciso fazê-lo com uma dor ou outra. É preciso inteligência e muito treino para perceber o que estamos a fazer. Depois, em campo, é quase memória muscular.”

Muita da inteligência do futebol americano passa pelo Quarterback, o cérebro da equipa. São 11 para 11 no campo mas todas as jogadas passam por este homem. É o jogador que pensa todo o jogo da equipa em quatro ou cinco segundos e tenta fazer com que a equipa faça touchdown (o golo do futebol americano). É o treinador dentro de campo, executa e manda executar as ideias que o coach lhe transmite.

“Rat” é um dos quarterback da liga portuguesa: “A responsabilidade é brutal. Depois, a maneira de gerir isso é que faz um bom ou mau quarterback. Independentemente de tudo que se está a passar à tua volta, tens que ser tu a gerir isso. As jogadas normalmente vêm da sideline, do treinador, mas pode haver um acordo mútuo. Mas a jogada passa sempre por nós”, assegura.

Cheerleaders? Também já há em Portugal

E adeptos de futebol americano existem? Se no início eram também os amigos e familiares que acompanhavam as equipas, hoje já existem adeptos do desporto e que vão aos estádios porque querem ver futebol americano e não porque conhecem este ou aquele jogador. Miguel Caratão destaca até o envolvimento que alguns adeptos passam a ter com o clube: “Começaram por ser os nossos amigos e familiares a vir assistir aos jogos, mas depois começámos a ganhar simpatizantes, pessoas que gostam da modalidade e que, posteriormente, até se envolvem com o clube sem quererem jogar. Ajudam com a água, na organização do campo, com a música em alguns jogos mais importantes.” O quarterback é peremptório ao afirmar que a sua equipa, juntamente com os Maximinos Warriors e os Lisboa Navigators são os clubes nacionais com mais apoio.

O apoio aos Navigators é inegável. São o único clube que tem cheerleaders, uma tradição também norte-americana, trazida para Portugal pela capitã Patrícia Nisa, que estudou nos Estados Unidos. Neste momento são sete elementos que constituem as Lisboa Navigators Cheerleaders e, para além do objetivo de aumentar o número ano após ano, têm outro desejo: “Incentivar outras equipas a terem também o seu squad de cheerleaders. Isso iria permitir não só uma espécie de competição entre os grupos, mas também a partilha de conhecimentos e experiências”, refere Patrícia.

Bem recebidas em todos os campos onde se deslocam, as cheerleaders sentem que a criação do grupo foi um passo importante para a modalidade: “O futebol Americano é ainda um desporto pouco conhecido em Portugal e como tal deve ser mais divulgado para que possa adquirir mais adeptos. A nossa presença tanto nos jogos como nas redes sociais permitiu não só dar a conhecer o cheerleading em Portugal, mas também a expandir a equipa que representamos”.

O salto para a imprensa

Como desporto recente e a dar os primeiros passos sólidos no nosso país, seria de esperar que os intervenientes da modalidade quisessem divulgação e destaque na imprensa nacional. Essa teoria saiu defraudada e as pessoas ligadas ao futebol americano explicam porquê.

“É necessário continuar a criar bases e estruturas concretas e sólidas para permitir que o desporto cresça, para depois aparecer na imprensa” afirma Nelson Fernandes, uma ideia que é partilhada por quase todos. Amílcar Piedade, treinador principal dos Lisboa Navigators, vencedores dos cinco campeonatos realizados, coloca também para segundo plano a presença massiva na imprensa e prefere destacar as mudanças que vão acontecer no futuro próximo…

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“Estamos a criar algo novo e é suposto criar algo com qualidade, com uma boa estrutura. Não é tão importante ser mediático já”, assegura. “A associação que organiza o campeonato vai passar a federação. Foram aprovados estatutos novos, feitas novas eleições e agora vamos ter pessoas à frente da associação que não estão ligadas a clubes. Faltavam essas pessoas para fazer isto crescer”, salienta.

A aposta na formação e o desafio a quem nunca jogou

Os Navigators já têm um escalão dos 15 aos 17 anos, enquanto “Canada” já implementou nas escolas onde trabalha o Flag Football, variante do futebol americano mas sem contacto. Os Porto Renegades também já implementaram esta vertente e a sua equipa é composta na maioria por ex-juniores. “Rat” elogia a aposta na formação e deixa o recado: “Se não apostarmos nas camadas jovens, daqui a uns anos queremos jogar e não temos ninguém”.

Para graúdos que nunca tenham experimentado, lançam o desafio de o fazerem, apesar de reconhecerem que são muitos os que após alguns treinos desistem, quer por indisponibilidade horária ou porque acabam por não gostar, às vezes por alguma placagem que não correu tão bem. O experiente coach Alberto Aliberti reitera o desafio e deixa uma mensagem curiosa sobre os tipos de praticantes que aparecem em Portugal: “Existem os muitos atléticos, que depois de mudarem a mentalidade e ficarem agressivos, se tornam bons jogadores. Depois há os que vêm do soccer. E ainda há quem não é bom atleta, aquele que na escola vai para a baliza, porque é gordo e pouco rápido. Chegam ao Futebol Americano porque não estão felizes com o soccer. Estas pessoas não tiveram educação desportiva, por isso precisam de mais tempo, pode ser uma temporada até, mas quando mudam, cuidado! Passam a ser bons atletas e bons futebolistas.”

O campeonato começa este fim de semana com o desafio entre os Lisboa Devils e os Crusaders e só termina dia 6 de junho, data do SuperBowl português. As dez equipas inscritas este ano na APDFA (Associação Promotora do Desporto de Futebol Americano) prometem espetáculo e garantem que vão lutar por cada jarda até ao touchdown final.