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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Graça Freitas: “Tive mesmo muito medo durante a pandemia”

Na primeira entrevista que dá depois da condecoração, Graça Freitas reconhece os erros e omissões, fala do medo que sentiu e também das pressões que sofreu. Mas deixa uma garantia: "Saio muito grata".

Ainda fazia tratamentos para o cancro, entretanto transformado em doença crónica, quando teve de assumir a linha da frente do combate à pandemia. E também por isso teve “muito medo”. Perdeu um amigo próximo, visita de casa, durante a fase mais aguda. Foi forçada a ter proteção policial e, de tão estranho que lhe pareceu, não conseguiu nunca perguntar porquê. No meio de tudo isto, quando choviam as críticas mais duras, confessa que houve alturas em que esperava ter tido mais apoio.

Em entrevista ao Observador, no programa “Sob Escuta”, Graça Freitas, em fim de ciclo à frente da Direção-Geral de Saúde, assume que cometeu erros vários, reconhece que pode ter cometido algumas “omissões” e que nem sempre terá comunicado bem. Reconhece também que a desvalorização inicial do vírus, que a confusão em torno das máscaras ou as hesitações sobre o fecho e abertura das escolas nem sempre contribuíram para a resposta mais eficaz. Mas, ainda assim, deixa uma garantia: “Não me arrependo de nada. Tenho a noção que fiz o que pude. E é essa a tranquilidade que tenho. Era muito difícil ter evitado a maior parte das mortes”.

Sem poupar elogios a Marta Temido, “absolutamente exemplar na forma como se dedicou ao combate à pandemia”, de uma “capacidade e resistência louváveis”, Graça Freitas assegura não ter ficado com qualquer amargo de boca em relação à forma como Gouveia e Melo foi elevado a herói nacional, ofuscando as duas figuras que mais se expuseram durante a pandemia. “Creio que o senhor almirante não terá pedido às pessoas que o elevassem a herói nacional. São coisas que acontecem.”

Minutos antes de dar a entrevista ao Observador, tinha deixado o Palácio de Belém onde fora agraciada com Grã-Cruz da Ordem do Mérito por Marcelo Rebelo de Sousa. Em jeito de despedida, revela que se vai dedicar agora às suas três grandes paixões: os livros, as plantas e as viagens. E vai-se despedindo dos palcos públicos. “Olhando para o passado, todos pensamos que nos poderíamos ter superado mais um bocadinho. Mas, de um modo geral, saio com essa sensação: nos últimos anos, a vida foi muito boa para mim. Saio muito grata. E com tranquilidade.”

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[Veja aqui a entrevista completa a Graça Freitas]

“Proteção policial? Fiquei tão estupefacta que não consegui perguntar porquê”

Acabou de ser condecorada com a Grã Cruz da Ordem de Mérito. Que Graça Freitas acha que vai ficar para a história? Como é que gostaria de ser lembrada, pelo menos?
Nunca pensei em ficar para a história, tenho de ser muito sincera. Fui uma servidora pública durante toda a vida e fui fazendo coisas que acho que foram interessantes para a saúde pública. Mas nunca tive esse pensamento de ficar para a história.

A história acabou por se encontrar consigo.
Pelos vistos, a história encontrou-se comigo e agora tenho de me habituar à ideia desse encontro. Porque não é instantâneo. Pensava que, quando muito, no final de 42 anos de serviço, o Ministério da Saúde me daria uma medalha de mérito profissional. Não mais do que isso. Nunca pensei ficar para a história. E mais: não sei se vou ficar para a história. Isto é tudo tão efémero que é duvidoso que permaneça durante muito tempo.

Esta pergunta está relacionada com uma outra: recentemente, em entrevista ao Expresso, admitiu que sentiu, em alguns momentos, “ausência de defesa”, que se sentiu desamparada. Esperava que o Governo tivesse sido mais solidário consigo?
Não creio que o Governo não o tenha sido. Aliás, é muito claro que o meu lugar esteve sempre à disposição. Não esperava nem mais, nem menos do que aquilo que o Governo fez, que foi uma atitude correta em relação à minha posição.

Então em que momentos é que se sentiu desamparada?
Houve uma altura em que fui muito criticada. Isso é normal. E, nessa altura, senti, sobretudo por parte daquilo a que chamo os meus pares, as pessoas que me conheciam, que tinham trabalhado comigo, que foram meus colegas, que lidaram em alguma fase da minha vida comigo, algumas com acesso a meios de comunicação, que podiam ter tentado contrabalançar as críticas. Foi um período relativamente curto, também não durou muito tempo.

Ouça aqui a entrevista a Graça Freitas em podcast.

“A vida foi muito boa para mim. Saio muito grata”

Revelou que teve proteção policial. Teve ameaças à sua integridade?
Um dia, no início da pandemia, estava no Ministério da Saúde e pediram-me, depois de uma conferência de imprensa, para não sair, esperar um bocadinho e entrar numa sala onde não era habitual entrar. Estavam dois senhores sentados à secretária. Pediram-me para me sentar e um dos senhores comunicou-me que ia passar a ter proteção policial e o que é que isso significava. Não podia sair da porta do meu apartamento, da minha casa, sem que do lado de lá já estivesse um agente da PSP. E quando regressasse a casa esse agente faria exatamente a mesma coisa: pôr-me-ia à porta, esperaria que fechasse e depois saía. Aquilo foi tão para além do que conseguia conceber, uma cidadã normal como eu, que vou ser absolutamente sincera: não perguntei os motivos.

Nunca lhe disseram que grau de ameaça era esse?
Não, mas eu também não perguntei. Como é que foi possível ter ficado tão estupefacta que não fui capaz de perguntar: “Mas porquê? O que é que se passa? Como é que souberam? O que é isso significa?”. Não disse nada. Disse: “Pronto, está bem. Então o que é que eu faço amanhã?”. O senhor disse-me: “Agora vai dar os seus dados, vai dizer a que horas sai de casa e amanhã já não abre a porta se não estiver lá uma pessoa dos nossos serviços”. Fiquei absolutamente sem dizer nada. É uma coisa que ainda hoje me causa alguma estranheza, o facto de nunca ter perguntado.

Numa das paredes da DGS estão os retratos de todos os diretores da instituição. Desde o dia em que iniciou funções que o retrato de Graça Freitas está na parede ao lado de Francisco George.

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“Era muito difícil ter evitado a maior parte das mortes”

Olhando para trás, consegue identificar o seu maior erro na gestão da pandemia? Tem algum arrependimento nas decisões que foi tomando?
Só me arrependo daquelas coisas que fiz com algum carácter de premeditação, com dolo. E fiz muito poucas na minha vida. Durante a pandemia posso ter cometido omissões, posso ter transmitido pior em algumas situações, posso não ter comunicado tão bem, posso ter sido veículo de algumas coisas menos corretas para aquilo que sabemos hoje. Mas isso não foi feito com uma intenção dolosa. Portanto, não me arrependo.

Dormiu sempre de consciência tranquila?
Sim, dormi. Na altura, com as circunstâncias que tive, tenho a noção que fiz o que pude e é essa a tranquilidade que tenho. Obviamente que podia ter feito melhor com outras circunstâncias.

Há muitas pessoas que lamentam o número de mortes associadas à Covid-19. Acha que era possível fazer mais e melhor?
As mortes são mesmo para lamentar porque foram pessoas, pessoas das nossas relações, das nossas famílias. Na altura, nas estatísticas, eram dados o número de mortes, o número de casos, mas eram de facto pessoas que morreram. Era muito difícil ter evitado a maior parte destas mortes. Note bem que, naquela primeira onda, não tínhamos armas terapêuticas, não tínhamos vacinas, não tínhamos antivirais, não tínhamos anticorpos monoclonais…

Fez-se o que podia ser feito?
Fizemos o que podíamos naquela altura. Fizemos nós e fez a maior parte dos países: recorrer a uma medida drástica, o isolamento, perante uma ameaça que desconhecíamos.

Graça Freitas fotografada nos estúdios do Observador depois de ter sido condecorada com a Grã Cruz da Ordem de Mérito.

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“Não houve nunca a tentação de esconder a gravidade da doença”

Logo no início da pandemia fez uma afirmação que viria a marcar também a sua imagem como uma das gestoras da pandemia: que o vírus não chegaria cá tão cedo, que esse era um cenário que parecia improvável. Teme ser recordada por essa afirmação que depois não se verificou?
Essa afirmação já foi repetida muitas vezes. Lembro-me da altura em que a disse, lembro-me até do contexto, e não a disse assim a seco. Era a informação que a Organização Mundial de Saúde nos transmitia — não tinha estudos científicos, não se sabia o R(0) e o R(t) do vírus, não se sabia o período de incubação, o período de transmissibilidade, a contagiosidade. Portanto, o que fiz foi veicular o que era o pensamento da Organização Mundial de Saúde nessa altura.

Não houve a tentação de esconder a gravidade da doença?
Não houve nunca. Sou absolutamente pela transparência e pela verdade que é conhecida à data. Tal como acho que não devemos desinquietar ou angustiar as pessoas para além daquilo que é estritamente necessário, também não devemos ocultar a verdade. As pessoas são adultas, têm um comportamento de um modo geral responsável, portanto a verdade deve ser sempre dita.

Mas em relação às máscaras, por exemplo, já havia alguns países a tomar a medida de as implementar e por cá ainda falávamos do receio de falsa sensação de segurança. Como é que se explica isso?
A utilização das máscaras também não foi unânime em todos os países. Aliás, se repararem, a maior parte dos países adotou medidas diferentes em diferentes etapas. E depois, no final, nunca chegamos a perceber quem é que teria feito a melhor escolha possível em cada momento. A distância social era considerada a melhor medida. Se esse era o método mais eficaz, o que interessava é que estivéssemos distanciados. E há uma tentação de nos aproximarmos mais quando estamos com uma máscara. É normal, é intuitivo. Tudo isto eram, de certa forma, medidas empíricas que estavam a ser experimentadas. Mais uma vez: era o que sabíamos na altura.

Reconhece que, na altura, não havia máscaras, nem capacidade instalada para as produzir.
Não havia assim tantas máscaras.

Não teria sido mais franco dizer: “Não temos máscaras suficientes”?
Também não havia máscaras suficientes, mas podia ter-se recomendado seletivamente em algumas circunstâncias, como se recomendava já para os serviços de saúde. Mas mesmo em países que as tinham, o calendário para adotar máscaras foi muito diverso nos diferentes países. De facto, a pandemia lançou-nos um desafio terrível. Foi tudo muito rápido, muito concentrado no tempo, era preciso agir muito depressa e o grau de incerteza era muito grande. Tudo aquilo foi muito intenso do ponto de vista emocional. Foi tudo de uma intensidade que é quase difícil dizermos que somos completamente racionais perante um fenómeno tão intenso.

"Sou absolutamente pela transparência e pela verdade que é conhecida à data. Tal como acho que não devemos desinquietar ou angustiar as pessoas para além daquilo que é estritamente necessário, também não devemos ocultar a verdade. As pessoas são adultas"

“Nunca mais olharemos para algo deste género apenas como crise sanitária”

Dizia há pouco que procura sempre transmitir com franqueza todos os dados possíveis à população. Mas a certa altura também havia uma realidade que prescrevia muito rapidamente porque os dados tornavam-se desatualizados. Hoje adotaria outra estratégia de comunicação?
Todos aprendemos. Uma grande lição foi de facto que a comunicação é fundamental, com ou sem pandemia. Temos de comunicar. Temos de comunicar de forma proativa, temos de comunicar em tempo útil e de forma clara. Às vezes, essa clareza não era tão percecionada por nós, que tínhamos de comunicar. Foi um movimento difícil. A questão dos dados e da desatualização é de facto difícil. Nós, as pessoas da ciência, vivemos com esta incerteza e com esta ambiguidade. Mas como é que isso se transmite aos cidadãos que estão angustiados e com medo? As pessoas querem mensagens claras. Querem mensagens que lhes deem tranquilidade.

Outra das questões que também causou muito debate público foi a abertura ou o fecho das escolas. Disse-se repetidamente que as escolas não representavam o mesmo risco de transmissão do vírus, até que foram efetivamente fechadas. Foi um dos casos em que a política se sobrepôs à ciência? 
O papel da ciência é mais limitado à ciência. Ou seja, trabalhamos com base em estudos que nos dizem que uma determinada medida é segura. As pessoas que trabalham na política têm outro nível de responsabilidade, incomensuravelmente maior, e têm de pensar em várias peças ao mesmo tempo — na questão sanitária, na ciência, na propagação, mas também no impacto na aprendizagem, na saúde mental, no impacto económico, no impacto social. O puzzle da política é muito mais complexo porque é multivariado. No final do segundo ano da pandemia, começa a surgir o termo “sindemia” como significado de fenómenos que, sendo sanitários no seu início, depois têm tantas interações sociais e económicas que acabam por ser mais do que pandemias. Nunca mais olharemos para algo deste género apenas como uma crise sanitária.

Feito esse diagnóstico, teria sugerido ou defendido que não se encerrassem as escolas tal como aconteceu?
Houve alturas em que acho que foi importante. Foi importante pôr os dois pratos da balança. Se não fechássemos as escolas, tínhamos aumentado a propagação do vírus inevitavelmente porque quanto mais pessoas se juntassem, quanto mais pessoas infetadas houvesse, mais outras se infetariam. Encaro o encerrar escolas como o equilíbrio possível em determinadas alturas.

O gabinete da diretora-geral da DGS começa já a ser arrumado. As estantes estão praticamente vazias e alguns quadros a serem mudados de local.

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“O meu lugar esteve sempre à disposição”

Na pandemia, Graça Freitas representava a ciência. A ex-ministra Marta Temido representava a decisão política. Em que momentos é que os dois mundos andavam desencontrados?
Os nossos dois mundos não andavam totalmente desencontrados. Tínhamos era uma visão às vezes diferente — porque os olhos da ministra eram os olhos políticos e os meus eram os técnicos — e podíamos ter o desencontro do timing.

Consegue identificar algum momento em que isso tenha acontecido?
Não consigo isolar particularmente um momento. Mas nunca houve um momento inultrapassável que não se tivesse resolvido com aquilo que estamos a fazer neste momento: conversar. Porque conversámos imenso ao nível do Ministério da Saúde, reunimos imensas vezes, tínhamos briefings diários entre o Ministério e todas as instituições do Ministério da Saúde. Houve diálogo, debate e contraditório.

Em nenhum momento sentiu necessidade de pôr o seu lugar à disposição por discordância com a linha que estava a ser seguida?
O meu lugar, por natureza, esteve sempre à disposição. Por discordância nunca se chegou a esse ponto. Falávamos muitos frequentemente e, obviamente, tivemos de afinar muitas posições.

Tiveram de afinar no Natal de 2020? Aconselhou prudência ao Governo?
Olhando para trás — o que é fácil — creio que coincidiu com uma coisa que também aprendemos com esta pandemia: as pessoas chegaram àquele Natal cansadas de não verem as suas famílias, de não verem os seus amigos. As pessoas estavam ávidas, e bem, de encontrarem os seus, aqueles de quem se tinham distanciado durante a pandemia.

Foi também uma questão de saúde mental?
É uma questão do que a sociedade está disposta a aguentar ou a pagar por determinado nível de saúde e segurança. Temos sempre de contar com a sociedade e aprender. Quando algumas medidas, até noutros países, foram implementadas contra a vontade da sociedade não correram muito bem. Creio que aconteceu um movimento social como resposta a um período muito longo de isolamento numa sociedade que é extremamente afetiva.

Com o que sabe hoje não teria dado essa orientação?
Com que sei hoje é facílimo dizer tudo o que seria perfeito.

Foi um momento muito complicado. Esteve na origem da terceira vaga. O preço a pagar tornou-se ainda maior.
Voltamos sempre à mesma questão: na altura, não sabíamos.

Mas houve outros momentos relacionados até com grandes eventos. Recordamos a final da Liga dos Campeões, por exemplo, que resultou num grande aglomerado de adeptos. Foi avisado aceitar esse evento?
Nessa altura, já tínhamos as pessoas vacinadas, já sabíamos que as pessoas mais novas e mais saudáveis não teriam doença grave, já sabíamos que os nossos hospitais estavam preparados para aguentar uma subida de casos. Era um risco mais calculado. E também não podíamos continuar completamente fechados. Tínhamos ir abrindo de forma controlada.

"Uma grande lição foi de facto que a comunicação é fundamental, com ou sem pandemia. Temos de comunicar. Temos de comunicar de forma proativa, temos de comunicar em tempo útil e de forma clara. Às vezes, essa clareza não era tão percecionada por nós, que tínhamos de comunicar. Foi um movimento difícil"

“Marta Temido foi absolutamente exemplar”

É médica de formação e um dos momentos politicamente mais delicados da pandemia deu-se quando Marta Temido sugeriu que os médicos eram pouco resilientes, António Costa foi gravado a chamar “cobardes” a médicos. Como é que se sentiu?
Falo por Marta Temido, que conheço. Foram declarações apenas e só menos felizes. Aquilo não corresponde àquilo que Marta Temido pensa. A ministra foi absolutamente exemplar na forma como se dedicou ao combate à pandemia. Teve uma capacidade e resistência louváveis. E uma imensa capacidade de ouvir os outros. Essas palavras não refletiam o íntimo e o pensamento da ministra.

Sobre o desempenho de Gouveia e Melo disse o seguinte: “Calhou a ser o almirante Gouveia e Melo o condutor dessa máquina logística e fê-lo bem. Se tivesse sido outra pessoa com as mesmas aptidões ou parecidas, creio que também o teria feito”. A sua frase parece demonstrar alguma frustração pelo excesso de protagonismo que Gouveia e Melo recebeu. É assim?
Não. Não tiro nenhum mérito ao almirante Gouveia e Melo.

Nem fica um amargo de boca por, de repente, haver uma pessoa elevada quase a herói nacional e as outras não?
Essa parte… Creio que o senhor almirante não terá pedido às pessoas que o elevassem a herói nacional. São coisas que acontecem. Acho que teve um papel importante e que o processo de vacinação foi exemplar exatamente porque muitas pessoas perceberam que fazíamos parte de um todo. Organizámo-nos nessa complementaridade para fazer uma campanha excecional a nível mundial. Fizemos o melhor que sabíamos porque acreditávamos que estávamos a mudar a história da pandemia.

Assim que chegou à DGS, Graça Freitas foi recebida por parte da sua equipa para a comemoração da condecoração.

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“É quase um milagre não ter tido um burnout”

Combateu um cancro em funções na DGS. Como soube que estava doente?
Continuo a tê-lo comigo. É uma doença crónica, que está controlada neste momento. A fase aguda aconteceu há uns anos e soube de forma absolutamente inesperada. Sempre fiz rastreios. Estava numa reunião, eram três menos um quarto e disse: “Olhe, até já, vou fazer a minha mamografia, mas não acabem a reunião sem eu voltar.” Pronto, foi assim que soube. Foi um choque imenso.

Estava, naturalmente, numa posição mais frágil. Porque é que continuou a trabalhar enquanto fazia os tratamentos?
Achei sempre que tinha de trabalhar. E tenho de falar de outra circunstância. Catarina Sena era, como eu, subdiretora. Foi diagnosticada antes de mim e era muito mais nova, na casa dos 30 e pouco. A parte mais difícil de lidar com tudo isto foi estarmos as duas doentes. E quando soube que estava doente, chorámos as duas, e a Catarina disse-me uma coisa extraordinária: “Graça, ocupa a cabeça.” A melhor forma que encontrei foi trabalhar. Todas as ocupações não eram suficientemente importantes para que me esquecesse que tinha uma doença grave.

Teve medo?
Bastante. Tinha abandonado todos os meus maus hábitos de vida. Tinha fumado durante 20 anos e tinha deixado porque não queria morrer cedo. Como achava que ia morrer de um problema cardíaco ou cardiovascular, tirei todos os fatores de risco.

E durante a pandemia? Estando na condição em que se encontrava, o risco era maior.
Na altura da pandemia, já não estava tão debilitada. Já não estava na fase de imunodepressão. Estava a fazer terapêutica, mas não a que conduzia à imunodepressão. Apesar de tudo, tendo uma doença de base o risco era maior, obviamente. E tive medo durante a pandemia. Até porque foi na altura em que as pessoas começaram a ir para intensivos. Tive mesmo muito medo, não oculto. Monitorizava os meus sinais vitais, tinha oxímetros, tinha termómetros… Aliás, tinha tudo em duplicado para nem haver enganos. Tive um medo muito grande de transmitir a doença ao meu marido.

Sentiu ansiedade como o comum dos mortais.
Acho que senti mais. Eu sabia a evolução da doença, até sabia o dia em que a doença podia passar de aparentemente mais benigna para para um cenário pior. Tive medo. Até porque poucos dias antes de mim, o Celso, um grande amigo nosso, de casa, com quem viajávamos, morreu com Covid-19. E só soube depois de estar doente.

E com o volume de trabalho que tinha alguma vez esteve à beira de um burnout?
É um dos grandes mistérios: isso eu não tive. Não me pergunte porquê. Ainda hoje me sinto espantada porque não estive à beira de um burnout. Dormia pouco, alimentava-me mal, não tinha qualquer tipo de distração, mas nunca me senti à beira da exaustão total. No entanto, tive colaboradores da DGS, até bastante mais novos do que eu, que tiveram crises de exaustão. Tive imensa sorte. É quase um milagre.

Mas acha que é a mesma pessoa ainda depois da pandemia?
Não, não. Estou muito mais sábia. Aprendi imensa coisa durante a pandemia. A trabalhar mais com os outros, a ser mais solidária, a ser mais humilde, aprendi até a ler mais depressa o que ciência me dava. Aprendi imensas coisas. Não sou a mesma pessoa que era antes da pandemia.

"Na altura da pandemia, já não estava tão debilitada. Já não estava na fase de imunodepressão. Estava a fazer terapêutica, mas não a que conduzia à imunodepressão. Apesar de tudo, tendo uma doença de base o risco era maior, obviamente. E tive medo durante a pandemia. Até porque foi na altura em que as pessoas começaram a ir para intensivos. Tive mesmo medo, não oculto"

“Não podemos tirar conclusões simplistas sobre mortalidade materna”

Está em fim de mandato e tem, talvez como último desafio, uma questão levantada por vários partidos da oposição, que lhe pediram os relatórios dos grupos de trabalho para estudar a mortalidade infantil e a mortalidade materna. Porque é que ainda não os recebeu?
Uma coisa é aquilo aquilo a que chamamos epidemiologia descritiva, a dos números, em que se diz 18, 24, 35 ou 40%. Isso é uma coisa e dá-nos grandes pistas. É pelos métodos quantitativos que se começa. Outra coisa é entender as causas. O que se está a passar agora com a mortalidade é que houve um aumento, todos sabemos isso, e estamos a investigar e a perceber as causas.

Há algum resultado preliminar?
Por exemplo, a mortalidade materna não é aquela que decorre durante o parto. Ocorre durante qualquer momento da gravidez e ocorre até 42 dias depois do dia do parto. Neste tempo, o percurso das mulheres é vastíssimo — vêm de países diferentes, vão para outros sítios, passam por vários níveis de cuidados de saúde… Tudo isto tem de ser visto. Não podemos tirar conclusões simplistas e dizer que há apenas uma causa. Sabemos que a idade em que as mulheres têm filhos hoje em dia é mais avançada. E isso tem repercussões. Outra coisa que também sabemos é que mulheres com patologia grave arriscam mais uma gravidez hoje porque há mais confiança na ciência e nos serviços de saúde. Ainda estamos a fazer visitas e só no fim é que outros especialistas vão analisar os resultados desses relatórios e tentar perceber o conjunto de fatores que mais influenciou aquele desfecho negativo. Não é uma tarefa fácil.

Já defendeu publicamente que a grande lição que fica da pandemia é a de que “a infraestrutura de Saúde Pública tem de ser reforçada, as equipas têm de ser reforçadas, não só em número, como do ponto de vista tecnológico”. Tem visto essa preocupação efetivamente vertida nas políticas do Governo para a Saúde?
Há alguns sinais. Creio que está a ser contemplado essa atenção. Uma das provas é que abriram bastantes vagas para a carreira médica de saúde pública neste último concurso. Estou convicta que o Governo vai estar atento à essa questão.

E olhando para o Serviço Nacional de Saúde como um todo. O Governo tem conseguido dar resposta aos problemas que se vindo a avolumar?
Está-se a trabalhar na reforma do SNS.

E vai no bom sentido?
Estou convicta que sim. Continuo a considerar que se há coisa que foi importante na nossa experiência coletiva foi o SNS, garantindo o acesso a serviços de qualidade e combatendo as desigualdades e as grandes assimetrias. Estou convicta que esta equipa atual, dirigida por Fernando Araújo, vai trabalhar nesse sentido e há-de surgir uma reforma. Não será, obviamente, de um dia para o outro. Não vamos adormecer num paradigma e acordar noutro.

"Ainda hoje me sinto espantada porque não estive à beira de um burnout. Dormia pouco, alimentava-me mal, não tinha qualquer tipo de distração, mas nunca me senti à beira da exaustão total. No entanto, tive colaboradores da DGS, até bastante mais novos do que eu, que tiveram crises de exaustão. Tive imensa sorte. É quase um milagre"

“A vida foi muito boa para mim. Saio muito grata”

Como e quando tomou a decisão de sair?
Não sei se pela doença, ou por ter começado a trabalhar muito cedo e porque vou ter tempo de profissão suficiente para me reformar, comecei a equacionar o que queria nos últimos anos bastante ativos da minha vida. Manter-me a trabalhar até aos 70 anos nas minhas circunstâncias particulares, e depois de ter passado pela pandemia, não me fazia muito sentido. Fazia mais sentido fazer outras coisas que deixei de fazer na minha vida.

Como o quê, por exemplo?
Tenho três paixões na minha vida. A primeira é a leitura. Durante a pandemia, a grande luta do meu dia a dia, além da laboral, era decidir se dormia logo ou ainda lia quando chegava à cama. Tenho uma grande paixão, mas não me ocupa muito tempo — não sou assim tão boa —, que é dedicar-me às plantas. E tenho uma incomensurável curiosidade e gosto muito de viajar. Espero ainda ter capacidade física para fazer umas grandes viagens nos tempos próximos. E isso foi um dos grandes motivos que me levou a sair da DGS. Do ponto de vista físico, há uma janela de oportunidade que não é assim tão longa e que teria de aproveitar.

Que perfil e características deve ter o seu sucessor?
Há uma frase, que foi dita há muito tempo por Constantino Sakellarides, que era: “[É preciso] pôr o ouvido no chão”. Ouvir o que o mundo nos conta e incorporar as necessidades das pessoas.

Sai com a sensação de dever cumprido?
Saio. Fiz o que pude. Se poderia ter feito mais? Se calhar, sim. Olhando para o passado, todos pensamos que nos poderíamos ter superado mais um bocadinho. Mas, de um modo geral, saio com essa sensação: nos últimos anos, a vida foi muito boa para mim. Saio muito grata. E com tranquilidade.

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