A subida dos salários pelas empresas não está a ser suficiente para compensar a inflação aos trabalhadores, ditando uma perda de poder de compra de 4,7% no terceiro trimestre do ano. Mas os efeitos não são sentidos de forma uniforme por todos. Segundo os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), os funcionários das empresas de maior dimensão são aqueles que, em termos percentuais, mais perdem poder de compra.

Em setembro, os trabalhadores das empresas mais pequenas, com entre uma e quatro pessoas, viram os salários subir, em média 6,6% para 968 euros, uma evolução influenciada pela subida do salário mínimo este ano, precisamente de 6%. Mas que não foi suficiente para compensar uma inflação no trimestre superior a 9%, ditando uma perda de poder de compra de 2,3%. Mesmo se olharmos para as empresas de dimensão um pouco superior, que pagam mais acima desses valores em termos médios, a situação é semelhante: as que têm entre cinco e nove pessoas, por exemplo, subiram os salários em 5,2%, mas perdem 3,5% devido à inflação.

Nas categorias seguintes, das empresas com entre 10 e 49 pessoas, os ordenados cresceram abaixo dos 5%, voltando a esse patamar nas empresas com entre 50 e 249 pessoas. Mas, a partir daí, desce consideravelmente: as empresas que têm entre 250 e 499 funcionários apenas aumentaram salários em 2,2% para 1.599 euros, o que significa uma perda de poder de compra de 6,3%, e as com 500 ou mais trabalhadores ficaram-se pelos 1,8% de atualização, para 1.510 euros, o que se traduz em perdas de 6,7%. Estes são, ainda assim, dos grupos de empresas com salários mais elevados.

O efeito do salário mínimo e do arranque do ano

Em média, olhando para o conjunto da economia, a remuneração total mensal subiu 4% no terceiro trimestre do ano, face ao mesmo trimestre de 2021, para 1.353, mas o “imposto” inflação impôs um corte de 4,7%. A subida nominal é explicada por Filipe Garcia, economista do IMF – Informação de Mercados Financeiros, com a subida do salário mínimo, em janeiro de 2022, em 6%, que abrangeu muitos trabalhadores das pequenas empresas (que, geralmente, pagam salários mais baixos).

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Como consequência, os ordenados muito próximos do mínimo também tendem a ter algum impulso para que se mantenha a diferenciação. Essa subida do salário mínimo, diz o economista, também ajuda a explicar porque é que os números revelam que as pequenas empresas subiram, em média, mais os salários do que as de maior dimensão — que tendem a pagar salários mais altos. Além disso, novas contratações nas empresas de menor dimensão facilmente mexem mais com a média salarial, lembra.

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“Numa empresa menor posso, com mais facilidade, resolver a questão internamente. Vejo se tenho capacidade e negoceio. Numa empresa maior não é assim tão simples” — pela dimensão e possível maior dispersão salarial. Além de que “podem ter orçamentos mais rígidos”. “Além de questões orçamentais, é uma gestão de maior número de pessoas”, refere.

Esse processo de negociação salarial costuma acontecer no final do ano, mas para entrar em vigor no início do ano seguinte. Como, aliás, na função pública, que este ano também não compensou a perda de poder de compra ao manter aumentos definidos em 2021 de 0,9% e em 2023 apenas os funcionários que recebem o salário mínimo vão recuperar das perdas com a inflação. “Quando o Estado tem receitas nominais ligadas à atividade económica e ao PIB nominal e paga aos funcionários públicos com base nos 0,9% de aumento do ano passado está, de certa maneira, a apropriar-se deste diferencial de inflação e do crescimento económico em termos de receita fiscal. Por isso é que o ano tem uma execução fiscal fantástica. Este é um ganho que o Estado tem em 2022 que não é facilmente repetível em 2023“, observa Filipe Garcia.

Acresce que as empresas abrangidas pela contratação coletiva, muitas das quais de grande dimensão, costumam atualizar os contratos com efeitos ao início do ano. É por isso que Filipe Garcia prevê atualizações salariais mais significativas do que as que têm acontecido este ano para as grandes empresas no arranque do ano. Ainda assim, não de forma suficiente para compensar a perda de poder de compra.

Luís Miguel Ribeiro, presidente da Associação Empresarial de Portugal (AEP), também admite que haverá algumas empresas a conseguir responder à inflação deste ano com aumentos salariais. Mas já avisa que esse comportamento não será generalizado, sobretudo para as empresas de alguma indústria, de mão de obra intensiva, que se veem a braços com o aumento dos custos energéticos e das matérias-primas.

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É nessas empresas da indústria que encontra a explicação para a divergência dos números entre as grandes e as pequenas entidades. “É preciso fazer uma análise mais fina sobre quais são essas empresas de maior dimensão, se são de mão de obra intensiva, como o têxtil ou o calçado, que têm sofrido um forte impacto dos custos com energia, com matérias-primas, de transporte e logística, e não estão a conseguir aumentar a remuneração dos seus recursos humanos“, refere, salientando os dados do INE sobre o índice de preços na produção industrial, que sobe acima do índice de preços ao consumidor no setor. “As empresas estão a contrair as suas margens“, assegura.

Nem tudo será perda. Luís Miguel Ribeiro admite que haverá outras empresas, da alta tecnologia, que já conseguirão responder com aumentos salariais aos trabalhadores. Até porque “é o mercado a funcionar”. “Resolver a escassez de mão de obra e procurar determinadas competências faz-se pela subida do salário“, sublinha. Os efeitos dessa escassez de trabalhadores nos salários foram visíveis no setor da restauração e do alojamento, cujo salário subiu, em termos nominais,  6,2%.

Os dados revelados esta quinta-feira pelo INE mostram, ainda, que entre os que mais ganharam, antes de subtraído o efeito da inflação, foram as empresas de “serviços de alta tecnologia com forte intensidade de conhecimento” e, no caso dos setores, o das “atividades de consultoria, científica e técnicas”, assim como o da “informação e de comunicação”. Mas em termos reais, todos os setores perderam com a inflação, mesmo aqueles que tinham escapado no segundo trimestre: a consultoria científica e o de eletricidade e gás.

2023 trará “maior aumento em anos”, mas não o suficiente para evitar perdas definitivas

Os salários de 2022 foram aumentados no arranque do ano, com base na inflação de 2021 e não naquela que disparou em 2022. Como os salários costumam ser atualizados nessa altura, há um outro efeito que pode ter puxado o salário médio nominal, mas em menor intensidade: algumas negociações espontâneas a meio do ano, a pedido do trabalhador ou propostas pela empresa, ou a mudança de emprego, com o novo salário a poder já “incorporar” a inflação, explica Filipe Garcia.

Em 2023, o analista estima que, logo no início do ano, haverá já um aumento expressivo nos indicadores divulgados pelo INE — “o maior aumento salarial em muitos anos”, diz mesmo — das pequenas às médias empresas que não atualizaram salários este ano, a meio, devido à inflação. Tal evolução será, também, impulsionada pelo novo aumento do salário mínimo, em 7,8%, ou por aumentos no setor público que, para quem ganha o salário mínimo, serão capazes de compensar a inflação.

Mas Filipe Garcia não acredita que isso seja suficiente para compensar totalmente a perda de poder de compra. “Acho que vai haver uma subida média abaixo do nível da inflação. Ainda assim, em termos nominais, será o maior aumento em muito anos“, vaticina.