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Há 101 anos à procura das cartas de Mário de Sá-Carneiro

O paradeiro dos manuscritos que Mário de Sá-Carneiro deixou em Paris permanece até hoje um mistério. Uma nova edição da poesia completa do escritor promete revelar novos pormenores. E não só.

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Foi a 26 de abril de 1916 que Mário de Sá-Carneiro, o poeta português que ajudou a criar Orpheu, morreu em Paris. Depois de várias ameaças, suicidou-se às oito da noite no seu quarto de hotel, com cinco frascos de estricnina. José Araújo, um amigo de Paris, assistiu a tudo.

Passaram 101 anos e Sá-Carneiro teve direito a quase tudo — a homenagens dos que o conheceram, edições da poesia, da prosa e até uma placa na fachada do antigo Grand Hôtel de Nice. A única coisa que ficou a faltar foi uma edição crítica da sua obra poética completa. Com poemas dramáticos e tudo. Até agora. Chegou às livrarias Poesia Completa de Mário de Sá-Carneiro, uma edição crítica de Ricardo Vasconcelos. O volume é o mais recente da coleção dedicada ao poeta de Dispersão da editora Tinta-da-China, e surge dois anos depois de ter sido publicada uma edição, também ela crítica, das cartas por ele enviadas a Fernando Pessoa.

Com quase 700 páginas e um extenso aparato crítico (a secção final de notas tem perto de 100 páginas), a presente edição inclui, além dos livros Dispersão e Indícios de Oiro, um conjunto de versos dispersos da infância e juventude (os primeiros que Sá-Carneiro escreveu), uma seleção de fac-símiles e seis cartas inéditas enviadas a Fernando Pessoa depois da morte do amigo Mário, que revelam novos pormenores sobre o desaparecimento dos manuscritos que estavam em Paris.

Ao contrário do que seria de esperar, o livro não está organizado cronologicamente — primeiro surgem os poemas escritos entre 1913 e 1915, os publicados e por publicar, e depois os versos escritos na infância e na juventude, entre 1902 e 1913. A escolha foi deliberada. “Acho que é diferente o peso que tem para o leitor a obra adulta. E parece-me menos lógico e menos útil para a apresentação da obra do escritor com poemas de 1912. Segue-se, na prática, a lógica de Sá-Carneiro”, esclareceu Ricardo Vasconcelos, em conversa com o Observador.

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Poesia Completa de Mário de Sá-Carneiro chega às livrarias a 28 de abril

Admitindo que seria “um mau favor a Sá-Carneiro e aos leitores” começar pela juvenília, o professor de literatura portuguesa e brasileira da Universidade Estatal da San Diego, na Califórnia, explicou que esta organização “faz mais justiça ao escritor e àquilo que ele próprio fez”. Apesar disso, “há uma certa circularidade”, porque “o último poema da juvenília é o ’Simplesmente…’”, que marca a entrada do poeta “na idade adulta na escrita”. “A primeira parte é muito devedora de Cesário Verde. [Sá-Carneiro] chama-lhe ‘quadras naturais’, porque o associa com o Naturalismo. Pessoa terá feito a sua crítica e ele próprio fez modificações ao longo de algumas semanas.” Essas modificações fizeram nascer o poema “Partida”, o primeiro de Dispersão (1914).

“O bando das quimeras longe assoma…
Que apoteose imensa pelos céus!…
A cor já não é cor — é som e aroma!
Vem-me saudades de ter sido Deus…”*

— De “Simplesmente…”

“O fim da juvenília é muito clara, porque vemos de facto um processo de amadurecimento muito expressivo quando ele deixa de querer responder apenas à vontade de publicar e se afasta de uma linguagem que tinha influência sobre ele naquela altura. Ele diz que estava a escrever intencionalmente ao jeito de Cesário, e vemos poemas onde há essa influência, como ‘O Estrume’ [1909] ou ‘A Mulher Grávida’ [1911]. Há claramente esse amadurecimento, um maior controlo sobre o texto e despe-se de uma influência clara. Pessoa tem um papel importantíssimo desde o início, rejeita várias coisas e ele aceita [sempre]”, referiu Vasconcelos.

“Nessa altura, Sá-Carneiro ainda se considerava muito ao mesmo nível [de Pessoa], porque Pessoa não tinha publicado muito. Mas, a partir de 1914, quando conhece Álvaro de Campos, todos os heterónimos e alguma poesia ortónima, a diferença fica muito clara para ele.” Mas isso não significa que Fernando Pessoa não se tenha deixado influenciar pelo amigo. No soneto “Aquele Outro”, escrito em fevereiro de 1916, Mário de Sá-Carneiro fala num “coração talvez movido a corda”. “E isso faz-nos pensar na ‘Autopsicografia’”, salientou o especialista.

"Há claramente esse amadurecimento, um maior controlo sobre o texto. Pessoa tem um papel importantíssimo desde o início, rejeita várias coisas e ele aceita [sempre]."
Ricardo Vasconcelos

No que diz respeito aos fac-símilies, a ideia era “dar a conhecer melhor os objetos que o escritor tocou e manipulou” e “também dar a conhecer os cadernos de Indícios de Oiro em desenvolvimento”. “Percebe-se que há caligrafias diferentes, tinta diferente. A ideia de alguém que escreveu uma data de poemas e fez uma leitura para ver o que ficava [é errada]. É uma aceitação progressiva”, afirmou o especialista. “Tenta-se mesmo apresentar a oficina do escritor. O aparato — a parte que ninguém lê — deve ser valorizado não só pelo seu tamanho, mas porque permite perceber a evolução dos textos.”

É que, assim como as pessoas, os poemas também têm uma história. E essa vem toda contada nas notas finais.

A primeira edição crítica da poesia completa

Esta não é, naturalmente, a primeira edição dos poemas de Sá-Carneiro. Então, qual é a diferença? “É a primeira edição crítica da poesia completa”, explicou Ricardo Vasconcelos. Antes desta, foram publicadas duas edições críticas — uma de Fernanda Toriello, La Rierca Infinita — Omaggio a Mário de Sá-Carneiro (1987), focada nos poemas que Sá-Carneiro publicou ou que indicou para publicar (como aqueles que mandou em carta a Fernando Pessoa), e outra de Giorgio de Marchis, O Silêncio do Dândi e a Morte da Esfinge (2007), uma edição crítico-genética do primeiro livro de poemas do escritor, Dispersão.

Poesia Completa de Mário de Sá-Carneiro reúne, portanto, o melhor de dois mundos — todos os poemas que Sá-Carneiro publicou ou que deixou por preparados para publicação, numa edição com extenso aparato crítico, ainda poemas dispersos, compostos durante a idade adulta e de amadurecimento literário. E não só: a edição inclui ainda textos da juventude, escritos entre 192 e 191, entre os quais se incluem os primeiros versos do poeta.

Não é a primeira vez que estes poemas são publicados, mas é a primeira vez que surgem em formato crítico. “Houve edições anteriores da juvenília [poética], mas nunca em formato crítico. Esta edição trata toda a poesia de forma crítica, mesmo a da juvenília”, explicou Ricardo Vasconcelos. Além disso, as edições anteriores, como a de François Castex (1986), excluíam “os poemas dramáticos em verso e o poema do Chinó”. Possivelmente escrito por Sá-Carneiro para o primeiro número de O Chinó, de 6 de dezembro de 1904, “A Aula de Physica da 3.ª e 4.ª Turma do 4.º Anno” foi reproduzido pela primeira vez por Marina Tavares Dias, autora de Mário de Sá-Carneiro: Fotobiografia (1988), raramente incorporando as edições da poesia completa do autor.

O primeiro número d’O Chinó (reproduzido nesta edição) saiu a 6 de dezembro de 1904. Sá-Carneiro tinha 14 anos

“Jornal académico com pretensões humorísticas”, O Chinó foi fundado por Mário de Sá-Carneio quando este frequentava o Liceu do Carmo, em Lisboa. Como contou, anos mais tarde, ao “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa Rogério Perez, colega de Sá-Carneiro no Carmo, o jornal era uma “crítica aos professores”, com artigos “acerca da arte de falar e escrever” e “até gazetilhas em verso”. O título era, de acordo com Perez, uma referência ao “chinó de um mestre”. Apesar da fama que gozava entre alunos, O Chinó teve vida curta. “Informado do caso, [o pai de Sá-Carneiro] mandou retirar o semanário do quiosque do Carmo, depositário para a venda, e reembolsar os assinantes”, relatou Perez ao Diário de Lisboa. Poucos números depois, morria assim O Chinó.

“São estas as palavras
Do tal bom professor,
Só emprega termos técnicos
Que nos causam grande horror

Se queres ouvir o Valente
Ó leitor que isto lês
Então leva para a aula
Dicionário de português!”

— De “A Aula de Physica da 3.ª e 4.ª Turma do 4.º Anno”

Em relação ao poema publicado neste número um, “A Aula de Physica da 3.ª e 4.ª Turma do 4.º Anno”, não existe nenhuma indicação do autor. Porém, tudo leva a crer que terá sido escrito por Sá-Carneiro. “Desde logo, a explícita indicação de Rogério Perez de que ‘as gazetilhas em verso’ eram do ‘próprio Sá-Carneiro’. Leva-se ainda em consideração o poema ‘Perfil’, datado genericamente de ‘1905’, em que Sá-Carneiro satiriza o mesmo professor Valente”, referem as notas de Ricardo Vasconcelos. O professor Valente parece ter sido um ódio de estimação do jovem poeta, uma vez que surge referido num outro texto, que se encontra guardado na Biblioteca da Universidade de Coimbra. Este, uma lista de professores com a respetiva avaliação, refere o seguinte sobre o tal Valente:

“Valente = Um pobre diabo muito pedante e que deixa fazer tudo quanto querem os seus alunos. Bom.”

Por publicar estavam os primeiros versos escritos por Mário de Sá-Carneiro, em 1902, quando tinha 12 anos (Sá-Carneiro nasceu em 1890), que se encontram registados em cadernos à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal. Entre estes estão os poemas “A Conquista de Ceuta”, “D. Alvaro”, “O castello mysterioso”, “Um amigo”, “Os 7 pecados mortaes”, “O mar, esse espaço largo” e “Um médico optimo”, que surgem reproduzidos na presente edição.

Um poeta com sentido de humor

A vida — e principalmente a morte — de Mário de Sá-Carneiro têm exercido uma grande influência na forma como a sua obra tem sido encarada e interpretada. Em Ouro e Alma: Correspondência com Fernando Pessoa (2015), Ricardo Vasconcelos e Jerónimo Pizarro já tinham tentado desmistificar a imagem de um Sá-Carneiro “melancólico ou até desesperado, flâneur isolado pelos cafés”, uma afirmação que Vasconcelos fez questão de repetir nos primeiros parágrafos desta nova edição.

Como disse ao Observador em 2016, por altura dos 100 anos da morte do poeta, “é evidente que não nos passa pela cabeça dizer que ele não um autor que tematizou a loucura, o suicídio, a alienação e a morte”. “Isso está sempre presente.” Contudo, não é isso o que verdadeiramente importa: “A questão central é que não lemos Sá-Carneiro pelo seu caráter suicida. Lemo-lo porque tem uma capacidade imagética e uma linguagem metafórica incrível; porque é capaz de sublimar os instintos mais depressivos através de uma linguagem que acaba por provocar a catarse dos nossos próprios sentimentos”.

O poema “A Aula de Physica da 3.ª e 4.ª Turma do 4.º Anno” foi publicado na página 2 d’O Chinó — Jornal académico com pretensões a humorístico

Estas características — “uma jovialidade da linguagem e um sentido experimental que tem uma dimensão da linguagem” e até um certo “sentido de humor” —, mais evidentes na poesia mais tardia, surgiram em Sá-Carneiro quando este era ainda adolescente, podendo ser detetadas logo nos primeiros poemas. Um bom exemplo disso é “Um medico optimo” (1902), publicado pela primeira vez nesta edição. Este conta a história de um médico que só aparece quando o doente já está recuperado e lhe diz: “Eu estive doente mas já não estou”.

“D. António caindo doente de cama
Um médico mandou chamar
Que tinha grande fama.
Veio d’aí a 8 dias
O médio que D. António chamar mandou.
Quando ele veio, D. António limitou-se-lhe a dizer:
Eu estive doente mas já não estou.”

— De “Um medico optimo”

Apesar de este lado mais satírico ir desaparecendo ao longo dos anos, dando lugar “à vertente lírica”, o “tom bem humorado é uma coisa que permanece sempre”, assim como a capacidade de “ser auto-irónico e de fazer caricaturas a si próprio que se tornam mais grotescas e cruéis com o passar do tempo”, como no caso do poema “Aquele outro” (1916), escrito no ano da morte de Sá-Carneiro. “Foi o último poema passado a limpo para ser enviado a Pessoa e é um contraste tremendo entre a projeção de um ideal”, salientou Vasconcelos. “Cada verso enuncia contrastes entre um ser idealizado, um escritor idealizado. Ele diz que fica a berrar ‘ao Ideal’, e é aquilo que acontece de facto.”

O poema mostra claramente a forma como Sá-Carneiro, através da poesia, sublimava “as limitações que tinham aparecido na vida”. “Podemos dizer que é psicologia da poesia que está escrita. É uma forma de sublimar, com as palavras, muitos desses desejos frustrados, desses ideais frustrados de perfeição, de beleza, de carácter único. Acho que é isso que muitos poetas fazem”, afirmou o professor de literatura portuguesa e brasileira.

"Podemos dizer que é psicologia da poesia que está escrita. É uma forma de sublimar, com as palavras, muitos desses desejos frustrados, desses ideais frustrados de perfeição, de beleza."
Ricardo Vasconcelos

O sentido de humor de Mário de Sá-Carneiro pode ser uma surpresa para muitos, mas para Ricardo Vasconcelos, que o estuda há vários anos, há coisas que o surpreendem ainda mais. “O trabalho de edição permite-nos conhecer os textos a fundo [e até] modificar a análise da obra”, explicou. Uma das coisas com que se deparou recentemente tem a ver com a presença da Primeira Guerra Mundial na obra de Mário de Sá-Carneiro. Esta “tem sido vista como lateral, porque Sá-Carneiro não desenvolve uma linguagem panfletária, típica dos poetas portugueses que trataram a Primeira Guerra Mundial e entrada de Portugal no conflito. Ele estava à parte de tudo isso”.

Apesar disso, a guerra não lhe passou inteiramente ao lado, chegando mesmo a comentar a “mudança no ar” que se fazia sentir em Paris, nomeadamente com Pessoa antes do seu regresso a Portugal. Motivado pela Primeira Guerra Mundial, esse regresso acabou por “dar um empurrão” ao nascimento de Orpheu e à sua “vertente de blague, de provocação, que tinha visto em Paris”. Mas não só. Depois de voltar definitivamente à capital francesa, em julho de 1915, deixou-se influenciar mais profundamente pelo conflito graças ao contacto com o amigo Carlos Franco, que estava a lutar na frente e que se encontrava em Paris de licença.

Esta edição reproduz as provas tipográficas de “Quasi”, um dos poemas de Dispersão. À margem, podem ler-se algumas notas escritas pelo próprio Mário de Sá-Carneiro sobre acentos

“Sente-se uma maior sensibilização para o que está a acontecer e há um poema, ‘O Fantasma’ [1916], que é todo escrito utilizando a linguagem da guerra. É uma coisa da qual nunca se falou muito porque ele não tinha a tal dimensão panfletária mas, através das suas metáforas, acaba por mostrar o que era a guerra. Aplica a sua habitual noção de perda a uma linguagem que tem a ver com os corpos caídos, os feridos, os meninos mortos. Isso foi uma coisa da qual só me dei conta recentemente, vendo muito de perto o próprio texto”, confessou Vasconcelos.

Outra descoberta foi a do título Colete de Forças, que pretendia ser usado em Indícios de Oiro. “Nunca chegamos a perceber o que era porque a correspondência não é clara. Diz que um certo poema seria ‘para os Indícios de Oiro’, ‘para o Colete de Forças’. Podia ser uma secção do livro.” Apesar de não saber ao certo o que era o tal Colete de Forças, Ricardo Vasconcelos acredita que o título seria “muito apropriado para muitos poemas de 1915 e 1916”, como “Caranguejola” ou “Serradura”, nos quais Sá-Carneiro “faz muito essa sátira pessoal”, referindo-se a ele próprio como um “maluquinho”, uma forma de aludir à “exclusão do indivíduo da sociedade”.

Um novo destino para as cartas de Fernando Pessoa a Mário de Sá-Carneiro?

Diz a história que, quando Mário de Sá-Carneiro morreu, a 26 de abril de 1916, todos os seus papéis foram guardados no interior de uma mala que estava no seu quarto no Grand Hôtel de Nice, em Paris. Por causa das dívidas que deixou, a mala e outros pertences ficaram à guarda do hotel até que a conta fosse paga, o que só viria a acontecer muito mais tarde. Cientes da importância de alguns dos manuscritos que tinham ficado no quarto de hotel, os amigos de Sá-Carneiro tentaram de tudo para que o Nice libertasse os papéis, entre os quais estaria a novela Mundo Interior, nunca acabada. O próprio Fernando Pessoa chegou a escrever ao gerente do Hôtel de Nice, solicitando a entrega dos papéis, mas sem qualquer sucesso.

“Para seu governo, posso dizer-lhe que o manuscrito que mais me interessa é composto de algumas linhas (oito ou dez, no máximo) com o título português Mundo Interior.”

— Carta de Fernando Pessoa ao gerente do Hôtel de Nice (26 de setembro de 1918)

Quando o pai de Sá-Carneiro, que na altura da morte do filho vivia em Moçambique, viajou até Paris em 1918 e visitou o quarto do Hôtel de Nice, já não terá encontrado os manuscritos que ali tinham sido deixados quase dois anos antes. De acordo com o seu próprio relato, na mala apenas havia roupa velha. Todos os documentos, incluindo as cartas de Fernando Pessoa, tinham desaparecido.

Até hoje, ninguém foi capaz de explicar o que lhes aconteceu (e é bem provável que isso nunca venha a acontecer). Contudo, a “descoberta” de novas cartas por Ricardo Vasconcelos faz levantar um novo leque de possibilidades. Estas missivas, que fazem parte de uma coleção privada, ocupam as últimas páginas de Poesia Completa de Mário de Sá-Carneiro e revelam novos pormenores sobre o que terá acontecido depois da morte do autor de Indícios de Oiro. Como refere Vasconcelos no volume:

“As novas cartas que aqui se publicam continuam o diálogo, parecendo seguir imediatamente as cartas anteriores, apresentam mais detalhes sobre os trâmites subsequentes à morte (com ecos que se perpetuam meses depois) e, por outro lado, reiteram a visão negativa da mulher com quem Sá-Carneiro manteve uma relação íntima nos últimos meses de vida.”

Segundo o relato de amigos de Sá-Carneiro em Paris, nomeadamente de José Araújo, o poeta ter-se-ia envolvido com uma mulher de má fama, que terá contribuído para a sua ruína pessoal e, consequentemente, para o seu suicídio. “Ontem mesmo encontrei no café Cyranno A grande sombra, a mulher maldita que gritava aos ventos ‘o meu amigo suicidou-se por minha causa’ e a quem o Mário passou um documento de dívida de 175 francos”, escreve Carlos Ferreira a Pessoa, numa carta datada de 20 de maio de 1916. Mário de Sá-Carneiro suicidou-se a 26 de abril desse ano.

“Se tu pudesses ler a carta de despedida que ele lhe escreveu e que ela me mostrou sem dificuldade e lê a toda a canalha. Que carta, que carta! Mas eu, fazendo do coração uma pedra, hei-de obter pelo menos a cópia embora me seja preciso representar. Nessa carta está a chave de tudo”, afirma ainda Ferreira. Se chegou a obter uma cópia da tal carta, nunca saberemos. Essa será, talvez, uma das muitas interrogações que ficarão para sempre no ar. Mas, graças ao mesmo Carlos Ferreira, foi possível descobrir novos pormenores em relação aos manuscritos de Mário de Sá-Carneiro.

Numa outra carta, datada de 2 de maio de 1916, Ferreira conta a Pessoa que procedeu “à embalagem dos haveres do Mário em companhia do José Araújo”, acrescentando: “Consegui uma coisa para nós, importantíssima, sem que ninguém desse por ela: guardar os melhores inéditos quase todos. Desprezei apenas as notas ligeiras. Ninguém viu”. A missiva inclui uma lista de alguns dos poemas que teria em sua posse, questionando Fernando Pessoa se conhecia “tudo isto”. Não sabemos que resposta terá dado ao poeta, mas uma coisa é certa: alguns dos títulos são totalmente desconhecidos, como é o caso de “Presunção” ou “Festa Galante”.

“Consegui uma coisa para nós, importantíssima, sem que ninguém desse por ela: guardar os melhores inéditos quase todos. Desprezei apenas as notas ligeiras."
Carta de Carlos Ferreira a Fernando Pessoa

Na já referida carta de 20 de maio de 1916, Carlos Ferreira revela ainda a Fernando Pessoa ter encontrado “os seus postais” — isto é, as cartas que escreveu ao amigo e que enviou para Paris. Além disso, refere ter encontrado “entre a papelada uma carta” ou duas para Fernando Pessoa, que Sá-Carneiro “não deitou ao correio não sei porquê, datadas de fevereiro”. “Lia-as. Sabes o que contam? A história (começo) dos amores que o mataram. É fantástico! Não há uma linha que não seja verdadeira. Essas cartas, creio que as deves amar e estão às tuas ordens. Pertencem-te e são ótimas para publicar.”

Esta versão contraria a de que, na altura da morte de Sá-Carneiro, todos os seus manuscritos teriam sido guardados no interior de uma mala, que teria ficado no Hôtel de Nice. E mais: significa que havia documentos que não estavam junto daqueles que desapareceram e que, entre eles, poderiam estar poemas que hoje se desconhecem. Além disso, Carlos Ferreira refere a Fernando Pessoa duas cartas cuja existência não era conhecida e que relatam a história de Sá-Carneiro com a mulher que lhe desgraçou a vida.

A secção de fac-símiles inclui a carta de Carlos Ferreira de 2 de maio de 1916 (à direita), pertencente a uma coleção privada

Como referiu Ricardo Vasconcelos, “a correspondência é tão importante por aquilo que nos diz sobre o que aconteceu”. “De repente, percebemos que há um gesto diferente do que sabia o grande público — nem todos os textos entraram na mala. Houve testemunhos dos poemas que não entraram e, portanto, existe muita coisa em aberto”, afirmou. “São os testemunhos que já se conheciam? Talvez até não. Os herdeiros de Pessoa tinham dois núcleos de poemas [de Sá-Carneiro] de 1916 — cópias passadas a limpo e outros que eram quase rascunhos. Ambos estão dispersos e os rascunhos estão numa coleção privada. Pergunto-me se seriam esses os testemunhos se foram encontrados.”

A carta de 20 de maio é a última que se conhece de Carlos Ferreira, não se sabendo, por isso, se sempre terá alguma vez partilhado com Fernando Pessoa os textos que disse ter guardado para si. Vasconcelos acredita, contudo, que seria “difícil que Pessoa não tivesse recebido [os papéis] e não os tivesse divulgado”. A verdade é que, em 1934, Pessoa escreveu a João Gaspar Simões admitindo não ter perdido “de todo a esperança de que algures, na posse não sei de quem, possa existir o original do primeiro capítulo do Mundo Interior, maravilhoso trecho de prosa que Sá-Carneiro leu aqui em Lisboa e de que sei que não houve continuação”.

Ou seja: 18 anos depois da morte de Sá-Carneiro, o autor de Mensagem continuavam a não saber o paradeiro dos textos do amigo.

“O trabalho de edição permite-nos conhecer os textos a fundo [e até] modificar a análise da obra.”
Ricardo Vasconcelos

Outra questão que as cartas de Carlos Ferreira ajudam a clarificar é a do título do poema que ficou conhecido por “Fim”, cujo título há muito se acredita que terá sido dado pelo próprio Fernando Pessoa que, na prática, foi o primeiro editor de Mário de Sá-Carneiro. “Já tínhamos essa clara noção porque Pessoa nunca se referiu ao poema por esse título, na correspondência com Gaspar Simões e também com Carlos Ferreira.” Na carta de 2 de maio, já citada, Ferreira diz que, entre os papéis que guardou, há “duas quadras deliciosas sobre o que ele queria quando morresse”. Tudo leva a crer que seria o mesmo poema e que “não teria título”.

“Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos berros e aos pinotes —
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.”

— De um poema datado de fevereiro de 1916 (sem título)

Isto significa que a descoberta de novos manuscritos pode ter “influência na própria edição”, como explicou Vasconcelos. “Não só na fixação do texto, mas em questões como o título. Não lhe dei o título ‘Fim’ porque Sá-Carneiro nunca lho deu.” E Ricardo Vasconcelos quis ser fiel à vontade do autor.

Mas, questões editoriais à parte, há uma coisa que é inegável: a descoberta destas cartas e, eventualmente, de outras no futuro, faz nascer a esperança de que os manuscritos de Sá-Carneiro não se tenham perdido e que, um dia, sabe-se lá onde, venham a aparecer.

“À medida que se vão descobrindo assim pequenas coisas, é difícil não pensar que esses textos que estavam na mala ainda podem existir em algum lugar. As pessoas que circulavam à volta de Sá-Carneiro tinham noção da importância dos textos. Poucos dias depois da morte, já estavam a planear uma edição. Eram pessoas que sabiam bem o valor daquilo tudo”, frisou Ricardo Vasconcelos. “Será que esses textos ainda existem? Talvez.”

* Apesar de a edição de Ricardo Vasconcelos reproduzir a escrita de Mário de Sá-Carneiro, aqui optámos por usar na transcrição de poemas e excertos a ortografia atual mantendo, porém, o nome dos poemas na grafia original.

A edição de Poesia Completa de Mário de Sá-Carneiro, em capa dura, custa 30 euros. A apresentação acontecerá na Feira do Livro de Lisboa, em data a divulgar. A Feria do Livro de Lisboa regressa ao Parque Eduardo VII nos dias 1 a 18 de junho.

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