Um consórcio de cientistas portugueses está a preparar a resposta à próxima pandemia e vai conceber uma plataforma que espera produzir em poucos meses um medicamento à base de proteínas que neutraliza um novo vírus ameaçador para a saúde pública. “BioPlaTTAR” utiliza um modelo computacional que, com base na estrutura do vírus, prevê as características que uma nova molécula deve ter para o impedir de infetar as células. Essas moléculas são depois fabricadas, testadas e utilizadas como princípio ativo de um novo medicamento. A expectativa é a de que possa ser possível lançar propostas de fármacos seis meses a um ano depois de um novo vírus ser identificado.
O projeto está a ser desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB), o Instituto de Medicina Molecular (IMM) e o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC) em colaboração com investigadores do Conselho Superior de Investigações Científicas, a maior instituição pública de investigação científica em Espanha e a terceira maior em toda a Europa. É um investimento de quase um milhão de euros concedido pela Fundação La Caixa e pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).
O desenvolvimento da plataforma arranca oficialmente em novembro e vai demorar até três anos, mas os cientistas já estão a produzir novas moléculas para desenvolver medicamentos que neutralizem o SARS-CoV-2, vírus responsável pela Covid-19. É um dos dois casos de estudo que vão ser utilizados para testar a eficácia do sistema — o outro será o vírus da gripe, influenza. E já há resultados preliminares, avança ao Observador a bioinformática Diana Lousa, do ITQB: “Já conseguimos ter algumas moléculas que funcionam, que se ligam com afinidade à proteína que o vírus usa como chave para entrar nas células, mas ainda não têm tanta afinidade quanto desejávamos”.
Na maioria dos casos, essas proteínas serão anticorpos desenhados especificamente para um qualquer novo vírus ou nova variante. “Mas em vez de estarmos à espera que o nosso sistema imunitário produza anticorpos adaptados ao vírus, o que demora e implica necessariamente que muitas pessoas tenham de ser infetadas antes, neste caso antecipamo-nos”, resume a investigadora, cuja equipa é responsável por produzir as moléculas.
A “BioPlaTTAR” funciona como a linha de montagem de uma fábrica cujas rodas dentadas só precisam de uma alavanca para começarem a girar: é preciso conhecer-se a estrutura do vírus que se pretende aniquilar. O alvo será sempre a proteína que permite a alguns vírus entrarem nas células — no caso do SARS-CoV-2, a proteína S, que se ligava ao recetor ACE2 das células humanas para depositar o material genético e desencadear a infeção. Depois disso, um modelo computacional vai prever que estrutura devem as moléculas ter para se conectarem ao alvo e neutralizarem o vírus.
Esses programas informáticos conseguem prever, com base em modelos físicos, como é a interação entre duas proteínas e quão forte é a ligação entre elas. “Pegamos numa proteína como base e vamos modificá-la passo a passo até obtermos as propriedades que desejamos”, explica Diana Lousa, co-líder da investigação, orientada por Cláudio Soares. E as propriedades são essencialmente três, acrescentou Maria João Amorim, a investigadora que coordena as tarefas do IGC, ao Observador: uma grande afinidade entre a nova proteína e a estrutura do vírus a que ela se vai ligar, a facilidade em produzi-la em laboratório e a estabilidade química, para que a validade do medicamento se mantenha por longos períodos de tempo.
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A receita para essas moléculas, que serão o princípio ativo daquilo a que os cientistas chamam “biofármacos” ou “medicamentos biológicos”, tem dois ingredientes essenciais: aminoácidos, que são os tijolos que formam as proteínas; e bactérias. É que, tal como descreveu ao Observador o bioquímico Miguel Castanho, do IMM, os cientistas vão alterar o código genético de uma bactéria para que ela produza as proteínas que se desejam — até mesmo as mais complexas, como estes anticorpos. Esta forma de produção de medicamentos já é utilizada na terapêutica de outras patologias, como o cancro da mama.
Embora não tenham estipulado quanto tempo deve demorar o desenvolvimento das novas moléculas, desde o design inicial em computador até à produção em laboratório, no fim de 2025 os investigadores querem que seja possível seguir para ensaios clínicos idealmente num prazo de seis meses a um ano desde o surgimento do novo vírus. “É o que se pode considerar razoável”, admitiu Diana Lousa: “O grande objetivo é termos uma forma rápida de produzir fármacos contra vírus, uma técnica que nos permita estarmos preparados para uma nova pandemia que possa surgir”.
Os ensaios clínicos praticam-se primeiro em células in vitro, depois em ratinhos “humanizados” — isto é, geneticamente modificados, para que exibam nas suas células os recetores que o vírus utiliza como porta de entrada para o organismo humano. Só caso se revelem seguros e eficazes é que os medicamentos seguem para os testes em humanos. E, no fim, “caso se repita aquilo que vivemos com a Covid-19 e apareça um vírus para o qual não temos medicamentos, ou se uma nova variante do SARS-CoV-2 escapar ao efeito das vacinas, estaremos prontos”.
Toda esta linha de produção mimetiza os esforços que foram aplicados pelos cientistas no desenvolvimento de medicamentos, e particularmente de vacinas, contra a Covid-19. Mas é mais abrangente porque permite que os mesmos moldes de produção permitam conceber esses fármacos numa rapidez que não se tinha observado antes da última pandemia.
E ainda pode ser útil para batalhar contra a Covid-19 e as epidemias de gripe: “Há vacinas para as duas doenças, mas a situação não está completamente resolvida em ambos os casos porque há sempre a possibilidade de aparecerem novas variantes de preocupação”, recordou Diana Lousa. Ainda assim, servem de pilares para a nova plataforma porque “já há uma quantidade suficiente de informação para servirem como base para a testar”: “O consórcio já tem muita experiência com estes vírus”.
A criação desta plataforma responde aos apelos da Comissão Europeia, cuja Autoridade de Preparação e Resposta a Emergências Sanitárias avisou em julho que uma das três maiores ameaças à saúde pública dos cidadãos no bloco europeu era precisamente “o surgimento de novas doenças infecciosas” causadas por “patogénicos com alto potencial pandémico”. “A pandemia de Covid-19 não será a última emergência de saúde pública no mundo”, insistiu a agência europeia, por isso “a Europa precisa de estar mais bem preparada para antecipar e responder a este risco”.
A Comissão Europeia considerou num relatório que uma nova “crise de saúde pública de grande escala é praticamente inevitável” e prova disso é que “na última década, o mundo viveu alguns dos surtos mais devastadores de doenças infecciosas, incluindo a epidemia de Influenza, Ébola e Zika” — tudo produto de fatores como as alterações climáticas, as movimentações turísticas e a produção alimentar.
Essas doenças podem ser provocadas por outros agentes patogénicos que não os vírus. De acordo com os três cientistas envolvidos no projeto com quem o Observador conversou, a plataforma pode, em teoria, ser adaptada para criar soluções não apenas contra vírus — que é aquilo para que está a ser criada neste momento —, mas também para outros invasores, como bactérias. Mas, pelo menos por enquanto, isso não está nos planos dos cientistas.