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Larry David: o americano (pouco) tranquilo

Chegámos à 12.ª e última temporada de "Curb Your Enthusiasm" (HBO Max), série que explora as regras sociais e o constrangimento como poucas, humor criado pelo homem do desconforto precioso.

Há um verso de uma canção de Sérgio Godinho que os fãs do cantautor gostam particularmente de citar: “Pode alguém ser quem não é?”. Não sei se este exercício semiótico alguma vez foi feito, mas implícita ao verso está a noção de que a todos cabe um destino determinado, que é impossível evitarmos sermos quem somos; o que significa que o ser é algo imutável: nós somos uma coisa e, aconteça o que acontecer, vamos acabar por sê-lo.

Esta visão da identidade talvez seja polémica à luz da ciência atual – mas como não sou cientista, tenho apenas uma observação a fazer: quando o ator Jason Alexander concorreu ao papel de George Costanza para o episódio-piloto da série Seinfled, notando que o guião tinha um travo de humor judaico nova-iorquino, fez a sua melhor imitação de Woody Allen. No instante em que Larry David, co-criador e co-argumentista da série (com Jerry Seinfeld), viu a cassete de Alexander decidiu nesse exato momento que o ator seria Costanza.

Mas quando o ator conheceu Larry David, percebeu que George Costanza não era baseado em Woody Allen mas no próprio Larry David – e passou a imitá-lo. Então aqui temos uma série (Seinfeld) cujo ator principal (Jerry Seinfeld) não era ator (era comediante) e fazia de conta que era um comediante chamado “Jerry Seinfeld”, enquanto Jason Alexander fazia de conta que era “George Costanza”, que no fundo era um veículo para as neuroses de Larry David: George era a personagem que podia verbalizar o que Larry David não podia verbalizar no seu dia a dia. Um ator a fazer de conta que é uma personagem a fazer de conta que é Larry David, escrita por Larry David e por uma data de argumentistas a tentarem imaginar o que é ser Larry David. Pode alguém ser quem não é? Pode – pelo menos na TV.

[o trailer da 12.ª e última temporada de “Curb Your Enthusiasm”:]

E pode sê-lo de forma tão persuasiva que toda a gente passa a achar que é aquilo que está a imitar – na segunda temporada de Curb Your Enthusiasm, a série criada por Larry David que segue um comediante chamado “Larry David” que ficou rico após criar uma série chamada Seinfeld, Larry David (personagem que é desempenhada por Larry David) tenta convencer Jason Alexander a fazer uma série sobre alguém (Jason Alexander) que ficou conotado com um papel (o de George Costanza) que não podia estar mais longe da sua maneira de ser. A dada altura, Jason Alexander diz que Costanza era um idiota, um perdedor, um neurótico, enumera uma série de atitudes horríveis de Costanza e Larry David fica ofendido.

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Toda esta insanidade chegará ao fim em breve: já está disponível na HBO Max o primeiro episódio da 12.ª e última temporada de Curb Your Enthusiasm – caso não tenha ficado absolutamente claro, a série (que em português tem o título (Calma, Larry!) foi criada por Larry David, que criou Seinfeld com Jerry Seinfeld. Ao contrário de Seinfeld, a série não tem risos e o guião é mais solto: enquanto Larry e Jerry tinham um batalhão de escritores e no fim reescreviam cada episódio de modo a que todos tivessem um tom uniforme, os scripts de Curb não ocupavam mais de uma página enumerando uma série de eventos que deviam ocorrer, com os atores a serem convidados a improvisar.

A sociedade americana tem certas particularidades – tudo tem que ser etiquetado e para tudo existe uma convenção; no meio em que Larry David se move (os ricos e famosos de Los Angeles) essa necessidade de corresponder a uma imagem que a sociedade espera é levada ao seu expoente máximo.

Há personagens recorrentes: Cheryl David (a esposa de Larry David na série); Richard Lewis (melhor amigo de David na vida real, que faz de si próprio); Jeff Greene (o agente de Larry David); Susie, a mulher de Greene, com quem David está constantemente a discutir; toda a malta de Seinfeld; e o espantoso Leon Black, que se muda para casa de Larry David quando um furacão destrói a sua própria casa (e nunca mais sai). E, claro, Ted Danson, o ator principal de Cheers, no que é uma not so private joke: quando Seinfeld começou, estava no slot horário a seguir a Cheers; à medida que o tempo foi passando, Seinfeld tornou-se mais popular, mas consta que Larry David terá pedido, para escrever o episódio-piloto de Seinfeld, o mesmo que a super-estrela Danson ganhava por episódio de Cheers (e se por acaso isto não for verdade, pouco importa, visto que David e Seinfeld escreveram um episódio de Seinfeld em que Jerry e Costanza são contratados para escrever uma série chamada Seinfeld e Costanza exige o mesmo que Danson).

O facto de Curb ser exibido na HBO e não em sinal aberto, de não haver um guião com diálogos, de não haver risos enfiados a martelo para nos lembrar de quando devemos rir, só ampliou o “efeito Costanza”: muitas vezes, ao assistir a Seinfeld, demos por nós com vergonha alheia do que Costanza fazia ou dizia. Sem os constrangimentos do politicamente correto, Curb tornou-se o avatar da comédia do constrangimento, indo ainda mais longe nesse aspeto do que séries como The Office: no primeiro episódio, Larry senta-se ao lado de uma amiga da esposa; está vestido com uma daquelas calças de bombazine que fazem um papo na zona da genitália; a amiga da esposa acha que ele está a exibir uma ereção; o caos segue-se.

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Jerry Seinfeld, Jason Alexander e Larry David, na rodagem dos últimos episódios de "Seinfeld"

Getty Images

O faux pas social, a confrontação pelo mais pequeno dos motivos, o questionar das convenções sociais, estes são os principais motes de Curb Your Enthusiasm, uma série que nunca hesita em pôr o prego a fundo cada vez que há uma situação de potencial embaraço. Num dos momentos mais geniais da série, Larry David acusa um homem de cabelo rapado de ser um nazi (para depois Leon lhe explicar que é um sobrevivente ao cancro); noutro, Larry flirta com uma mulher, combinam um date, e quando ela sai detrás da mesa em que está sentada, ele vê que ela é paralítica; mais tarde, Susie atira o telemóvel de David ao mar (depois de ele, ao ver a filha de Susie afogar-se, ter voltado à toalha para pousar o telefone, antes de a ir ajudar), fazendo com que ele perdesse o telefone da moça; Larry vai à rua dela ver se a encontra, quando se depara com outra rapariga em cadeira de rodas – que obviamente não conhece o date de Larry, mas aceita sair com ela. Quando Larry chega com a segunda rapariga paralítica à festa onde era para ir com a primeira rapariga paralítica – bom, a primeira rapariga paralítica está lá e segue-se o caos extremo.

Mas talvez o melhor exemplo dos extremos a que Curb Your Enthusiasm chega na sua demanda de explorar as zonas cinzentas do comportamento humano (como se procurasse em cada cena responder à pergunta “Como nos devemos comportar numa situação em que [inserir uma daquelas coisas que nos acontecem e nunca ponderámos sobre como devíamos atuar]?”), talvez o melhor exemplo, dizia, esteja no episódio 10 da 3.ª temporada, quando na abertura do seu restaurante, Larry – e todos os convidados – descobrem que o chef recém-contratado sofre de Tourette e a opção de Larry é ser solidário com o seu chef da forma mais inesperada possível: adotando a linguagem do chef, o que leva o final do episódio a descambar naquela que é provavelmente a maior descarga de palavrões alguma vez filmada.

O "faux pas social", a confrontação pelo mais pequeno dos motivos, o questionar das convenções sociais, estes são os principais motes de "Curb Your Enthusiasm"

Há pelo menos duas formas de olhar para Curb: considerar que “Larry David”, a personagem principal da série, não tem super-ego, não tem filtros e é um idiota que diz tudo o que lhe passa pela cabeça; ou que Curb é um estudo do comportamento humano quando alguém põe em causa o racional por trás de comportamentos adquiridos e tidos por certos, e que usa a personagem “Larry David” como veículo para questionar hierarquias sociais, questões de pele (Larry a perguntar a Leon se chamar-lhe “brotha” é OK), de xenofobia (como no episódio em que um judeu acusa Larry – que é judeu tanto na vida como na série – de ser anti-semita porque assobiou Wagner), de relações entre homens e mulheres (como no episódio em que uma empregada jovem acha que está a ser assediada por Larry, quando ele está apenas a tentar chegar à bandeja que ela transporta, acabando – por azar – a tocar-lhe num seio quando ela desvia a bandeja), etc.

A sociedade americana tem certas particularidades – tudo tem que ser etiquetado e para tudo existe uma convenção; no meio em que Larry David se move (os ricos e famosos de Los Angeles) essa necessidade de corresponder a uma imagem que a sociedade espera é levada ao seu expoente máximo; coloquem no meio destas pessoas de egos frágeis e enorme necessidade de aceitação uma carta fora do baralho como “Larry David” e a sucessão de eventos imprevistos no guião da comunicação humana devém uma catadupa de momentos tão hilariantes quanto constrangedores – quer dizer, quem mais, sendo judeu, criaria um episódio (Palestinian Chicken) em que se envolve com uma mulher anti-semita que gosta de lhe chamar “filthy fucking Jew” na cama, o que leva Larry a gritar (na cama) “I’m an occupier!”?

A 12.ª época de Curb terá 10 episódios – o que significa que, dentro de 9 semanas (dois meses e uma semana), não teremos mais Larry David, não teremos mais restaurantes inteiros a gritar caralhadas, não teremos mais brotha Leon, não teremos mais galinhas palestinianas. Mas o que Larry David fez em Curb – o maior exercício de liberdade artística e de questionamento da sociedade que alguma vez se viu na comédia – nunca será esquecido.

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