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"Levo estes para mendigar". A história das crianças forçadas pelos pais a pedir na rua durante seis anos

Os três irmãos e uma outra criança pediram na rua e roubaram em lojas durante seis anos, de norte a sul do país. Conseguiram mais de 170 mil euros. Os pais foram condenados a 9 anos de prisão.

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Faziam peditórios em nome da inexistente “associação regional para os incapacitados surdos e mudos e para as crianças pobres”. Abordavam as pessoas, por gestos, fingindo que não falavam nem ouviam. Mostravam folhas onde podia ler-se: “Queremos construir um centro internacional e nacional“. Andavam sozinhos ou, por vezes, aos pares — sempre controlados à distância. Apelavam, por vezes insistentemente, à solidariedade e à caridade das pessoas. Estas, convencidas de que os estavam a ajudar, contribuíam, na prática, para que as crianças continuassem a ser vítimas de exploração.

A técnica já estava apurada. De acordo com a investigação levada a cabo por 20 inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), os menores pediam dinheiro na rua há já, pelo menos, seis anos quando o caso foi descoberto — o que significa que terão começado a ser explorados quando tinham apenas entre 8 e 11 anos. Eram quatro: três irmãos e uma outra criança, vítima de tráfico humano. A família tinha ainda um outro filho, na altura com 5 anos. O Ministério Público sustentava que também ele tinha sido usado para pedir na rua, mas o tribunal não deu esse facto como provado.

A explorá-los estavam os próprios pais e uma terceira pessoa, namorado de uma das filhas menores. Os pais foram condenados a nove anos de prisão efetiva pelo Tribunal de São João Novo, no Porto. O outro elemento do grupo foi também condenado, mas a uma pena de cinco anos e nove meses. “Quando a pessoa quer pedir, pede. Não engana. E, sobretudo, não explora menores”, referiu o juiz Pedro Brito durante a leitura da sentença, no passado dia 1 de março.

O tribunal de São João Novo no Porto

Os três arguidos foram julgados e condenados no Tribunal de São João Novo, no Porto (Foto: ESTELA SILVA/LUSA)

ESTELA SILVA/LUSA

De norte a sul do país. Menores renderam 170 mil euros aos pais e chegaram a pedir ajuda à polícia

Foi em 2011 que os filhos começaram a ser explorados pelos pais, um casal em união de facto — não se sabe ao certo desde quando, “mas, seguramente”, desde esse ano, segundo o acórdão do Tribunal do Porto que os condenou. Eram de nacionalidade romena, a viver em Portugal e a deambular por outros países europeus. Além de mendigarem, as crianças eram obrigadas a roubar vários objetos — essencialmente computadores, telemóveis ou produtos de supermercados. Os juízes concluíram que o casal instrumentalizou e aproveitou-se dos filhos, “com intenção de beneficiar dos respetivos proventos, como efetivamente beneficiou”, lê-se no mesmo documento.

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Em 2015, juntou-se ao grupo o namorado de uma das filhas do casal, a mais velha dos quatro, então com 15 anos. Era um relacionamento bem aceite pela família e do qual resultou o nascimento de uma filha, logo no ano seguinte. O jovem, na altura com 19 anos, passou a viver com a família e uniu-se aos sogros, explorando a própria namorada menor e os seus irmãos.

Além de mendigarem, as crianças eram obrigadas a roubar vários objetos — essencialmente computadores, telemóveis ou produtos de supermercados. Os juízes concluíram que o casal instrumentalizou e aproveitou-se dos filhos
Acórdão do Tribunal do Porto

Eram os pais e o genro, agora condenados, que controlavam as crianças e davam instruções concretas sobre o que deviam fazer: a zona do país em que atuavam, quais os lugares que deviam ocupar e a que horas. Estabeleciam isso entre eles: “Levo estes para mendigar”, diziam uns aos outros, de acordo com a investigação.

Ensinavam as crianças, até, a despistar a polícia. Por várias vezes, os menores ligaram para os pais desesperados porque a polícia andava “atrás deles”. Numa delas, de acordo com a investigação comprovada em tribunal, um dos membros do grupo explorador instruiu-os a “rasgar as folhas do peditório e fugir de autocarro”. Noutra, questionou: “Deste o teu nome verdadeiro ou outro?”. E ordenou: “Apaga todas as conversas comigo”.

Eram também os pais e o genro os responsáveis por transportar dos menores até às cidades combinadas e quem os colocava em locais estratégicos para efetuarem os falsos peditórios — de norte a sul do país. Apenas se conhecem os locais onde houve algum tipo de intervenção policial: foram apanhados 44 vezes pelas autoridades. Haverá, porém, muitos outros sítios dos quais não há registos.

Em várias ocasiões, foram as próprias crianças a abordar os autoridades por estarem com fome ou com frio, segundo revelou ao Observador fonte ligada ao processo. De todas as vezes em que os menores foram levados para as esquadras, os elementos exploradores apresentavam-se lá como “responsáveis e conseguiam levá-los consigo, sem maiores consequências“, explica a mesma fonte. Por vezes, diziam que eram pais, por vezes diziam que era tios — o que era difícil de confirmar, uma vez que as crianças estavam instruídas para fornecer identidades falsas e diziam ser maiores de idade.

Durante seis anos, os adultos da família conseguiram explorar os menores e “arrecadaram mais de 170 mil euros”, lê-se no acórdão. Não só através dos peditórios, mas também através dos objetos furtados. Em Portugal, a mãe recebeu “ilicitamente” quase 16 mil euros de fundo de desemprego e outras prestações sociais, durante quatro anos, entre 2012 e 2015, segundo o acórdão. Os próprios pais admitiram no tribunal que eram ainda “titulares de subsídio da Segurança Social alemã”.

Em 2016, os arguidos juntaram ao grupo uma menor

Os três, que já lucravam milhares através da exploração dos filhos do casal, decidiram, em 2016, “alargar a sua rede de menores explorados”, traficando uma menor como a qual não tinham qualquer grau de parentesco. A adolescente tinha, na altura, 14 anos e era também de nacionalidade romena. Não se conhecem ao certo os contornos deste “negócio”, como lhe chamou o MP. O tribunal não considerou como provado que a criança tenha sido “cedida pela mãe”, como alegavam os arguidos — pelo contrário, confirmou as acusações e condenou o grupo por um crime de tráfico humano.

Estiveram envolvidos na investigação 20 inspetores do SEF (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Os juízes deram como provado que a jovem foi trazida da Alemanha, de avião, para Portugal — embora vivesse em Valência, Espanha — no dia 23 de janeiro de 2016. Foram os pais dos restantes menores que pagaram todas as despesas da viagem. Já cá, ficou alojada na residência dos arguidos e submetida ao mesmo tipo de exploração dos quatro irmãos. Viviam todos na mesma casa.

Além do grupo explorador, apareciam e dormiam na mesma residência outros cidadãos de nacionalidade romena — alguns familiares, outros não. Apareciam ali para ajudar os arguidos a controlar os menores ou para auxiliá-los a escapar à polícia. Algumas destas pessoas diziam que viviam na casa dos arguidos “nos órgãos de polícia criminal a que se dirigiram para buscar os menores, assumindo-se como familiares dos próprios“, refere o acórdão.

“Vão mendigar, não fiquem aí parados”. O controlo era feito à distância e por telefone

A idade, a falta de autonomia, a dependência económica e o simples facto de aqueles serem os seus pais eram aspetos que jogavam contra as vítimas — e a favor dos arguidos. Assim, o tribunal considerou que “os menores não tinham autonomia, capacidade e maturidade que lhes permitisse oporem-se às ordens, tarefas e instruções que recebiam dos arguidos, exercendo estes sobre aqueles um controlo total“.

Ensinavam as crianças, até, a despistar a polícia. Por várias vezes, os menores ligaram para os pais desesperados porque a polícia andava "atrás deles". Numa delas, de acordo com a investigação comprovada em tribunal, um dos membros do grupo explorador instruiu-os a "rasgar as folhas do peditório e fugir de autocarro". Noutra, questionou: "Deste o teu nome verdadeiro ou outro?". E ordenou: "Apaga todas as conversas comigo".

Os menores não tinham grande margem para fugir. Eram obrigados a mendigar e a cometer furtos a tempo inteiro — tempo durante o qual estavam a ser permanentemente controlados. Não frequentavam a escola, por opção dos pais, impedindo assim que tentassem pedir ajuda a alguém, e nem sequer tinham consigo os seus documentos de identificação — que estavam na posse do grupo explorador.

Eram controlados à distância ou por telefone. Um dos elementos do grupo ligava com frequência para saber como estava a decorrer a atividade. “Vão mendigar, não fiquem aí parados”, ordenavam, segundo comprovou a investigação nas escutas realizadas. Também telefonavam para saber quanto dinheiro já tinham feito. As respostas iam variando: 800, 160, 590 ou 730 euros.

As buscas, a descoberta do caso e a fuga das crianças que estão em parte incerta

Depois de tantas sinalizações da PSP e da GNR já acumuladas, em novembro de 2017 foram feitas buscas à casa do grupo criminoso. Ali, num T1 com uma construção anexa que servia como segundo quarto, encontravam-se 13 cidadãos romenos: sete adultos e seis crianças. Nas buscas, foram apreendidos vários documentos que permitiram confirmar as suspeitas de como o grupo atuava. Os pais e o genro foram detidos e ficaram em prisão preventiva.

As crianças foram institucionalizadas no mesmo dia em que decorreram as buscas, mas estão agora, porém, em parte incerta. As vítimas abandonaram as instituições — uma delas, a menor que tinha sido traficada, estava grávida e fugiu logo no dia em que tinha chegado. Embora dois dos filhos e a menor traficada sejam maiores de idade, os restantes dois são menores: um tem 16 anos e outro tem 13. Mesmo após a detenção do grupo criminoso, o SEF colaborou com o Tribunal de Família e Menores do Porto e Diretoria do Norte da Polícia Judiciária para eventualmente apurar o seu paradeiro. Foram ainda  difundidos pelo Sistema de Informação Schengen vários pedidos de localização judicial dos menores desaparecidos, por determinação do Tribunal de Família e Menores, apurou o Observador junto de fonte ligada ao processo.

Em novembro de 2017, foram realizadas buscas à casa do grupo criminoso pelo SEF (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Dos 150 sinalizações de presumíveis vítimas de tráfico em 2017, 45 eram menores de idade e 14 eram casos de mendicidade forçada — embora três deles tenham sido desconsiderados por não haver indícios da prática deste crime. É, aliás, este o tipo de exploração mais frequente detetado em vítimas menores de idade, de acordo com os dados presentes no Relatório Anual de Segurança Interna, relativo a 2017. Dos 37 casos de tráfico de seres humanos investigados pelo SEF, três estavam relacionados com mendicidade.

Em Portugal, a mendicidade não é crime. Mas a exploração de menores ou de “pessoas psiquicamente incapazes” na mendicidade é. Nessas situações, as pessoas que exploram este grupo arriscam uma pena de prisão até três anos. Ou a partir de três anos quando a mendicidade é uma finalidade do tráfico humano.

A punibilidade do tráfico de pessoas para a exploração na mendicidade passou a integrar o Código Penal, em 2013, quando este foi alterado pela Lei 60/2013 que transpôs uma diretiva europeia de abril de 2011, relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à proteção das suas vítimas. “A exploração inclui, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, incluindo a mendicidade, a escravatura ou práticas equiparáveis à escravatura, a servidão, a exploração de atividades criminosas, bem como a remoção de órgãos”, lê-se na diretiva.

Arguidos negaram, mas tribunal condenou-os. O caso ainda tem pontas soltas

O casal e o genro, admitindo que sabiam que os menores mendigavam e roubavam objetos, negaram que alguma vez os tenham obrigado a fazê-lo. Os pais dos menores alegaram que o “recurso à mendicidade deriva dos seus usos e costumes de cigano romeno”, mas o tribunal considerou que “não foi apresentada qualquer prova de que efetuar peditórios praticando burlas seja um costume enraizado nos cidadãos romenos”, lê-se no acórdão a que o Observador teve acesso. Por isso, o tribunal tomou como certo que “os três arguidos instrumentalizaram os referidos menores à prática reiterada de furtos e burlas, estas sob a falsa aparência de peditórios, com claro aproveitamento do estado de imaturidade daqueles”, lê-se ainda no mesmo documento.

O casal e o genro foram condenados pelo crime de tráfico humano. O tribunal considerou que os três arguidos “contribuíram objetivamente para a realização típica do crime em causa”. No entanto, foram absolvidos do crime de associação criminosa que lhes era imputado, uma vez que o tribunal considerou que se tratou de uma “mera associação de vontades dos arguidos”. Mas o coletivo de juízes deixou cair ainda mais algumas acusações.

Embora o MP imputasse ao casal quatro crimes de maus tratos em concurso aparente com quatro crimes de utilização de menor na mendicidade, os pais foram condenados apenas por crimes de maus tratos. Isto porque o tribunal considerou a atividade de mendicidade uma “atividade proibida ou desumana”. E, de acordo com Código Penal, comete o crime de maus tratos quem “empregar em atividades perigosas, desumanas ou proibidas” menores de idade ou pessoas indefesas “sob a responsabilidade da sua direção”. Ou seja, o crime de maus tratos já prevê a atividade cometida por estes pais — condenados assim a uma pena maior (já que o crime de maus tratos é punido até cinco anos e o de utilização de menores apenas até três anos).

Os arguidos foram absolvidos do crime de associação criminosa que lhes era imputado (Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

No entanto, o tribunal não considerou que tenha ficado provado que o filho mais novo tenha alguma vez furtado algum objeto ou pedido dinheiro na rua para a associação que não existia. Assim, o casal foi absolvido de um crime de maus tratos, em concurso aparente com um crime de utilização de menor na mendicidade, tendo sido condenados, cada um, a três crimes de maus tratos.

Já o genro do casal foi absolvido dos crimes de maus tratos de que estava acusado. Isto porque os menores não estavam “a seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação”. O tribunal entendeu no entanto que o arguido agiu “sabendo e querendo utilizar” os três menores nas “ditas atividades proibidas e, assim, também na mendicidade”. Foi por isso condenado por três crimes de utilização de menores na mendicidade.

Este caso tem ainda pontas soltas. Ao longo da investigação, foi identificado “um conjunto de pessoas, maiores e menores, romenos” que auxiliavam o grupo criminoso na exploração. Não foi, até ao momento, possível “apurar que grau de intervenção teriam na estrutura criminosas”. Ou seja, se seriam exploradores, se auxiliavam o grupo ou se eram “pequenos criminosos autónomos, conhecidos dos arguidos”.

As crianças foram institucionalizadas no mesmo dia em que decorreram as buscas, mas estão agora, porém, em parte incerta. As vítimas abandonaram as instituições -- uma delas, a menor que tinha sido traficada, estava grávida e fugiu logo no dia em que tinha chegado. Embora dois dos filhos e a menor traficada sejam maiores de idade, os restantes dois são menores: um tem 16 anos e outro tem 13.

Durante as buscas, por exemplo, foram encontradas, no interior da casa, duas cidadãs romenas. Foram constituídas arguidas por suspeitas de fazerem parte do grupo explorador. Mas, no decurso da investigação, os inspetores perceberam que estas duas cidadãs não estavam “a utilizar menores, em seu proveito, na prática de mendicidade”. “Estavam é elas próprias a fazer peditórios“, refere a acusação. Estes elementos, no entanto, não foram alvo de análise por parte do tribunal.

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