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Miguel, 38 anos de idade, um craque da cabeça aos pés
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Miguel, 38 anos de idade, um craque da cabeça aos pés

EPA

Miguel, 38 anos de idade, um craque da cabeça aos pés

EPA

Miguel. "Ninguém suava nos treinos do Trapattoni"

Em dia de dérbi em Alvalade, nada melhor que meter conversa com um campeão nacional pelo Sporting (infantis e iniciados) e Benfica (seniores) numa carreira com Jesus, Mourinho, Scolari e Trapattoni.

Tome nota desta particularidade: sempre que Miguel completa o jogo todo, seja 90 ou 120 minutos, Portugal não perde uma única vez nas fases finais de Euro-2004 e Mundial-2006. Ao todo, sete vitórias e dois empates, ambos com Inglaterra. Extraordinário, sensacional. Se a isso acrescentarmos os títulos de campeão nacional pelo Sporting em infantis e iniciados mais o do Benfica em seniores, estamos perante um jogador raro do mundo do futebol. Raro em tudo: talento futebolístico, humildade em pessoa e bom conversador, cheio de histórias na ponta da língua. O Hotel Myriad, ali na Expo, serve de palco para a animada entrevista de 100 minutos.

Comecemos por esta foto, por exemplo.
Euro-2004? Holanda, não é?

Exatamente, como é que sabes?
Feeling, estou a rebobinar o filme e a ver tudo.

Isso é incrível. Quer dizer, não está aqui nada que indique Holanda.
Ou era Holanda ou Espanha. E os dois jogos até foram em Alvalade. Mas lembro-me desta figura, ahahahah.

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Começaste como suplente do Paulo Ferreira neste Europeu, certo?
Foi, banco no primeiro jogo com a Grécia. Natural, o Paulo a titular. O Porto tinha sido campeão nacional e europeu, o Scolari apostou nele.

E bem?
Bem? O Paulo é cinco estrelas, dos poucos que a gente encontra aí neste mundo.

Qual?
O do futebol, o dos artistas, o da falsidade. O Paulo sempre foi a mesma pessoa, sempre disponível e atento. É preciso saber andar neste mundo, caso contrário cansas-te de tanta falsidade e infinitas desilusões. É mesmo cansativo. Às vezes, piro-me para África. Já estive em Cabo Verde, mas há uns dois anos fui à Guiné-Bissau para conhecer e fiquei um mês. Agora tenho ido lá constantemente, até estou a pensar em ir mais uns 15 dias daqui a nada. Uma pessoa vem de lá totalmente relaxado, sem olheiras nem nada. Além disso, tenho um projecto para desenvolver na Guiné.

A minha ideia é dar condições aos miúdos. O que mais me irrita é a escravidão, o tráfego humano. Qualquer um pega em miúdos, promete mundos e fundos aos pais, mete-os em contentores e trá-los para cá, todos a viver na mesma casa. Isto quando é casa. Às vezes, é numa cave sem janelas sem nada. São histórias destas, bem reais e ainda atuais, que ouço e fico fodido. Quero alterar isso, quer alterar a realidade. Hoje meio mundo quer aproveitar-se de meio mundo. Quero mudar isso. Daí o projecto na Guiné.

Então?
Um projecto de uma escola de futebol, com dois campos de futebol, salas com computadores e equipamento próprio, a ver se é da Joma, através de um amigo meu. O projecto está em desenvolvimento em conjunto com o governo da Guiné. O Ministro do Desporto jogou futebol com o meu pai, ahahahahah. A minha ideia é dar condições aos miúdos. O que mais me irrita é a escravidão, o tráfego humano. Qualquer um pega em miúdos, promete mundos e fundos aos pais, mete-os em contentores e trá-los para cá, todos a viver na mesma casa. Isto quando é casa. Às vezes, é numa cave sem janelas sem nada. São histórias destas, bem reais e ainda atuais, que ouço e fico fodido. Quero alterar isso, quer alterar a realidade. Hoje meio mundo quer aproveitar-se de meio mundo. Quero mudar isso. Daí o projecto na Guiné.

Guiné, está anotado.
Tens de ir lá, a Guiné é um país com um potencial enorme. Só para teres uma ideia, tem 80 ilhas virgens. Oi-ten-ta. E encontras de tudo: há malta que nunca saiu de lá, há malta que veio para cá e voltou, há malta que nasceu cá e só se sente bem lá. Até eu me senti em casa.

Nasceste lá?
Nasci cá, os meus dois irmãos mais velhos é que são de lá. Isto é assim: os meus avós são cabo-verdianos e os meus pais guineenses. Eu, lisboeta. Ahahahahah.

O meu pai é o José Carlos. Jogou lá na Guiné e também cá, no Belenenses, Quer dizer, fez as camadas jovens do Benfica e depois fez um ano de sénior no Restelo, só que ele já era pai de três filhos, eu incluído, e aquilo do futebol ainda não era o que é hoje. Central, era um matulão. Como os meus irmãos. Um deles tem quase dois metros, um bicharrão. Eu é que saí assim, baixinho.

O teu pai jogou à bola, é isso?
Jogou lá na Guiné e também cá, no Belenenses, Quer dizer, fez as camadas jovens do Benfica e depois fez um ano de sénior no Restelo, só que ele já era pai de três filhos, eu incluído, e aquilo do futebol ainda não era o que é hoje, ahahahah.

Como é que se chama?
José Carlos.

Jogava a quê?
Central, era um matulão. Como os meus irmãos. Um deles tem quase dois metros, um bicharrão. Eu é que saí assim, baixinho. Ahahahahah.

O teu pai jogou com alguém conhecido no Benfica?
Eram os tempos de Reinaldo, Alberto. Só que os meus avós eram muito rigorosos e o meu pai tinha vindo para Portugal com o intuito de continuar os estudos. Disseram-lhe ‘larga isso que não dá nada’.

E tu começaste onde e a quê?
Sporting, a número 10.

A sério?
Ya.

Foooogo, não sabia. Eras tu que querias ou o treinador…?
Sempre joguei naquela posição. Só quando cheguei ao Estrela, tanto o Jesus como o Quaresma, começaram a explorar mais a minha velocidade e encostaram-me à linha. A verdade é que não me sentia muuuuito confortável a jogar a extremo, mas tinha mais oportunidade ali do que atrás do ponta-de-lança. Curiosamente, já não se vêem muitos 10 assim. O futebol mudou e essa figura perdeu-se.

Quem jogava nesse Sporting?
Eisch, tanta gente. Vargas, Filipe Cândido, Simão, Caneira. Ainda me lembro do Simão. Um dia, ele entrou em campo e marcou três golos ao Benfica. Daqueles dias em que tudo corre bem na tua vida. A vida do Simão mudou aí.

E a tua?
Olha, joguei no Sporting até aos juvenis. Depois houve uma confusão qualquer e passei a jogar por aí: Loures, Alverca, Olhanense.

Bolas.
Diziam todos que eu franzino e tal, que não iria ter muitas oportunidades. Antes de ir para Olhão, treinava com o Sporting. Só. Não jogava, só me treinava.

Xiiiiiii.
No Verão seguinte, quando vim de Olhão, pensei mesmo em abandonar o futebol. Não estava motivado nem tinha para onde ir.

E eras de quem?
Pertencia ao Sporting.

Ainda?
Ya.

E o Sporting?
Só para veres, um dos treinadores das camadas jovens do Belenenses era o Melo, ex-guarda-redes do Sporting. Muito bem, o Belenenses interessou-se mesmo por mim. Até achei piada jogar no clube do meu pai. Sabes o que aconteceu?

Nem ideia.
Havia um stress qualquer entre Sporting e Belenenses com umas transferências de jogadores e tal. O meu processo arrastou-se dias, semanas, meses. De repente, apareceu o Estrela. Um amigo disse-me para ir ao Estrela. E eu, a resmungar; sempre fui resmungão ‘Amadora? Caraças, agora vou para a Amadora?’.

E então?
Assinei pelo Estrela.

Ahahahahah.
Ahahahah. Mas o Sporting complicou, complicou, complicou. Só comecei a jogar pelo Estrela em Novembro.

Boa, boa.
Calma, há mais. Entretanto, criou-se a equipa B do Sporting e o Mário Lino chamou-me: ‘vens para aqui e coiso, foi um grande da nossa parte, tu és da casa’. Já me davam dez mil euros. Dez mil!

E tu?
Rejeitei. Até porque sentia que ia ter oportunidades no Estrela, então treinado pelo Fernando Santos.

E?
Não joguei, ahahahah. Mas treinei imensas vezes com os seniores e fui convocado num jogo ou outro. Preferi ficar no Estrela a ganhar 400 contos, a ser bem tratado e a fazer o meu caminho devagar. Treinei dois anos com os seniores até ter a primeira oportunidade. No Sporting, isso seria…

Foste campeão nacional pelo Sporting?
Fomos campeão de infantis. E perdemos um título para o Boavista, numa cena de pancadaria em Tomar. No ano seguinte, fomos campeões com o Porto na Marinha Grande.

E marcavas muitos golos?
Bastantes, bastantes.

Como?
De bola corrida, assim à entrada da área ou então em tabelinhas, coisas de fuebol de rua. Estou agora a lembrar-me de coisas, eheheheh.

Vem o Mourinho e dá-me a oportunidade de jogar a 10, até porque o Dani está com uns problemas. Só que ainda havia o Sabry, que dizia ao Mourinho para meter-me à esquerda para ele jogar a 10. Qual quê, joguei eu a 10. Ainda foram uns jogos. Com o Belenenses, por exemplo. Ele disse-me 'vais jogar tu e mais 10' e pensei 'deves estar a brincar comigo'. E, de repente, estou a jogar a 10. O problema foi a sucessão do Mourinho, apanhei treinadores que, se calhar, não eram os mais indicados. Como o Jesualdo, que só via fantasmas.

Quais?
O de ir à baliza.

Tu?
Eu. Foi ainda no tempo das escolinhas, o treinador era o César Nascimento. De quem gostava muito. Como o Osvaldo Silva, aliás. Faltavam os guarda-redes e fui à baliza, isto era futebol de sete.Bem, meti-me a defender tudo, eheheheh. O Nascimento só me dizia ‘epá, se calhar devias pensar em ir para a baliza, és atrevido e tal’. Admito que me entusiasmei com a ideia, mas depois queria era jogar na frente.

Na frente?
Ya, a fazer golos e mais golos. O Nascimento disse-me ‘espera aí, tens que decidir o que queres ser’ e foi aí que me decidi pelo ataque, a jogar a 10, vá. Depois aconteceu-me uma coisa engraçada no Benfica. Chego lá e metem-me a extremo. Vem o Mourinho e dá-me a oportunidade de jogar a 10, até porque o Dani estava com uns problemas. Só que ainda havia o Sabry, que dizia ao Mourinho para meter-me à esquerda para ele jogar a 10. Qual quê, joguei eu a 10. Ainda foram uns jogos. Com o Belenenses, por exemplo.

Mas o Mourinho detetou em ti capacidades de número 10?
Ele disse-me ‘vais jogar tu e mais 10’ e eu pensei ‘deves estar a brincar comigo’. E, de repente, estou a jogar a 10. O problema foi a sucessão do Mourinho, apanhei treinadores que, se calhar, não eram os mais indicados.

Quem vem a seguir ao Mourinho?
Toni.

Okay. E depois?
Jesualdo. Só via fantasmas e criou um grupo dele. Depois dei-se a bronca e fomos eliminados em casa pelo Gondomar.

Xiiiii, pois foi. E na Luz.
Em casa, no antigo Estádio da Luz. Estávamos três extremos no banco, eu, o Carlitos e mais um que não me lembro, e ele mete o Ricardo Esteves, que era defesa-direito, a extremo. Coisas à Jesualdo. Como o tirar-me sempre a meio do jogo.

Como assim?
Substituía-me. Sempre. Olhava para a placa e via o meu número. Aquilo aconteceu umas quantas vezes seguidas e disse ‘epá, já chega’.

Disseste mesmo?
Explodi no intervalo de um jogo com o Braga. Disse coisas que não devia ter dito, não foram as palavras mais simpáticas, mas disse aquilo que me ia na alma. Sentia que era uma injustiça. Jogasse bem ou mal, era sempre o primeiro a sair e até as pessoas já brincavam com isso. Estava farto.

Então e o presidente não intervinha?
O Luís Filipe Vieira estava a começar, tinha vindo do Alverca e tal. Quando começou a notar os grupos no balneário, apercebeu-se da realidade.

E o Camacho anulou esses grupos?
É assim, o Camacho tanto anulou que conseguimos ganhar a Taça de Portugal ao Porto e fizemos mais pontos que o Porto na segunda volta.

Mas o Camacho era carismático?
Eu sei lá, era a maneira dele: agressivo e, ao mesmo tempo, simpático. Às vezes, o presidente dizia ‘não, este tem que treinar’ e ele ‘não, este não vai treinar, tem de descansar; quem manda aqui sou eu, você manda lá fora’. Ele impunha-se assim e ganhou naturalmente o nosso respeito. Estamos a falar de um Benfica que andava com a casa às costas.

Então?
Epá, tanta coisa. Era o tempo da demolição do estádio para a construção do novo e a gente treinava-se sempre fora. Ou era em Massamá, no campo do Real, ou no Jamor ou em Odivelas. Aquele feito de ganhar a Taça de Portugal é de se tirar o chapéu.

No ano seguinte, Giovanni Trapattoni. Que tal?
Era parecido com o Scolari, sabes? O Scolari era tipo o amigo, o pai, o psicológo. Sempre teve um trato impecável comigo, mas, digo-te, podia ter tido muito mais sucesso na selecção. Nos primeiros dois/três anos, ele dizia ‘aqui mando eu, não manda nenhum empresário’. Depois isso mudou e prejudicou-o.

Com o Trapattoni, quando achávamos que íamos treinar mais duro, aquilo era sempre o mesmo: jogo, jogo, jogo, meinho e 'tá feito, vamos embora. Um gajo olhava para os outros e não via ninguém a suar. Foi um ano em que tivemos muitas lesões. Quer dizer, até fomos campeões e tudo, mas o número de jogadores lesionados foi absurdo. Às vezes, chegávamos aos jogos sem qualquer contacto com a realidade. Se os treinos não era intensos, não é? 

E o Trapattoni?
Era boa pessoa. Demais, até.

Dá-me lá um exemplo.
Epá, a certa altura, ele falava e nós ‘tá bem ‘tá bem’. Tipo os pais com os filhos, não faças isso nem aquilo e eles nem estão aí, respondem para o ar. Mas, atenção, o Trapattoni era amável e engraçado. Era peculiar, isso sim. E era amigo dos jogadores. Defendeu-nos sempre. Só que, pronto, os treinos não passavam daquilo.

O quê?
Quando achávamos que íamos treinar mais duro, aquilo era sempre o mesmo: jogo, jogo, jogo, meinho e ‘tá feito, vamos embora. Um gajo olhava para os outros e não via ninguém a suar.

Ahahahahah.
Foi um ano em que tivemos muitas lesões. Quer dizer, até fomos campeões e tudo, mas o número de jogadores lesionados foi absurdo. Às vezes, chegávamos aos jogos sem qualquer contacto com a realidade. Se os treinos não era intensos, não é? Ainda me lembro da final da Taça de Portugal, uma semana depois da conquista do campeonato. Foi com o Vitória de Setúbal, no Jamor, e parecíamos umas múmias. Nós bem que corríamos mas não dava para mais. Não dava mesmo, pá. Agora o campeonato é outra conversa. As pessoas dizem que foi o catenaccio. Como é que é? Catenaccio? Epá, ganhámos com mérito e ponto. Fomos às Antas e empatámos. Fomos a Alvalade e também não perdemos. Em casa, com o Sporting, ganhámos.

O golo do Luisão.
Nem me lembres essa semana, aquilo foi uma tensão. Depois do Sporting em casa, a visita ao Bessa. Se estávamos tensos, mais ficámos com a semana de estágio em Óbidos. Não conseguíamos pensar noutra coisa que não o jogo do Bessa. No autocarro, era só ver a malta a pensar. O de sempre, não é? A antecipar jogadas: se ele fizer isso, faço-lhe aquilo; se a bola vier cortada, dou-lhe assim, essas coisas.

E depois, lá dentro?
O Boavista tinha uma boa equipa, mas percebemos que aquilo não nos ia escapar. Mesmo depois do 1-1, mantivemos a calma e a segurança necessárias para segurar o empate. Para mim, como benfiquista, foi uma sensação única. O Benfica é o meu clube do coração e ganhar é uma festa imensa. Ainda por cima, 11 anos depois do último título de campeão.

Onde é que estavas em 1994?
Onde? Olha, em Alvalade.

Viste o 6-3?
Ainda jogava no Sporting, então entrava no estádio com o passe de jogador da federação. Estava com uns amigos, ali ao lado da Juve Leo. Chovia a potes e um gajo não podia manifestar-se. Quando o Sporting marcou, não me manifestava. Quando o Benfica marcava, também não me manifestava. E os meus amigos, todos do Sporting, olhavam para mim a dizer-me ‘caralho, estás todo contente’ e eu ‘olha aí, olha aí, não faças isso aqui’. Tinha uns 14 anos e só queria que o jogo acabasse para festejar.

Há uma história de Jesus com piada. Num treino, ele pede-me para receber a bola, ir até à linha e cruzar para o Gaúcho. Eu fazia isso mesmo, contornava os defesas, fazia o passe e ele 'deu golo, mas não quero assim', tem de ser assim e não sei mais o quê. E eu a bufar. Ele percebia e dizia-me 'deves ter a mania que és o Maradona, agora vais para ali jogar à parede'. E ficava uma meia-hora a bater bolas contra a parede, com o pé direito e o esquerdo à vez. Saía de lá todo rebentado, a cambalear.

Vias o Sporting com frequência?
Ah pois, estava ali a tirar partido. Vi o Figo a subir como nunca. Ao fim-de-semana, era jogar de manhã, almoçar no Magriço e ver os seniores à tarde. Chegava morto a casa, mas foi uma fase da juventude muito boa. Excepção feita àqueles anos em que me questionei sobre o mundo do futebol ou outro mundo.

Qual?
O outro mundo não seria o melhor, nem estaríamos aqui a falar certamente. Mas sempre gostei de jogar à bola e cumpri o sonho, sobretudo quando cheguei ao Estrela e deparei-me com os mais velhos, como Mário Leal, Leal, Paulo Bento. Eles ajudaram-me a afastar certas coisas, porque estava na idade da curiosidade, da ganza e tal. Mas não queria nada daquilo, que me fazia mal. Queria era jogar. Na escola até podia ser o mauzão, o dread, mas isso passou-me por completo com a assinatura do contrato pelo Estrela. Tinha uma DTR, por exemplo, e vendi-a.

DTR é uma mota, certo?
Uma 125. Peguei nela e vendi-a. ‘Não quero nada disto’ e, pá, as coisas foram-se endireitando. Com muita força de vontade, até porque vinha de um bairro social e as coisas nunca são fáceis, há muitas tentações. No Estrela encontrei pessoas que me deram a mão, que acreditaram em mim, desde o Quaresma até ao Jesus, passando pelo próprio presidente Marcos Pedrosa.

Levaste muito na cabeça do Jesus?
Um bocadinho.

Como é que ele era há 20 anos?
Igual, igual, igual, uma coisa incrível. Ajudava-me muito, não posso queixar-me, mas houve ali um tempo em que eu era mais irreverente e, às vezes, pensava ‘ai se não fosse meu treinador’. Mas, pronto, aguentava-me, controlava-me e aprendia a não ferver em pouca água. Há uma história com piada. Num treino, ele pede-me para receber a bola, ir até à linha e cruzar para o Gaúcho. Eu fazia isso mesmo, contornava os defesas, fazia o passe e ele ‘deu golo, mas não quero assim’, tem de ser assim e não sei mais o quê. E eu a bufar. Ele percebia e dizia-me ‘deves ter a mania que és o Maradona, agora vais para ali jogar à parede’. E ficava uma meia-hora a bater bolas contra a parede, com o pé direito e o esquerdo à vez. Saía de lá todo rebentado, a cambalear.

Uau.
Calma. No dia seguinte, os mais novos, eu e o Jorge Andrade, tinham de estar mais cedo que os outros todos para ajudar o roupeiro nas roupas, chuteiras e isso. Um dia, cheguei atrasado. Expliquei-lhe que tinha vindo de transportes e ele dá-me uma bronca descomunal. Sai da convocatória, jogávamos em Guimarães. Vínhamos de seis jogos sempre a ganhar ou sem perder. Em Guimarães, puuum, derrota. Na semana seguinte, jogamos em casa, ele não me convoca outra vez e perdemos outra vez. Segue-se a viagem ao Porto, jogo com o Salgueiros. Estamos a perder, ele faz-me entrar e faço o golo do empate. A partir daí, voltei a jogar como dantes e é até aí que nasce a ligação com o Benfica, porque um dirigente foi ver o Verona. Só que o Verona jogou descaído para a esquerda e eu é que fui o 10. Estávamos a perder 2-0 com o Braga e chegámos ao empate. Acho que fiz duas assistências. O jogo correu-me mesmo bem e o Benfica tomou nota. Nesse ano ainda, vou ao [torneio de] Toulon e também vou bem.

Então?
Fomos à final, perdemos com a Colômbia nos penáltis. Às tantas, estou em Guimarães para assinar pelo Vitória. Estou com o director Pedro Xavier, através do Pedro Mendes, e tudo está bem encaminhado. Nessa semana, liga-me um número estranho para o telemóvel. Era o Shéu. Foi ter comigo a Chelas e acertámos as coisas todas ali nuns escritório no Campo Grande.

Chegaste ao Benfica. Quem foi a primeira pessoa que viste na Luz?
Paulo Madeira. Íamos fazer as análises e ele já lá estava. Era o Paulo Madeira e mais outro que não me lembro. Sei que os dois eram pais que deixavam os filhos na escola às oito e iam directos para a Luz. Pormenor: o treino era às 11. Então eles estavam sempre mais cedo.

[Quinze mil caracteres depois] Olha lá, e o Paulo Ferreira?
Eheheheh, é verdade. Epá, mal perdemos com a Grécia, sabíamos que ia haver mudanças. Quem no lugar de quem é que era uma incógnita, mas depois fomos percebendo com os treinos e as conversas. Mudaram toda a defesa, excepção ao Jorge Andrade. No meio, saiu o Rui Costa e entrou o Deco. Isto para o jogo com a Rússia. Com a Espanha, entra em definitivo o Ronaldo para o lugar do Simão. E foi isto. Basicamente, o Scolari chegou-se ao pé de mim e disse ‘neguinho, como já deu para perceber, vais jogar’. Depois, falava assim: ‘Tu, vai, vai, vai para cima, faz eles correrem, isto e aquilo, tem a minha autorização para fazer, aquele corredor é todo teu, o Cristiano defende muito, o Cristiano está lá para te ajudar, vocês têm que rebentar” e assim aconteceu.

Ai era o Cristiano? E o Figo?
O Figo jogava na esquerda, um bocado para dentro.

E foi assim até ao reencontro com a Grécia. Na final, lesionaste-te.
Uma infelicidade.

Onde é que viste o golo da Grécia?
No banco. Mal fui substituído, fiz gelo no balneário e depois vi a segunda parte no banco. Que tristeza, dominámos e eles marcaram na única oportunidade. Futebol, dizer o quê?

E este boneco aqui?
Eischhhhhh, Holanda, Mundial-2006. Esse jogo foi polémico, fora do normal.

Não levaste cartão?
Nenhum.

Escapaste?
Não, por acaso sempre fui muito calmo. Controlava as emoções e entrava com o objectivo de me divertir. Aliás, só me lembro de ter sido expulso uma vez.

Aqui em Portugal ou no Valencia?
No Valencia. Foi uma falta típica em que não toco na bola nem no homem, só que o árbitro foi na conversa do gajo do Atlético Madrid e lixei-me. Se fosse agora, com o VAR, nem amarelo levava. Mas esse Portugal-Holanda é histórico. Porra, até o Figo estava de cabeça perdida.

O jogo começa logo mal, com a lesão do Bouhlarouz em cima do Ronaldo.
Pooooois foi, o Cristiano saiu a chorar e tudo. Toda a gente dizia que ele era fiteito e, de repente, estava a ser substituído antes dos 15 minutos. Aquilo descambou a partir daí.

Tiveste atento ao Robben, foi?
Robben, ya. Ainda me lembro de ter dado um pique no minuto 90. Fui lá à frente e cruzei para o Maniche, que não conseguiu marcar. O que não era normal, estávamos todos rebentados. Esse Mundial correu-me muito bem, até acho que fui mais regular em 2006 do que em 2004. Ainda me lembro bem: no final do Mundial-2006, o Real Madrid queria contratar-me. Já não me lembro se era o Real Madrid do Vanderlei Luxemburgo ou o do Fabio Capello. Sei que me queriam e o Valencia renovou-me o contrato por mais três anos. Já viste o que era jogar em Madrid?

Ficaste no Valencia?
Na boa, adoro Valencia. O clube, a cidade, a cultura. É tudo bom. Só que Espanha é Real e Barça num patamar, Atlético Madrid um pouco atrás e depois o resto.

No Mundial-2006, Portugal elimina Holanda e Inglaterra. Depois é a França.
Henry.

Caiu para o teu lado.
Muitas vezes. Era craque. Mais uma vez, o jogo não nos correu de feição. Até para mim, esquece. Lesionei-me no joelho e fiz uma entorse. Ainda me lembro da jogada como se fosse hoje: faço tabela com o Pauleta e, tumba, caio.

Saíste?
Logo, logo.

Não me lembrava disso.
Queríamos tanto chegar à final e estávamos bem encaminhados. Foi pena, mas valeu a pena. Nesse Verão, estava de férias com a minha fiha no Algarve e as pessoas vinham ter comigo. Ou a pedir autorização para me dar um abraço ou para dizer coisas carinhosas, tipo ‘muito obrigado por tudo o que vocês têm feito’.

Isso tem a ver com a epopeia 2004-2006.
Claramente.

Há os jogos épicos com Inglaterra.
Os penáltis, que sofrimento. Tanto 2004 como 2006. Mais o de 2006, porque jogámos contra dez e não soubemos tirar partido da expulsão do Rooney. Graças a Deus, tínhamos o Ricardo. Que estava maluco, endiabrado.

Estava ou é?
Sabes uma coisa, não deram o valor merecido ao Ricardo, as pessoas esquecem-me depressa daquilo que ele fez. Lá está, foi mais uma vítima desse mundo ingrato do futebol. O Ricardo é um ícone da selecção e é engraçado continuar a vê-lo na televisão.

Não deram o valor merecido ao Ricardo, as pessoas esquecem-me depressa daquilo que ele fez. Foi mais uma vítima desse mundo ingrato do futebol. O Ricardo é um ícone da selecção. Tanto no jogo como fora dele, ele era mesmo assim no dia a dia. Falava, falava, falava e não se calava. E sabia tudo. Um gajo falava de pneus e ele sabia de pneus. Um gajo falava de barcos e ele sabia de barcos. Ele sabia de tudo e conhecia toda a gente. Às tantas, quando alguém tinha dúvidas sobre o que quer que fosse, a resposta era 'pergunta ao Ricardo'.

Ele chateava-vos muito desde a baliza?
Uiiii, não se calava. Tanto no jogo como fora dele, ele era mesmo assim no dia a dia. Falava, falava, falava e não se calava. E sabia tudo. Um gajo falava de pneus e ele sabia de pneus. Um gajo falava de barcos e ele sabia de barcos. Ele sabia de tudo e conhecia toda a gente. Às tantas, quando alguém tinha dúvidas sobre o que quer que fosse, a resposta era ‘pergunta ao Ricardo’, ahahahahahah.

Deportes,Futbol,

E esta foto, hein?!
Eia pá, a minha armadura. Ainda usava o aparelho para arranjar os dentes. É a minha apresentação no Valencia, depois daquela saída do Benfica. O Valencia enche-me o coração e é o primeiro que acompanho nos sites para saber se ganhou e tal. Foi uma fase boa, diverti-me imenso e joguei muitos anos. Só que não era o clube preferido na altura do negócio.

Havia outros interessados?
Liverpool, onde cheguei a ir, e Juventus, com reunião em Milão.

E como é que sais para o Valencia?
Entendimento entre os clubes. O Benfica queria um valor e só o Valencia é que se chegou à frente. Para mim, foi um alívio sair do Benfica. Fui-me embora e nem pensei duas vezes.

Não foi no embarque para Valencia que apareceste com um penso na mão?
Era, tinha um penso aqui. Lixei este dedo, fiz um corte e especulou-se tanto.

Ai foi?
Uiii, nem imaginas. O que acho engraçado é que houve uma confusão e o Miguel vai lá parar sem fundamento nem necessidade. Depois, muitos anos depois, é que as pessoas falam comigo.

Quais pessoas?
Aquilo foi assim: houve um stress e meteram o meu nome na conversa. A própria pessoa que insinou que eu tinha feito alguma coisa veio pedir-me desculpa porque foi atrás do disse que disse. Enfim. É o que te digo: só queria sair de Lisboa.

A imprensa criticava-me por tudo e por nada. Na altura, o 24Horas. E ainda hoje o Correio da Manhã provoca. Quando o Quaresma foi assaltado na minha zona, a notícia era 'gangue de Miguel assalta Quaresma'. Mas o que é isso? Qual gangue? Soou a situação de todo o tipo, entre agressões, tiros e sei lá o que mais, e nada no tribunal, cai tudo em águas de bacalhau.

Estava mau o ambiente por aqui?
Mau? A imprensa criticava-me por tudo e por nada. Na altura, o 24Horas. E ainda hoje o Correio da Manhã provoca. Quando o Quaresma foi assaltado na minha zona, a notícia era ‘gangue de Miguel assalta Quaresma’. Mas o que é isso? Qual gangue? Soou a situação de todo o tipo, entre agressões, tiros e sei lá o que mais, e nada no tribunal, cai tudo em águas de bacalhau. Continuam a bater na mesma tecla sem explicação possível, a fazer comparações sem pés nem cabeça. Ainda me lembro de ver o director Octávio Ribeiro a pedir entrevistas e a pedir favores na Luz. Esse chupa-pilas, desculpa lá a expressão. Se o encontro na rua, vou ser notícia. Tudo o que ele fez contra mim é revoltante. Uma vez, disse-lhe mesmo ‘não gosto de entrar por esse caminho, mas já repararam que vocês dão mais ênfase à coisa sempre que é uma pessoa de cor?’.

Para desanuviar o ambiente, esta aqui…
Isso com o Barça, na meia-final da Taça do Rei. Empatámos 1-1 lá e ganhámos 3-2 em Valencia. Na final, ganhámos 3-1 ao Getafe. Foi uma época atribulada, com quatro treinadores. Estivemos na zona de descida e depois, com oito vitórias seguidas, quando chegámos aos lugares da Liga dos Campeões. Já viste os craques? Baraja, Silva e Joaquín. Era uma equipa tremenda, muito boa. Curiosamente, apanhámos 6-1 do Barça em Camp Nou para o campeonato. Foi a minha maior goleada de sempre. Porra, o Baraja era uma instituição, selecção espanhola e tal. O Silva estava a aparecer e hoje é o que é no Manchester City.

É tranquilo, não é?
Muito no canto dele. Não é tímido, é reservado. Fala com quem acha que tem de falar e não se mistura muito. Dos melhores que vi a jogar à bola.

E depois o Joaquín, um personagem.
Está no Betis e é dos jogadores mais engraçados que já encontrei. Tem sempre anedotas para contar de manhã. Ele junta-lhe o acento andaluz mais a gargalhada e temos o dia feito. É só rir, é a alegria em pessoa.

Para acabar, um dérbi.
Se não estou em erro, isso foi um Benfica-Sporting na nova Luz em que perdemos e eu fui expulso no meu dia de anos.

Eheheheheheh.
Essa noite teve piada, porque dava-me com mais malta do Sporting do que do Benfica e acabei por fazer o jantar de anos com pessoal do Sporting. No restaurante, as pessoas olhavam para mim como quem diz ‘então mas este gajo leva 3-1, é expulso e vai jantar com os do Sporting?’.

És expulso por quem?
Pedro Proença.

E?
Foi uma coisa estúpida. Dá-me o primeiro amarelo por obstrução ao João Pinto. Mentira, não fiz nada. O segundo amarelo é aquele lance em que falho a bola e também o jogador, só que o João Pinto atira-se e dá voltas e mais voltas. E o Proença vai na cantiga. Segundo amarelo, vermelho. Quando saio de campo, digo-lhe ‘saiste-me cá um pau de dois bicos, é por isso que nunca vais chegar a internacional’. Um dia, no primeiro jogo que me apita com a cena da FIFA ao peito, ele aponta para o símbolo. São situação engraçadas, ahahahahah. Esse Sporting era forte pá: João Pinto, Sá Pinto, Barbosa, Silva na frente. Boas memórias, boas memórias.

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