A azáfama é grande logo pela manhã, na USF (Unidade de Saúde Familiar) Saúde Laranjeiro, em Almada. Os utentes — idosos, mães acompanhadas pelos filhos bebés, mulheres grávidas — vão entrando e são encaminhados pelo segurança para o local respetivo. Os que têm consulta agendada limitam-se a aguardar, os outros dirigem-se aos secretários clínicos para tratar de outros assuntos (desde a marcação de consultas aos pedidos de renovação de medicação).
À primeira vista, o quotidiano de um centro de saúde normal. Mas esta unidade, no Laranjeiro (numa das maiores e mais densamente povoadas freguesias do país), não é um centro de saúde igual à maioria das unidades da zona de Lisboa e Vale do Tejo, onde grassa a falta de médicos e persistem as filas formadas ainda de madrugada: aqui, há uma bolsa de consultas para os mais de quatro mil utentes sem médico de família, a Via Verde Laranjeiro — uma forma de facilitar o acesso aos cuidados de saúde a esta população (grande parte da qual migrante). “Quase que os doentes sem médico têm melhor acesso do que os doentes com médico atribuído”, diz a coordenadora da USF Saúde Laranjeiro, Joana Marinho.
“É quase utópico pensar que cada cidadão vai ter um médico de família”, sentencia a médica, que lidera uma unidade com mais de um quinto da população inscrita a descoberto — cerca de 4 mil dos 17800 utentes não têm médico (cerca de 22% do total). Com recursos limitados, os profissionais organizaram-se para criarem uma resposta a curto prazo para os utentes sem médico. A unidade, que era uma UCSP (Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados — o primeira grau da organização dos centros de saúde), evoluiu para USF modelo A em janeiro de 2022, ao mesmo tempo que arrancou o projeto da Via Verde.
Bolsa de consultas da Via Verde Laranjeiro tem dez vagas diárias
“A intenção de termos uma bolsa de utentes sem médico está relacionada com as características da população que servimos. Esta zona tem uma população migrante muito considerável, com muita mobilidade geográfica”, explica Joana Marinho, 34 anos, há quase três na USF Laranjeiro. A ‘bolsa’ de consultas, limitada a oito vagas diárias para adultos (e mais duas para crianças, grávidas e doentes crónicos, num total de dez consultas), permitem que a população migrante (a maioria dos utentes sem médico) tenha acesso aos cuidados, sem que, que no entanto, garanta um acompanhamento contínuo. “Estas pessoas não precisam de uma continuidade de cuidados, são doentes que estão cá de passagem ou que moram nesses países”, refere a médica.
Inicialmente, antes da criação da Via Verde, os utentes “faziam filas às 5, 6 horas da manhã” para tentaram assegurar uma consulta. Uma realidade com que se confrontam muitos dos utentes de centros de saúde na região da Grande Lisboa, onde há agrupamentos de centros de saúde (ACES) onde mais de 40% da população não tem médico, mas que já não existe no Laranjeiro. “As filas de madrugada incomodavam-nos. Então, alterámos as regras e as consultas foram sendo marcadas telefonicamente. Agora, as pessoas conseguem organizar-se melhor, sabendo que têm uma consulta marcada“, destaca a médica, acrescentando que a Via Verde é assegurada, diariamente, por quatro dos oito médicos da USF Saúde Laranjeiro. Antes, a resposta era dada por médicos tarefeiros, que não conheciam o historial do doente. “Agora, trabalhamos todos juntos em prol dos utentes e damos uma resposta diferente, melhor. É um verdadeiro trabalho de equipa”, destaca.
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A responsável sublinha que “há uma grande desigualdade de acesso aos serviços de saúde e é assustador ver a falta de cuidados que algumas pessoas têm”, enumerando casos de “patologia crónica descompensada, doenças infecciosas”, entre outras, que “poderiam ter sido prevenidas”, se os utentes, essencialmente migrantes, tivessem tido um acesso “mais facilitado aos cuidados”. A maioria, diz, enfrenta grandes dificuldades socioeconómicas, situações de vida “dramáticas”.
“Na parte clínica, vemos coisas muito fora do comum, situações muito diversas, de doenças que nunca vimos durante o internato“, revela a médica. A discussão entre a equipa da USF quanto às situações clínicas que chegam à unidade é “motivadora”, garante, e um fator de atração para jovens médicos. “Os internos vêm, gostam de estagiar aqui, passam a palavra e outros vêm conhecer o projeto”, diz Joana Marinho, adiantando que há médicos de Sintra e de Coimbra na equipa.
“Pedem para ligar, ligamos 20 vezes e ninguém atende”
No entanto, nem tudo corre bem. A carência de secretárias clínicas e de equipamento telefónico dificultam, muitas vezes, as marcações de consultas, o que leva muitos utentes a recorrerem às consultas abertas, sem marcação, e destinadas apenas a situações de doença aguda, isto é, suficientemente graves que justifiquem um atendimento imediato. Foi o que fez Maria Gomes, 55 anos, natural do Brasil, por causa de uma dor forte e continuada num pé. “É positivo já não haver filas, mas nem sempre consigo consulta”, diz Maria, há cinco anos a viver no Laranjeiro — os mesmos de espera por um médico de família. “Costumo vir aqui, todos os meses, porque tenho colesterol alto”. No entanto, é difícil, diz, conseguir assegurar uma das consultas programadas da Via Verde. “Pedem para ligar, ligamos 20 vezes e ninguém atende“, critica, explicando que, esta segunda-feira — dia em que o Observador esteve na USF Saúde Laranjeiro –, se deslocou à unidade de saúde sem marcação por ser uma situação aguda. A consulta aberta não permite, no entanto, abordar mais problemas para além da situação considerada urgente, denuncia: “Se tiver outras coisas para dizer sobre a minha saúde, não tenho como”.
“A resposta é q.b mas temos estado a melhorar”, defende a chefe da equipa de secretárias clínicas, Ana Carla Nunes, que admite, no entanto, “que nem toda a gente está satisfeita”, nomeadamente por causa da resposta limitada às chamadas telefónicas. “Não há capacidade de contratar pessoas fora, e, internamente, mover pessoas para aqui iria desfalcar a resposta noutras unidades do ACES”, explica. Ainda assim, a Via Verde tem, diz, “sido uma mais-valia para a população do Laranjeiro”, numa resposta que, em alguns casos, é “melhor do que a dada aos utentes com médico” atribuído.
“É uma população com a qual não é fácil lidar, já houve situações de violência contra profissionais. Também é uma população muito consumidora de consultas. Aqui as pessoas não têm literacia em saúde e estão muitos sedentas de cuidados, uma vez que estiveram muitos anos sem acesso a médicos”, afirma a médica Joana Marinho. Para além da iliteracia, a barreira comunicacional é um dos maiores desafios que os profissionais de saúde da USF Laranjeiro enfrentam. “É uma dificuldade mas temos um número de apoio para o qual podemos ligar e aplicações que nos ajudam”, diz a médica, revelando que já teve necessidade de fazer uma consulta em árabe, com o apoio de uma aplicação de telemóvel. Entre a população migrante que aflui a esta unidade, e que na sua esmagadora maioria não tem médico de família atribuído, o maior número de utentes são provenientes de países africanos de língua oficial portuguesa, do Brasil, do Paquistão e do Bangladesh.
Via Verde ajuda a desviar doentes do sobrelotado Hospital Garcia de Orta
As 10 consultas diárias para utentes sem médico “não são suficientes”, admite a coordenadora da unidade, uma vez que a procura supera a oferta. Para além do reduzido número de vagas, a espera entre a marcação e a consulta é de cerca de dois meses, semelhante ao tempo de espera para os doentes com médico atribuído. “Quem nos dera conseguir cumprir com a resposta em 15 dias úteis, que é o que está recomendado”, diz Joana Marinho, que garante que nenhum dos médicos da USF cumpre o horário semanal de 40 horas a que está vinculado, e que é sempre alargado face às necessidades. As características da população, a falta de médicos e a atividade adiada durante a pandemia de Covid-19 (que agora está a ser recuperada) são fatores que explicam a demora na resposta. Ainda assim, o balanço do projeto é positivo, destaca. “Não há soluções fáceis para estes doentes, que não são menos do que os outros e que também precisam de cuidados”.
A Via Verde evita que muitos utentes se desloquem ao Hospital Garcia de Orta, destaca a coordenadora, uma unidade que tem grandes dificuldades para dar resposta aos mais de 35o mil habitantes que vivem nos concelhos de Almada e do Seixal. Com resposta no próprio dia, na consulta aberta, Jean Pierre Charles, 65 anos, não precisou de se deslocar ao hospital. O francês, a viver em Portugal há quatro anos, não fala português e, por isso, é mulher a explicar a situação. “Estamos a evitar ir ao Garcia de Orta, que está sempre sobrelotado. É a primeira vez que ele aqui vem”, diz, satisfeita pelo facto de o marido ter conseguido consulta em apenas um “quarto de hora”. Isto, apesar de o casal não ter conseguido contactar com a USF Saúde Laranjeiro através do telefone. Para Cristina Barros, tanto a consulta aberta como a Via Verde são serviços “úteis para as pessoas sem médico”.
A USF Saúde Laranjeiro tem oito médicos, quando deveria ter dez. A coordenadora explica que alguns médicos saem para USF de modelo B (o modelo mais avançado de centros de saúde, e que garante uma remuneração 30% maior do que o modelo A), que predomina entre os centros de saúde do ACES Almada/Seixal. A unidade apresentou em maio deste ano uma candidatura para evoluir para o modelo B, mas ainda aguarda aprovação.
Parte das consultas, quer das programadas quer das que são feitas em regime aberto, são realizadas por enfermeiros especialistas em saúde materna e em saúde infantil. Outra parte é realizada pelos enfermeiros mas numa vigilância “partilhada” com os médicos, quando necessário — de que são exemplo, as consultas de diabetes e planeamento familiar. “A Via Verde foi uma luz ao fundo do túnel, porque, quando éramos uma UCSP não tínhamos resposta para os utentes”, diz a enfermeira-chefe da USF, Ana Paula Pereira, há 9 anos a trabalhar na unidade. A responsável pela enfermagem sublinha que estes utentes apresentam situações de saúde “mais delicadas”, o que está relacionado com a sua condição social e económica.
Ao contrário das pessoas com equipa de saúde familiar atribuída, com quem os enfermeiros estabelecem uma relação “empática e terapêutica mais próxima”, no caso das pessoas sem médico as consultas são mais demoradas, uma vez que é necessário “recomeçar”, descobrindo o historial do doente. Estabelecer a relação terapêutica é, assim, mais díficil, admite Ana Paula Pereira. Muitos dos doentes sem médico apresentam várias comorbilidades; alguns estão acamados, devido à falta de acompanhamento regular, e são seguidos pelas equipa de cuidados domiciliários da USF Saúde Laranjeiro.
Os desafios da população migrante e da fixação de médicos na região de Lisboa
Outra das dificuldades é mudar hábitos, entranhados na população migrante. “Tive utentes, vindos de África, que começaram a dar alimentação quase normal a crianças com três meses, como leite de vaca. Temos utentes muçulmanas que se recusam a ser vistas por colegas homens. Já tivemos situações em que as mães, estrangeiras, queriam que inoculássemos os filhos por cima da roupa, para não expor o corpo das crianças”, enumera a enfermeira-chefe, que admite que, na maior parte dos casos, a equipa da unidade consegue que as pessoas “modelem o comportamento de acordo com as necessidades”.
No futuro, a intenção é a de terminar o projeto da Via Verde, assim que a USF tiver um número suficiente de médicos de família que garantam a resposta a todos os inscritos, diz Joana Marinho. Uma meta, que admitem — quer a coordenadora da USF Saúde Laranjeiro, quer o diretor-executivo do ACES Almada/Seixal, Alexandre Tomás –, pode demorar anos.
Reportagem. Porque é que nuns locais todos têm médico de família e noutros não?
“Os doentes sem equipa de saúde familiar têm uma dificuldade de acesso aos cuidados em Portugal. Temos várias possibilidades: uma é esperar que tenhamos médicos, enfermeiros e administrativos para atribuir a toda a população, e esse é um cenário difícil”, diz Alexandre Tomás, revelando que existe, no ACES que lidera, um défice entre as aposentações de médicos e as entradas. Atualmente, faltam 35 médicos para cobrir cerca de 70 mil utentes a descoberto. “E sabemos que não os conseguimos”, assegura.
O responsável defende, em relação ao problema da falta de médicos, é preciso intervir a montante, na abertura das vagas de formação, de modo a fixar médicos nas zonas mais carenciadas. Isto é, “quando se abrem as vagas para formação, deve haver uma perspetiva nacional das maiores necessidades”, alocando mais vagas a essas regiões. “Não é depois aos 30 anos [quando se termina, em média, a formação da especialidade], que os médicos, já com família, se vão deslocar para outra região“, realça Alexandre Tomás, dando o exemplo do fluxo da região Norte para o Sul. “O fator determinante de fixação de jovens especialistas é a fidelização às equipas”, diz. E haveria capacidade formativa em Lisboa e Vale do Tejo para aumentar o número de vagas de formação para médicos de família? “No ACES Almada/Seixal, temos três vezes mais. Em vez de 18 poderíamos receber 60 médicos”, garante.
Outra possibilidade, para enfrentar o número crescente de doentes sem médico, é criar uma resposta de curto prazo, como a Via Verde Laranjeiro. “Estamos muito agradados com esta resposta, que não é excelente, mas que é muito boa, quer do ponto da qualificação dos profissionais quer da acessibilidade”, assinala o diretor-executivo do ACES.
A Via Verde Laranjeiro não é um projeto pioneiro, mas, em todo o país, só existe outro com as mesmas características — também na margem sul do Tejo, a Via Verde Seixal. Um modelo que poderia ser replicado noutras zonas carenciadas, defendem os responsáveis. “É um modelo que poderia ser generalizado. Há zonas em que algumas pessoas não têm a perceção da aflição que é não haver médicos, não se conseguir uma consulta”, salienta Joana Marinho. Para Alexandre Tomás, a Via Verde “poderia ser replicada noutros contextos”. “Não fechamos portas a ninguém, não é um projeto só nosso”, diz o responsável, admitindo que o ACES que lidera poderá prestar apoio às unidades que queiram replicar o modelo.
O Observador questionou o Ministério da Saúde, no sentido de perceber como olharia para a replicação o modelo da Via Verde noutras zonas com falta de médicos. A tutela contornou a questão, adiantando apenas que “cerca de metade dos utentes sem médico de família atribuído foram atendidos nos cuidados de saúde primários no ano passado, o que denota o esforço de organização do SNS, em particular das equipas, no sentido de não deixar de proporcionar uma resposta às pessoas”.