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O desafio de Kim Gordon

Abrasivo, realista, caótico, destemido, "The Collective" é um dos mais agudos retratos da vida contemporânea captado em disco. É apaixonadamente inclassificável e é uma das bandas sonoras de 2024.

Ali em finais da década de 70, início da de 80, houve uma série de bandas que começaram a fazer música que se tornou altamente popular entre as pessoas que só ouviam música radicalmente não-popular. Dos Throbbing Gristle aos Cabaret Voltaire, passando pelos Young Gods, o som produzido tinha uma característica em comum: a presença de quantidades abissais de ruído, como se 10 mil guitarristas subissem ao palco acompanhados de 14 tratores e meio milhão de brocas, para criar o que a maior parte da humanidade caracterizaria como um indutor de enxaquecas.

Na altura não havia um nome preciso para esta música – era música “noise” ou alternativa ou avant-garde (aquele barulho todo vinha de sintetizadores e, posteriormente, samples, e às vezes nem guitarras havia); só posteriormente se começou a apelidar este sub-género de “industrial”, termo que foi aplicado (erradamente) a bandas que surgiram ainda mais tarde e atingiram o mainstream, como os Marilyn Manson (talvez por Manson ter começado por abrir concertos para os Nine Inch Nails, que eram herdeiros de algumas das bandas industriais pioneiras).

Claro que esta gente — Throbbing Gristle, Young Gods, Swans, Cabaret Voltaire — era toda muito diferente entre si e o que os unia era um certo desprezo pela canção convencional e pela ideia de músico enquanto profissional do virtuosismo; a vontade de experimentar era também um fator de união, e um fator que aproximava estas bandas específicas a todas as outras que estavam a incorporar o ruído e a distorção em estruturas pouco convencionais, pelo menos quando comparadas com a tradicional canção pop.

[o vídeo de “BYE BYE”:]

Entre essas outras bandas estavam os Sonic Youth, cuja baixista, Kim Gordon, se tornou icónica, não só pela sua postura num meio altamente masculino, como pela voz – e é possível que Gordon ainda não tenha recebido o reconhecimento que lhe é devido pelo que faz em Tunic (song for Karen) e na espantosa Dirty Boots (ambas de Goo, de 1990), ou em 100%, a faixa de Dirty (1992) que expôs os Sonic Youth ao mainstream, entre outras menos conhecidas do grande público (pessoalmente, adoro Shadow of a Doubt, de EVOL, de 1986, e Kool Thing, de Goo). É possível que, sozinha, Gordon tenha tornado cool a figura da rapariga-baixista que canta numa banda rock (mais tarde Kim Deal também ajudou).

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[Já saiu o quarto episódio de “Operação Papagaio” , o novo podcast plus do Observador com o plano mais louco para derrubar Salazar e que esteve escondido nos arquivos da PIDE 64 anos. Pode ouvir o primeiro episódio aqui, o segundo episódio aqui e o terceiro episódio aqui]

Em 2011, após 30 anos de atividade, os Sonic Youth acabaram, na sequência de um escândalo, ou daquilo que no indie-rock se pode chamar um escândalo (ou seja, algo que choca as pessoas, mas que está restrito a uma audiência limitada): Gordon, que era companheira de Thurston Moore (o principal guitarrista e compositor dos Sonic Youth, com quem ela tem uma filha), encontrou, no telemóvel de Lee, mensagens escritas por uma rapariga mais nova e em breve descobriu que o seu parceiro de décadas andava a traí-la.

A descoberta gerou um aceso debate online (de novo, circunscrito às pessoas que ouvem este tipo de música), em parte porque apesar da pinta de gente mal comportada, os Sonic Youth sempre pareceram estar do lado das causas certas e nunca exibiram o menor sinal de estrelato (isto é, gente que nem um problema de drogas teve).

Este ruído é novo – ainda sai de colunas que amplificam o som de uma guitarra, transformado por um sem número de pedais de distorção, mas esse ruído está em fundo ou por cima de beats de trap que cirandam por todo o lado e tornam "The Collective" um dos mais estranhos e inclassificáveis álbuns dos últimos anos.

Mas o que hoje é uma acirrada discussão no Twitter amanhã já foi esquecido, outra matéria torna-se assunto do dia – e no fim do dia Kim estava separada e sem banda. Devíamos ter adivinhado que ela não ficaria sossegada a chorar em casa: criou os Body/Head (com Bill Nace), que se estrearam com Coming Apart, em 2013 (seguiram-se No Waves, de 2016, e The Switch, de 2018); o seu livro de memórias, Girl In a Band, saiu em 2015; participou em inúmeras exposições com a sua arte, que se estende por várias disciplinas (vídeo, pintura, escultura); e lançou o seu primeiro disco a solo, No Home Record, em 2019, em que, tal como com The Collective, explorava o ruído.

Nem toda a gente gosta de ruído, note-se – Damien Morris, crítico do jornal inglês The Guardian, deu 2 estrelas a The Collective, dizendo que o disco tem “alguns grandes momentos”, mas abafados por “uma barragem de distorção”. Como não tenho o número de telefone dele, não lhe pude perguntar: mas tu fazes ideia de quem é a Kim Gordon? Sabes que ela vem de uma cena nova-iorquina chamada No Wave, que era bem mais radical do que o ruído que atravessa The Collective?

Só que apesar disso, este ruído é novo – ainda sai de colunas que amplificam o som de uma guitarra, transformado por um sem número de pedais de distorção, mas esse ruído está em fundo ou por cima de beats de trap que cirandam por todo o lado e tornam The Collective um dos mais estranhos e inclassificáveis álbuns dos últimos anos. É experimental e radical e a gente espera isto de uma jovem adolescente que faz música encerrada no seu quarto – Kim Gordon tem 70 anos.

[ouça o álbum “The Collective” na íntegra através do Spotify:]

De onde é que isto vem? A maior parte das pessoas desiste, a dada altura, de encontrar novos sons; às vezes os filhos ajudam: o meu garoto mostra-me regularmente rappers e bandas de indie rock que eu não sei onde ele as encontra, visto às vezes ainda nem sequer terem um disco cá fora; talvez a filha de Gordon lhe tenha mostrado beats trap; talvez ela procure mais que a maior dos restantes seres humanos. Mas em janeiro, quando BYE BYE, o primeiro single do disco, foi lançado – o raio da canção estava em todo o lado e a sua explosão deveu-se (oh, ironia) à rede social dos putos, o TikTok.

Ninguém faz ideia de porque é que os putos se interessam por esta ou aquela canção – mas para alguém mais velho, é óbvio o apelo de BYE BYE: o single caminha na exata linha entre ruído, dissonância e aquele tipo de beat pesado mas irrepreensível que nos faz abanar os ombros. Há muita coisa a acontecer em BYE BYE: o primeiro som parece ser o de um ataque a notas agudas de um acorde dissonante de guitarra; em fundo está o beat e depois seguem-se duas secções de noise perfeitamente controladas. A voz de Gordon, que sempre foi mais falada do que cantada, presta-se bem a este tipo de beats e a estes tempos, dominados por derivados do rap; há uma barreira de noise de guitarra e o beat sobe de tom, e (perdoem a repetição) o tom é sempre ameaçador, banda sonora de um filme de terror rodado em telemóvel. Quem diria que esta violência sónica faria furor no TikTok?

Três faixas à frente e I’m a Man abre com uma torrente de eletricidade vinda das guitarras, o beat em fundo para e arranca e a voz de Gordon assume contornos assustadores enquanto ela debita a letra, que é uma brutalidade:

“It’s not my fault I was born a man
Come on, sweet
Take my hand
Jump on my back
‘Cause I’m the man
(…)
Dropped out of college, don’t have a degree
And I can’t get a date

It’s not my fault!
(…)
Don’t call me toxic
Just ’cause I like you, but
It’s not my fault I was born a man”

[o vídeo de “I’m a Man”:]

O tom muda mais à frente, quando Gordon canta (fala, rapa, o que quer que este tipo de entrega vocal seja): “I’d like to shave my beard (…) / Manicure my nails / Put on a skirt / But at the end of the day / I lost my way”; depois da introdução mordaz, há aqui uma espécie de empatia – como se os homens não se permitissem ser o que são ou fazerem o que querem porque têm de obedecer às regras de comportamento estabelecidas pelos machos-alpha; no fim o tom muda de novo e Gordon dirige-se de novo a este homem genérico: “It’s not my fault, spoiled man”, repete ela.

Gordon nunca foi exatamente o tipo de mulher empenhada em desempenhar o papel estereotipado de mulher – na realidade, foi o oposto. Pelo que esta nova faceta acaba por ser completamente natural nela; ao fim e ao cabo, por mais experimentais que os Sonic Youth tenham sido, Gordon sempre se mostrou igualmente interessada na cultura mainstream (fosse Madonna ou Karen Carpenter). O que explica que tenha escolhido como produtor Justin Raisen, conhecido por trabalhar com Sky Ferreira e Charli XCX, duas estrelas que têm um certo apreço por música esquisita.

"The Collective" olha para os dias de hoje, para a nossa imersão nas redes sociais, para a solidão de cada um de nós, imersos nas nossas bolhas, polarizados e barricados de um lado a invetivar o outro lado, e enche esse olhar de ruído, como que a simbolizar a nossa confusão mental.

Isto, no entanto, está muito para lá do que Sky e Charlie fizeram: Psychadelic Orgasm só seria a banda sonora de um orgasmo se quem tivesse o orgasmo fosse um tear industrial; The Believers abre com um som que – imagino – seja aproximado do produzido por aquelas empresas que compactam carros enquanto vidro e ferro estilhaçam; e mesmo os momentos em que se aplicam táticas pop (como o uso do AutoTune), o resultado nunca é propriamente pop (o mais próximo disso será I Don’t Miss My Mind).

The Collective olha para os dias de hoje, para a nossa imersão nas redes sociais, para a solidão de cada um de nós, imersos nas nossas bolhas, polarizados e barricados de um lado a invetivar o outro lado, e enche esse olhar de ruído, como que a simbolizar a nossa confusão mental. Que um dos mais agudos retratos da vida contemporânea venha de uma mulher de 70 anos e que os putos gostem disto, então isso significa que, apesar de tudo, ainda estamos a fazer alguma coisa bem.

Correção: Kim Gordon foi casada com Thurston Moore e não com Lee Ranaldo (ambos músicos dos Sonic Youth), como surgiu inicialmente neste texto

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