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Os dias do "muslim ban", contados pelos advogados

A proibição de entrada nos EUA a cidadãos de 7 países, agora suspensa, lançou o caos nos aeroportos. Dois advogados estiveram no local a ajudar e contam como se viveram esses dias intensos.

Levanta-se cedo, com tudo preparado de véspera. Casa limpa, comida pronta, roupa a jeito. É melhor sair mais cedo para evitar o trânsito, nunca se sabe. Aquele nervoso miudinho que até arrepia. Já passou muito tempo, mas está quase. Nunca mais. Mas está quase. Vá, só mais um bocadinho. No painel diz que o avião já aterrou. Nada. As malas devem estar atrasadas. Mais meia hora. Nada. Senta-se um bocado à espera. Nada. Pergunta aos funcionários do aeroporto. Nada. Ninguém passa pela porta, não há notícias. Será que aconteceu alguma coisa?

O cenário parece exagero de preocupação, mas não é. Aconteceu mesmo. Sábado, dia 28 de janeiro. Dezenas de famílias à espera dos seus, algumas sem os ver há anos, aguardavam a conclusão de um longo processo que levaria à reconciliação de pessoas há muito separadas, algumas vindas dos países mais perigosos do mundo, como a Síria e o Iraque. Outras esperavam normalmente, como o fazem vezes sem conta, para uma boleia de conveniência a quem está de regresso a casa. Mas nada de notícias, nem de uns nem de outros.

“Cheguei ao Aeroporto de São Francisco eram umas 12h30 de sábado e só havia dois ou três advogados no local. Já havia várias pessoas perturbadas porque tinham chegado ao aeroporto naquela manhã para esperar pelos seus familiares, mas eles não tinham saído, apesar de ser claro que os seus voos tinham aterrado”, conta Shannon Raj.

Shannon é advogada e está habituada a lidar com os chamados crimes de colarinho branco, como fraudes com investimentos, ficando do lado da defesa dos acusados. Mas a semana tinha sido de alguma agitação face às ameaças de Donald Trump de poder vir a impor a tão publicitada promessa eleitoral de proibir a entrada de muçulmanos oriundos de certos países do mundo nos Estados Unidos. A legalidade da medida sempre foi duvidosa. A moralidade da mesma era ainda mais questionável e Shannon, que até trabalhou para o Tribunal Internacional de Justiça criado para julgar os responsáveis pelo genocídio no Ruanda, decidiu inscrever-se numa lista de advogados disponíveis para ajudar, caso Trump avançasse com a medida.

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Ninguém esperava que fosse tão cedo, confessa Shannon Raj, numa conversa por telefone com o Observador.

Na sexta-feira à noite, dia 27 de janeiro, Donald Trump aprovou a sua quinta ordem executiva, sete dias depois de ter feito o juramento e assumido o cargo de 45.º Presidente dos EUA. A ordem, com o nome ‘Proteger a Nação da Entrada de Terroristas Estrangeiros nos Estados Unidos’, tinha como objetivo, nas palavras de Trump, “criar novas medidas para impedir os terroristas radicais islâmicos de entrarem nos EUA”.

“Não os queremos cá. Queremos garantir que não admitimos no nosso país as mesmas ameaças que os nossos soldados estão a combater no estrangeiro”, disse o Presidente dos EUA depois de assinar a ordem. Uma ordem que acabaria depois suspensa por um juiz, com apelo de Trump e finalmente confirmada pelo Tribunal de Recurso de São Francisco, para irritação de Donald Trump.

Donald Trump assinou a ordem executiva em Arlington, no estado de Virginia, onde está localizado o cemitério do Exército norte-americano

Getty Images

A ordem não impedia diretamente a entrada de muçulmanos no país, mas proibia, temporariamente, a entrada de cidadãos de outros sete países em solo norte-americano – Iraque, Irão, Síria, Iémen, Sudão, Líbia e Somália -, todos eles de maioria muçulmana, abrindo a porta a exceções em caso de minorias religiosas. A mesma ordem suspendia a entrada de refugiados sírios por tempo indeterminado e por 120 dias todos os refugiados.

A decisão foi tomada de forma discreta, ao ponto de o New York Times noticiar que o secretário para a Homeland Security – que coordena as agências responsáveis pela implementação da ordem – ter ficado a saber da ordem num briefing durante um telefonema, ao mesmo tempo que Donald Trump a apresentava em direto nas televisões norte-americanas.

As orientações dadas aos serviços iam mais longe que o determinado na própria ordem e gerou-se o caos.

De um lado, milhares de pessoas a chegarem aos aeroportos norte-americanos e a serem detidas para interrogatório: pessoas com vistos válidos, que passaram por longos processos para os conseguirem; algumas até com green cards, autorizações legais de residência permanentes e no caminho para a nacionalização. Do outro lado as famílias sem notícias, nem qualquer informação dos seus familiares, se estavam bem, se tinham comido, o que lhes iria acontecer…

“Através das famílias soubemos que pelo menos uma mulher iraniana, detentora de um green card, foi sujeita a um interrogatório e foi-lhe exigido que ficasse à espera durante várias horas antes de a deixarem entrar no país… apesar de ser detentora de um green card”, explicou Shannon. “Um outro jovem iraniano, com cerca de 30 anos, que vinha para os Estados Unidos para pedir asilo ficou detido por mais de um dia” no aeroporto, acrescenta.

Manifestação no aeroporto de Los Angeles, uma cena que se repetiu em todo o país

EUGENE GARCIA/EPA

Omar Vargas, advogado especialista em imigração foi para o aeroporto de Houston, no Texas, para dar o seu contributo. Habituado a dar apoio a imigrantes oriundos da América Central e da Europa, o cenário que viu foi muito diferente.

“Havia famílias muçulmanas de origens muito diferentes. Houve quem fosse questionado sobre as suas viagens, outros foram expulsos antes de os conseguirmos ver”, explicou o advogado ao Observador.

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No dia 3 de fevereiro, um tribunal de Washington aceitou uma providência cautelar que na prática proíbe o governo federal de aplicar partes da ordem executiva.

A providência cautelar não permite ao governo impedir a entrada no país de imigrantes e cidadãos com dupla nacionalidade oriundos do Iraque, Síria, Irão, Iémen, Líbia, Somália e Sudão por 90 dias, assim como o impedimento previsto para os refugiados sírios.

A suspensão da ordem foi confirmada quinta-feira, dia 9, pelo Tribunal de Recurso de São Francisco.

Donald Trump reagiu ameaçando continuar a guerra nos tribunais.

Os casos multiplicaram-se pelo país e a confusão instalou-se nos aeroportos, mas não só. Na própria administração norte-americana nem todos pareciam saber o que se passava. Numa entrevista à NBC, o chefe-de-gabinete de Donald Trump, Reince Priebus, um dos homens fortes do Presidente, dizia no domingo de manhã que a ordem não afetava os detentores de green cards, para logo de seguida se contradizer e afirmar que estes seriam sujeitos a um controlo mais apertado caso viajassem para estes países.

Foi o próprio secretário para a Segurança Interna, John Kelly, que emitiu um comunicado para esclarecer que quem tivesse autorização de residência podia entrar no país.

Dentro do aeroporto, as pessoas desesperavam. Os detidos não tinham os direitos dos restantes cidadãos. Sem poder avisar as famílias do que se passava, nem falar com um advogado, esperavam horas para saber se iriam poder entrar ou se seriam deportados, como aconteceu com muitos.

“Quando passavam pela alfândega eram encostados para o lado, colocados numa sala, onde os agentes de imigração investigavam onde é que tinham estado. Se tivessem um telefone, e estivesse a funcionar, então talvez tivessem de aceder. Podiam investigar a bagagem, as mãos e outras partes do corpo para saber se tinham estado em contacto com algum material relacionado com armas ou qualquer tipo de munições. Até lhes foi perguntado sobre o que achavam da América e de Donald Trump ser Presidente”
Omar Vargas, advogado

À espera, do outro lado da porta, estavam as famílias, sem saber o que os aguardava. Nos aeroportos, advogados que se ofereceram para ajudar, trabalhavam no chão e nos cafés, e começavam a chegar muitos com o único objetivo de protestar contra a política de Trump e que deram cor a tantas fotografias que foram sendo publicadas e imagens entretanto transmitidas pelas televisões.

Em São Francisco, “muitas das famílias eram do Irão e não lhes foi dada qualquer informação sobre o paradeiro dos seus familiares ou de quando os poderiam ver”, explica Shannon Raj.

Vistos são válidos

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Nesta altura, e até ordem em contrário, nenhum aeroporto pode impedir a entrada de pessoas provenientes de sete países de maioria muçulmana que tenham em sua posse vistos válidos e que estariam em condições de entrar no país caso a ordem não existisse. Os vistos que foram cancelados por causa desta ordem são novamente válidos.

“Em alguns casos, as famílias estavam muito preocupadas que os seus familiares fossem deportados sem poderem consultar um advogado ou sem poderem sequer ver quem os esperava do outro lado da porta”, disse ainda.

No aeroporto, o grupo de advogados começou a crescer, com a chegada de organizações como a American Civil Liberties Union (ACLU) e a Iranian American Bar Association, mas também de mais advogados que decidiram aparecer e oferecer os seus serviços gratuitamente.

No aeroporto de Los Angeles, faz-se tantas vezes a festa

O maior problema, explicou Shannon Raj, era precisamente passar pelas autoridades, que não permitiam que os advogados pudessem estar com os detidos, o que limitou a ação dos advogados e a informação de que dispunham, além de informações básicas como a idade, a nacionalidade e o estado civil.

“A maior parte da informação que conseguimos reunir foi através das pessoas que estavam no terminal, perturbados e à espera de informação sobre os seus familiares”, disse. “Ajudámos a recolher nomes, histórias e a recolher tanta informação quanto possível e fizemos a ponte entre essas famílias e a imprensa.”

Muito do que se passava dentro de portas continuou um segredo para os advogados. Shannon Raj adiantou que havia rumores de que também teriam sido detidas famílias do Afeganistão, um país que, apesar de ainda ter a presença de militares norte-americanos no seu território, não faz parte da lista de limitações de Trump, mas a escassez de informação não permitiu confirmar muitas destas histórias.

Os manifestantes foram chegando, conta a advogada, com cartazes e cânticos contra o muslim ban, juntamente com políticos locais para discursar em comícios improvisados.

“Foi uma demonstração poderosa e apaixonante”, diz a advogada, adiantando que, no final do dia, quando se soube da decisão de uma juíza de suspender parte da ordem executiva, sobre a proibição de deportação destas pessoas, os advogados ficaram “moralizados”.

“Em alguns casos, as famílias estavam muito preocupadas que os seus familiares fossem deportados sem poderem consultar um advogado ou sem poderem sequer ver os seus familiares que os esperavam do outro lado da porta”
Shannon Raj, advogada

A decisão foi tomada na sequência de um processo interposto pela ACLU em nome de dois iraquianos, mas que deu entrada como representando todas as pessoas que estavam presas nos aeroportos. A juíza considerou que deportar estes dois homens causar-lhes-ia danos irreparáveis e por isso decidiu suspender a ordem. Em alguns aeroportos foram mesmo necessárias ordens individuais para permitir que os detidos pudessem consultar advogados.

O objetivo, segundo a ordem executiva as palavras do próprio Donald Trump, era proteger o país de potenciais terroristas, mas a decisão foi questionada, não só pela sua eficácia nesse domínio, mas também pelos países escolhidos, já que nenhum dos terroristas que provocaram mortos em solo americano eram deles oriundos. Aliás, os países de onde vinham muitos deles – os que não eram norte-americanos – não foram alvo de tal ordem, entre eles o Paquistão, a Arábia Saudita, o Líbano ou os Emirados Árabes Unidos.

De onde são os refugiados nos EUA?

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Dos sete países de maioria muçulmana, quatro estão entre os dez países de origem de onde chegaram mais refugiados aos Estados Unidos no ano passado: Síria, Iraque, Somália e Irão estão as dez nacionalidades. Mas o país origem de onde chegaram mais refugiados à América até foi a República Democrática do Congo.

Dos quase 97 mil refugiados que entraram nos EUA no ano passado, a maior parte foi realojada nos Estados do Texas e da Califórnia, com sensivelmente o mesmo número de pessoas. Nova Iorque foi o terceiro Estado que mais refugiados recebeu.

Outra das questões colocadas foi a forma como foi feito o interrogatório dos detidos. Em alguns relatos, uma das perguntas que terão sido feitas insistentemente em várias cidades era mesmo o que pensavam de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos.

“Quando passavam pela alfândega eram encostados para o lado, colocados numa sala, onde os agentes de imigração investigavam onde é que tinham estado. Se tivessem um telefone, e estivesse a funcionar, então talvez tivessem de aceder. Podiam investigar a bagagem, esfregar as mãos e outras partes do corpo para saber se tinham estado em contacto com algum material relacionado com armas ou qualquer tipo de munições. Até lhes foi perguntado sobre o que achavam da América e de Donald Trump ser Presidente”, conta Omar Vargas.

Shannon Raj também adianta que ouviu relatos de quem tivesse sido questionado sobre a sua opinião acerca de Trump e a América antes de os deixarem entrar no país.

“Estamos todos preocupados porque Donald Trump está a assinar ordens executivas do dia para a noite. Não sei o que vai acontecer amanhã ou no dia a seguir…”, desabafa Omar.
Omar Vargas, advogado

A decisão da suspensão parcial tomada pela juíza foi só o início de uma luta pública entre a administração Trump e os tribunais. A Casa Branca ainda tentou argumentar que se tratava de uma decisão semelhante à da administração Obama em 2011, mas na altura essa norma só atrasou os procedimentos para a entrada de iraquianos no país até se conseguirem investigar todas as impressões digitais encontradas em explosivos improvisados no Iraque — depois de se terem descoberto que duas impressões digitais encontradas em explosivos pertenciam a dois iraquianos que tinham sido admitidos nos EUA como refugiados e que viviam no Kentucky.

Entretanto, a luta continua nos tribunais e… no Twitter. Trump tentou recuperar a proibição, mas um tribunal na Califórnia rejeitou o recurso. O Presidente dos EUA decidiu atacar, pela segunda vez, o juiz que tomou a decisão, acusando-o de estar a colocar em perigo a segurança do país. “Se algo acontecer, culpem-no a ele“, escreveu.

As primeiras duas semanas da Presidência de Donald Trump ficam já na história como um período tumultuoso e que deixa muita gente de pé atrás com o que pode vir a seguir. “Estamos todos preocupados, porque Donald Trump está a assinar ordens executivas do dia para a noite. Não sei o que vai acontecer amanhã ou no dia a seguir…”, desabafa Omar Vargas.

A decisão foi suspensa. Trump interpôs recurso. O tribunal manteve a suspensão. Trump promete tribunais.

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