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Os pais que assistem ao parto (ou não)

Tito diz que ver nascer um filho não é o mesmo que ouvir dizer que ele nasceu. Paulo queria ter a experiência mas foi enganado na maternidade e ficou à porta. Afinal, o que se passa para lá da lei?

Em Novembro de 2010, a opinião pública, os tablóides e até os jornais de referência britânicos caíram em cima de John Barnes, histórico 10 do Liverpool e o primeiro negro-herói em Anfield Road, nos anos quentes do racismo nos estádios do país. Motivo: John Barnes não assistiu ao nascimento do filho. E fê-lo deliberadamente, porque não quis — ou porque já tinha compromissos assumidos: comentar, no estúdio da Sky Sports, o Liverpool-Chelsea daquele domingo.

Quando Alexander, o sétimo filho do antigo futebolista, de origem jamaicana, nasceu, o jogo ainda estava na primeira parte. O apresentador do programa, depois de anunciar a boa nova à nação, perguntou ao pai se queria pôr-se a caminho do hospital. “Não, obrigado, fico até ao fim”, foi o que ouviu como resposta. O rótulo de péssimo pai e pior marido colou-se-lhe de imediato. E o Liverpool ganhou, por dois a zero.

Em 2017, em Portugal, a norma já começa a ser a da presença do pai nas salas de parto ou blocos operatórios, mas a realidade ainda estará longe de alcançar a britânica — em 2012, por exemplo, 86% dos bebés nascidos no Reino Unido conheceram os pais ao mesmo tempo que as mães.

“O pai não tem de estar presente. O pai deve é ter a liberdade para escolher o papel que quer ter. Estamos numa era em que o pai é muito ativo na questão do parto e há uma expectativa muito grande em relação a isso: o pai tem de estar presente, tem de assistir ao momento expulsivo, tem de cortar o cordão umbilical… O trabalho de parto e o parto são momentos muito dolorosos também para o pai."
Tito Miguel Basto, pai

Como não existem dados estatísticos sobre o assunto, é impossível saber quantos dos 87.577 nascimentos registados em 2016 em Portugal (dados do Programa Nacional de Diagnóstico Precoce, coordenado pelo Instituto Ricardo Jorge) ocorreram nas mesmas circunstâncias. O facto de o escândalo que a ausência de John Barnes ao lado da mulher provocou em Inglaterra poder causar alguma estranheza aos portugueses será prova de que (ainda) não estamos ao mesmo nível — as leis que o permitem no nosso país são aliás bem mais recentes, de 1985 a que estabeleceu o “direito da grávida ao acompanhante no parto” e de 2016 a que estendeu a medida aos nascimentos via cesariana.

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Ainda assim, garante Tito Miguel Basto, de 33 anos, já vamos a mais de meio do caminho. E nem será necessário chegar tão longe, defende o pai e gestor de um centro de preparação para o nascimento: “O pai não tem de estar presente. O pai deve é ter a liberdade para escolher o papel que quer ter. Estamos numa era em que o pai é muito ativo na questão do parto e há uma expectativa muito grande em relação a isso: o pai tem de estar presente, tem de assistir ao momento expulsivo, tem de cortar o cordão umbilical… O trabalho de parto e o parto são momentos muito dolorosos também para o pai. O trabalho físico é da mãe, mas o emocional é da mãe e do pai. Deve haver flexibilidade de todos os lados e os pais devem ter um papel ativo nas decisões que tomam.”

Há 10 anos, quando o Centro Pré e Pós Parto começou a funcionar, em Lisboa, um dos grandes objetivos de Tito Miguel Basto e dos sócios foi criar um espaço para os pais (no masculino). Arrojados, decidiram que todas as aulas de preparação para o parto seriam para pais e mães — e não apenas uns quantos módulos, como então faziam os outros centros do género a operar no mercado. “Houve quem nos tivesse dito que éramos loucos, que os pais se iam virar contra nós, que eles não queriam ir aos cursos… Para nós, deixá-los de fora é que seria ridículo. Em 95% dos casos, os pais acompanham as mães — e já passaram pelo centro uns 10 mil casais. Não só não é um frete virem às aulas e aos workshops, como muitos até vêm sozinhos, quando as mulheres são internadas por algum motivo. Tiram notas para depois lhes mostrarem. A maior parte deles quer assistir ao parto”, conta o gestor e facilitador de parentalidade consciente ao Observador.

"Já não voltei a poder ver a minha esposa, acabei por não me poder despedir dela, antes da cirurgia. Por mínima que fosse a hipótese, não posso deixar de pensar que podia ter sido a última vez que a via com vida — e não pude dar-lhe sequer um beijo."
Paulo Almeida, pai

Paulo Almeida também queria. Por isso mesmo, assim que soube que a filha ia ter de nascer por cesariana, na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, tratou de fazer, com a mulher, Alexandra, um plano de parto para uma cesariana humanizada. Três dias antes do nascimento de Íris, em maio de 2015, entregaram-no à médica que os acompanhava, que por sua vez lhes disse que ia fazer chegar o documento a Ana Campos, diretora do Serviço de Medicina Materno-Fetal e atual diretora clínica adjunta da instituição. “Disse-nos que era vontade de ambas que se começasse a deixar entrar os pais no bloco operatório, nas cesarianas de baixo risco. Ficámos com algumas expectativas, claro.”

Entregaram o plano (onde, entre outras coisas, pediam que o pai estivesse presente logo desde a administração da anestesia) numa sexta-feira. Na segunda feira seguinte, de manhã, o engenheiro informático, de 38 anos, e a advogada e conselheira de aleitamento materno, de 42, deram entrada na maternidade, convictos que daí a uma hora estariam, juntos, com a filha nos braços.

Não acharam estranho quando a auxiliar que os acompanhou até ao bloco operatório lhes disse que iam ter de entrar por portas diferentes: Alexandra foi pela sua, Paulo seguiu caminho atrás da funcionária. Chegado à “porta dos pais”, recebeu a notícia: afinal não ia poder entrar porque não havia nenhum cacifo disponível e a maternidade não podia responsabilizar-se pelos seus bens pessoais. Revoltado, ainda disse que não queria saber do cacifo nem das coisas, mas mesmo assim ficou do lado errado da porta: “A cirurgiã-obstetra disse-me que não podia entrar porque, apesar de ela até estar de acordo com a minha presença, a diretora não tinha afinal dado a autorização necessária”. Do lado de lá, Alexandra ficou a saber que estava por sua conta minutos depois, enquanto recebia a anestesia por via epidural — “Pouco depois de ter de pedir para baixar o volume do rádio, que difundia anúncios publicitários e informação de trânsito”, detalha Paulo.

Paulo achava que ia assistir ao nascimento de Íris. Diz que foi enganado e deixado à porta do bloco operatório

Íris nasceu às 9h45. Como engoliu algum líquido amniótico durante o processo, foi levada de urgência para os cuidados intermédios. O pai, que tivera aulas de preparação, lera uma série de livros sobre gravidez, parto e cuidados perinatais e tencionava estar presente no bloco operatório, para ajudar a mãe e garantir que o plano que tinham traçado para o nascimento era cumprido à risca, acompanhou a viagem da filha, ao colo de uma enfermeira, até à incubadora onde foi entubada. Alexandra só voltaria a vê-la por volta das 15h00.

“Éramos pais que queriam ter uma experiência diferente: tínhamos um plano de parto, que construímos a partir dos conhecimentos que temos (e consideramos acima da média), sobre os procedimentos de uma cesariana, da gravidez e do aleitamento materno. O resultado foi que já não voltei a poder ver a minha esposa, acabei por não me poder despedir dela, antes da cirurgia. Por mínima que fosse a hipótese, não posso deixar de pensar que podia ter sido a última vez que a via com vida — e não pude dar-lhe sequer um beijo”, acusa Paulo Almeida.

“Após a cesariana, disseram-me que tinham sido os enfermeiros a colocar entraves, só me deixavam estar presente com autorização do chefe. Mais tarde, através da responsável da consulta de alto risco, soube que afinal a autorização não tinha sido dado à equipa pela atual diretora clínica adjunta”, revela. Contactada pelo Observador, Ana Campos não se mostrou disponível para comentar o caso.

Ao contrário de Tito Miguel Basto, o engenheiro informático diz que tem a impressão de que a maioria dos pais não está ainda tão interessada assim nestas questões. Depois de ser “aluno”, foi convidado pela enfermeira responsável pelos cursos de preparação para o parto no Centro de Saúde de Oeiras para falar sobre a sua experiência perante grupos de futuros pais. “Falava sobre a parentalidade, sobre o projeto que tinham para a criança e para o parto. Nunca senti muita recetividade, eram 15 casais, raramente alguém falava ou fazia uma pergunta. Durante a nossa gravidez, o que mais ouvimos foram outros pais em conversas sobre mobilar o quarto, comprar o carrinho de bebé ou tratar das roupas. Nenhum pai fala sobre como quer que seja o parto ou sobre o aleitamento, as pessoas acham que aos médicos é que cabe essa parte.”

"A mãe deve poder sentir que não está sozinha naquele mundo, que há outra pessoa ali que, apesar de não estar a sentir da mesma forma, partilha tudo com ela”
Paulo Almeida, pai

Garante que nem ele nem a mulher se preocuparam muito com questões de logística e mobiliário — o berço foi montado apenas uma semana depois do nascimento da bebé. Em compensação, esquematizaram as primeiras horas de vida de Íris, que deveria ser colocada sobre a mãe logo depois da extração e a mamar logo na primeira hora de vida. O cordão umbilical também não deveria ser imediatamente cortado, os processos de pesagem, lavagem e afins deviam ser retardados em detrimento do contacto pele com pele. “O parto é um momento de muita fragilidade, para a mãe e também para o pai. Quem não está informado e não é capaz de se impor, sujeita-se àquilo que os médicos querem. Em Portugal, por norma, fazem-se uma série de coisas que de natural não têm nada, somos mamíferos. A começar pela posição do próprio parto e a acabar na questão do vérnix: há imensos estudos que dizem que ele está lá para proteger o bebé mas aqui, mal a criança nasce, vão logo a correr limpá-la. Ou os pais fazem pressão e exigem ou os médicos vão continuar a fazer como sempre fizeram e não vai mudar nada.”

Paulo Almeida queria estar no bloco para testemunhar o nascimento da filha, apoiar Alexandra e garantir que todos estes preceitos seriam cumpridos: “A mãe deve poder sentir que não está sozinha naquele mundo, que há outra pessoa ali que, apesar de não estar a sentir da mesma forma, partilha tudo com ela”. Numa sociedade que continua a medir o nível de coparentalidade através do número de fraldas que pai e mãe trocam — ainda na semana passada no horário nobre da televisão pública um cantor famoso, acabado de ser pai, teve de fazer a higiene de um Nenuco (no caso, para efeitos cómicos, mas a bitola é a mesma quando se fala a sério) —, poder-se-ia correr o risco de pensar que o engenheiro informático é o típico pai que “ajuda”.

É francamente mais do que isso: impedido de entrar na sala onde a mulher foi submetida a uma cesariana, programada, de baixo risco, teve oportunidade de provar que estava com ela a 100% minutos após a cirurgia. Com a bebé, hoje com 23 meses, internada longe da mãe, Paulo teve de transformar-se no único elo entre ambas e passou as primeiras 24 horas de vida de Íris a fazer piscinas entre a enfermaria das puérperas e a unidade de cuidados intermédios: “Temos uma posição bastante forte relativamente ao aleitamento materno, queríamos que a Íris fosse amamentada — ainda é. Passei horas a estimular as mamas da Xana e a espremer o colostro para uma seringa, para depois levar à minha filha. O que vale é que foi só um dia, no dia seguinte ficou a conhecer a mama da mãe”.

Um estudo conduzido em 1962 pelo médico norte-americano Robert Bradley, com uma amostra de 4 mil nascimentos, já defendia que a presença dos pais na sala de partos ajuda as grávidas a relaxar. Outro, britânico, de 1981, concluiu que os pais têm cinco vezes mais tendência a tocar nas grávidas durante o trabalho de parto do que outros acompanhantes, o que as leva a considerá-los mais úteis para o processo do que as próprias enfermeiras. E uma investigação mais recente, publicada em 2005, também no Reino Unido, vai ainda mais longe: pais que aplicam técnicas de massagem e relaxamento durante o trabalho de parto aumentam os índices de satisfação conjugal e reduzem os sintomas de depressão após o nascimento.

Por outro lado, existem outras correntes, como a defendida pelo obstetra francês Michel Odent num debate promovido pelo Colégio Real de Parteiras, no Reino Unido, em 2009: se o número de cesarianas está a aumentar dramaticamente nos países desenvolvidos, a culpa é nada menos que dos pais que fazem questão de assistir aos partos e, no processo, enervam as mães. “A oxitocina é a droga do amor que ajuda as mulheres a dar à luz e a criar laços com os seus bebés. Mas também é uma hormona tímida e não sai cá para fora quando está rodeada de pessoas e de tecnologia. É isso que temos de começar a entender.”

João Dias percebeu isso da pior maneira (mas sem culpa) no dia do nascimento de Gonçalo, há apenas nove meses e meio. Quando decidiram ser pais, João, fisioterapeuta de formação a trabalhar como personal trainer num ginásio, e Andreia, fisioterapeuta também, ambos de 29 anos, estabeleceram que iam ser figuras igualmente presentes na vida do bebé. Logo a começar no nascimento: “Claro que a mãe tem o papel principal, mas o pai é essencial pela estabilidade que pode proporcionar-lhe durante a gravidez, o parto e o pós-parto. Ainda há muita gente que pensa que a mãe aguenta tudo — e aguenta — mas alguém tem de olhar por ela também”.

Gonçalo nasceu ao fim de quase 24 horas de trabalho do parto e com passagem por dois hospitais

Ambos formados na área da saúde, projetaram o parto e fizeram uma prospeção de mercado para perceber em que hospital era mais provável terem acesso às condições que pretendiam. “Na maior parte das vezes as coisas são feitas de forma indiferenciada, é tudo corrido da mesma maneira e não se têm em conta as necessidades de cada bebé e de cada mãe — nesse aspeto os médicos falham um bocado.”

Com morada na zona do Montijo, visitaram dois hospitais, ambos com o selo atribuído pela Unicef de “Amigos dos Bebés” — Garcia de Orta, em Almada, e São Bernardo, em Setúbal. Optaram pelo primeiro: iam ter o acompanhamento de uma doula durante o trabalho de parto (natural e sem anestesia) e em Almada foi onde lhes transmitiram maior à-vontade para a admissão simultânea do pai, parte do núcleo familiar, e da doula, prestadora de auxílio profissional — a legislação só garante um “acompanhante significativo” por grávida.

No dia do nascimento, porém, quando chegaram ao hospital, já Andreia estava num estado de dilatação avançado, foram surpreendidos: ou entrava o pai ou entrava a acompanhante, os dois impossível. Resultado: a oxitocina não fluiu e o trabalho de parto parou, pelo que o casal decidiu assinar os papéis da alta e sair do hospital, contra todas as indicações médicas, rumo a um quarto de hotel nas redondezas. “O que queríamos é que eu estivesse lado a lado com a Andreia, o pai é o pai, é em mim que ela se apoia mais e melhor.”

“Todas as outras espécies nascem de forma o mais natural possível e têm liberdade para estarem juntos nesse momento. Já nós, somos privados de escolha, não podemos decidir o que queremos. Consigo compreender que há muita logística e questões burocráticas, mas gostava de sentir as equipas médicas e de enfermagem do nosso lado e não é isso que acontece. Estão mais preocupados em proteger a própria pele do que com qualquer outra coisa. Não vi o Gonçalo nascer, mas quando formos à menina vou estar lá, nem que vire o hospital do avesso.”
João Dias, pai

Tiveram, além do acompanhamento da doula, o auxílio de duas enfermeiras, que fizeram a vigilância do bebé. Só depois de as águas rebentarem, no hotel, ao fim de quase 24 horas de trabalho de parto, é que se dirigiram novamente ao hospital — “fomos para Setúbal, não nos sentíamos confortáveis para voltar a Almada. Quando chegámos o Gonçalo já estava mesmo quase a nascer. Optámos por não lutar mais e decidimos que se só podia entrar uma pessoa, então entrava a doula, que podia ser mais útil à Andreia”.

Eram cerca de 23h00 quando o bebé nasceu, de parto normal, já João tinha sido recambiado para uma sala de espera a vários pisos de distância: “Regras do serviço”. Com o mesmo argumento, foi informado de que, tendo em conta o avançado da hora, só poderia ver o filho no dia seguinte de manhã. Foi aí que Andreia, menos de meia hora depois do parto, pediu o livro de reclamações e o pai foi rapidamente admitido no serviço.

“Tudo o que é história e essência do parto diz que as mulheres se sentem mais seguras com uma figura feminina. A Organização Mundial de Saúde anda há 30 anos a dizer isto. O que se pretende com esta petição é que o pai seja considerado parte da tríade familiar e que a mulher deixe de ter de escolher entre o pai do bebé ou uma pessoa que a ajuda. Não é justo a lei restringir a possibilidade de a mulher ter quem deseja junto a ela.”
Sandra Oliveira, doula

“Todas as outras espécies nascem de forma o mais natural possível e têm liberdade para estarem juntos nesse momento. Já nós somos privados de escolha, não podemos decidir o que queremos. Consigo compreender que há muita logística e questões burocráticas, mas gostava de sentir as equipas médicas e de enfermagem do nosso lado e não é isso que acontece. Estão mais preocupados em proteger a própria pele do que com qualquer outra coisa. Não vi o Gonçalo nascer, mas quando formos à menina vou estar lá, nem que vire o hospital do avesso”.

“Pai é pai! Pai não é acompanhante!” Assim sendo, deve sempre poder estar presente durante o nascimento dos filhos, abrindo literalmente a porta, de acordo com a legislação de 1985, a um acompanhante extra na sala de partos, que pode ser uma mãe, uma amiga, uma irmã, uma doula. É este o pressuposto da petição pública neste momento a decorrer — que já alcançou o mínimo de assinaturas necessárias para os seus criadores serem ouvidos perante a comissão de saúde da Assembleia da República. “Até já passou o prazo, portanto estamos à espera que nos chamem a qualquer momento”, diz Sandra Oliveira, doula e autora do texto.

“Tudo o que é história e essência do parto diz que as mulheres se sentem mais seguras com uma figura feminina. A Organização Mundial de Saúde anda há 30 anos a dizer isto. O que se pretende com esta petição é que o pai seja considerado parte da tríade familiar e que a mulher deixe de ter de escolher entre o pai do bebé ou uma pessoa que a ajuda. Não é justo a lei restringir a possibilidade de a mulher ter quem deseja junto a ela”, defende a doula.

“Infelizmente as pessoas ainda pensam que isto é o mundo das mulheres, quando isto é cada vez mais um mundo dos homens — e ainda bem que assim é. Se queremos diminuir o mau trato, temos de envolver os pais no cuidado à criança."
Ana Lúcia Torgal, enfermeira parteira

Sandra Oliveira acredita que as restrições impostas em ambiente hospitalar às grávidas, que por sua vez afetam um processo naturalmente hormonal e fisiológico, estarão na origem do aumento do número de partos intervencionados em Portugal — segundo dados do INE, em 2015, de um total de 83.957 partos registados, só 40.864 foram eutócicos (normais, sem intervenção instrumental). “Em Portugal vende-se o lado asséptico da coisa, diz-se que é mais seguro. Nós, que defendemos o parto natural somos primitivas, isto é só uma moda, uma coisa muito fora do contexto moderno… Não é, não faz sentido, nos países desenvolvidos as coisas não funcionam assim. Em Portugal muitas mulheres ainda estão a ser deitadas, postas a soro, com uma veia canalizada. O nascimento, uma das coisas mais naturais do mundo, está sujeito a uma série de regras e de barreiras. Estou cansada. Há mais de 12 anos que se fala nisto a nível mediático mas as mudanças continuam a ser muito ténues.”

Se há assunto sobre o qual a doula acredita que já não há discussão, tão inculcada está a mudança, é exatamente no da presença do pai no momento do parto. “Socialmente está assumidíssimo que o pai tem de estar presente. Tenho um pai que tem quatro filhos e não quis assistir ao nascimento de nenhum deles e posso dizer-lhe que não é apenas um bom pai, é muito mais do que isso, é pai e mãe! Acho que estar lá no momento do parto ou nas aulas de preparação não tem nada a ver com o resto, não é isso que faz um bom pai”, diz peremptória.

Ana Lúcia Torgal, enfermeira parteira co-responsável pelo texto da petição que levou ao despacho legal que permite a presença dos pais nos partos por cesariana, discorda em absoluto: “Infelizmente as pessoas ainda pensam que isto é o mundo das mulheres, quando isto é cada vez mais um mundo dos homens — e ainda bem que assim é. Se queremos diminuir o mau trato, temos de envolver os pais no cuidado à criança. E esse envolvimento faz-se a partir do momento em que os pais também frequentam os cursos, assistem ao parto e tratam dos filhos logo nos primeiros tempos. Se excluirmos os homens destes momentos, que são cruciais, estamos a dizer que isto não é para eles”.

O plano de parto que Paulo e Alexandra entregaram, três dias antes do nascimento, não foi tido em conta pelos médicos

Apesar de as portas dos blocos operatórios estarem agora abertas por lei aos pais que desejem acompanhar as cesarianas programadas e de baixo risco, a enfermeira denuncia: alguns hospitais públicos do país, com condições físicas para acolherem esses acompanhantes, continuam a negar esse direito aos pais. “Só posso concluir que isso é decidido pelo profissional que está de serviço no momento. Mas não posso provar, claro.” Sobre casos como o de Paulo Almeida, em que grávida e pai são enganados pelas equipas médicas, Ana Lúcia Torgal não tem dúvidas: “Enquadram-se na violência obstétrica”. Como Íris nasceu antes de o despacho ser aprovado, Paulo e Alexandra não puderam fazer grande coisa (pelo menos em causa própria, já que até partilharam o que lhes aconteceu no parlamento). Mas os pais que passem por situações idênticas no futuro podem, se bem que apenas a posteriori, explica: “O despacho diz que quando houver alguma justificação clínica que impeça os pais de estarem presentes isso deve ser escrito no processo clínico. Os pais podem pedir o levantamento dos respetivos processos e, caso não esteja nada registado, avançar com reclamações formais para o hospital e para o Ministério da Saúde“.

"Verifiquei que os pais que acompanharam as consultas, frequentaram aulas de preparação para o parto, leram sobre o assunto, assistiram ao parto, trataram dos filhos depois de nascerem e cortaram o cordão umbilical tinham uma ligação emocional mais forte.”
João Nogueira, enfermeiro e investigador

Vários estudos internacionais atestam que o envolvimento dos pais durante a gravidez e no momento do parto propiciam as ligações emocionais futuras com os bebés. E portugueses também: em 2012, João Nogueira, enfermeiro especialista em Saúde Materna, Obstetrícia e Ginecologia, publicou as conclusões de uma investigação feita com 222 pais no Hospital de São Teotónio em Viseu, onde trabalha, na sala de partos, há 12 anos. “O meu objeto de estudo foi a ligação afetiva entre pais e bebés, quer no envolvimento no trabalho de parto, quer durante a gravidez. Verifiquei que os pais que acompanharam as consultas, frequentaram aulas de preparação para o parto, leram sobre o assunto, assistiram ao parto, trataram dos filhos depois de nascerem e cortaram o cordão umbilical tinham uma ligação emocional mais forte”, explica ao Observador.

Para os próprios bebés, acredita Ana Lúcia Torgal, que descreve a forma como muitos, após o nascimento via cesariana, deixam imediatamente de chorar assim que lhes ouvem as vozes, a presença dos pais no parto também será uma mais-valia. “Não se faz investigações com fetos nem com recém-nascidos, porque não é ético, mas estes pequenos sinais dão a entender que também para os bebés será benéfico que os pais acompanhem os partos.”

No caso dos nascimentos por cesariana, a presença dos pais acaba por ser mais importante do que nos partos normais, assumem os especialistas. No bloco operatório, mais do que apoio moral ou psicológico, os pais podem ser mais frequentemente chamados a intervir. A mãe tem os braços presos, o que não dá jeito nenhum para fazer o contacto pele a pele e estimular a amamentação? O pai pode segurar nele. A mãe não está em condições sequer de fazer o contacto pele a pele? O pai trata disso. “Já começámos a fazer com o pai, na enfermaria, quando não é possível fazer com a mãe. Traz benefícios para a vinculação e para o sistema imunitário do bebé, para além de fazer com que ele se acalme e adapte melhor termicamente à vida cá fora”, diz o enfermeiro João Nogueira.

“Lembro-me das primeiras vezes que vi partos, ainda como estudante, no Santa Maria; aquilo faz um bocado de impressão…”
João Videira Amaral, pediatra

Mesmo assim, a comunidade médica portuguesa não é unânime sobre o assunto. João Videira Amaral, pediatra, ex-diretor da Clínica Universitária de Pediatria no Hospital Dona Estefânia, discorda em absoluto de que os pais sejam autorizados nos blocos cirúrgicos ou nos partos com fórceps. “Até porque há casos de pais que desmaiam, é uma situação caricata que não vai beneficiar em nada o efeito da vinculação com os filhos”, fundamenta.

No que toca ao resto, o pediatra, 78 anos, 4 filhos e 11 netos (“Não assisti ao nascimento de nenhum deles”), diz que cada situação deve ser analisada individualmente. “Com toda a franqueza, acho que o pai poder estar é presente é realmente importante, mas também acho que o assunto tem sido muito empolado nos últimos anos. Entrou-se num exagero e isso pode até ser prejudicial porque a presença do pai pode perturbar o ambiente, que deve ser de equilíbrio — sobretudo para o médico. A mãe, obviamente, tem de estar sempre presente, o pai pode estar ou não. Pode considerar-se um direito, mas cada situação deve ser avaliada.”

Diz que assistiu, ao longo de décadas de prática clínica, a grandes evoluções no âmbito da medicina materna e infantil — “Aconteceu pouco a pouco, sobretudo a partir da Revolução de Abril, com a implementação do conceito de humanização. Houve muitos pediatras que estiveram lá e trouxeram inovação”.

Há 20 ou 30 anos, recorda, as crianças internadas nos hospitais, por exemplo, não tinham direito a ter o acompanhamento das mães ou dos pais — hoje um direito inquestionável. Por outro lado, o médico também garante que há coisas que não mudam. E o nascimento é uma delas: “Lembro-me das primeiras vezes que vi partos, ainda como estudante, no [Hospital de] Santa Maria; aquilo faz um bocado de impressão…”

“O primeiro contacto com um bebé após o nascimento é mágico. É um sentimento que não é de êxtase, não é de excitação, não é só alegria… Constatei tudo por mim,a primeira imagem que tenho do meu filho e a nossa primeira troca de olhares estarão para sempre presentes. É muito diferente ver um filho nascer e ouvir dizer que o nosso filho nasceu"
Tito Miguel Basto

Não é realmente fácil, admitem todos os pais entrevistados para este artigo. Ainda assim, dizem, vale a pena: “A geração dos nossos pais foi a da conquista da liberdade; os pais eram dados ao trabalho, a afetividade era para as mães. Acho que a minha geração está a tornar-se a geração dos afetos. Os pais têm um papel cada vez mais importante na vida dos filhos. O Gonçalo não é só filho da Andreia, é meu e da Andreia, se ela tem de passar pelas dores do parto, eu tenho de dividir essas dores com ela”, explica João Dias.

Tito Miguel Basto assina por baixo. O facto de ter termo de comparação só pode valorizar a opinião — assistiu ao nascimento de Tomás, de 4 anos, mas não esteve ao lado da mulher durante o parto de Tiago, de apenas um (como por lei a grávida só tem direito à presença de um “acompanhante significativo”, deu a vez à doula que acompanhava Tatiana).

“O primeiro contacto com um bebé após o nascimento é mágico. É um sentimento que não é de êxtase, não é de excitação, não é só alegria… Constatei tudo por mim, a primeira imagem que tenho do meu filho e a nossa primeira troca de olhares estarão para sempre presentes. É muito diferente ver um filho nascer e ouvir dizer que o nosso filho nasceu. Confesso que me fez alguma confusão, foi um processo que tive de resolver comigo mesmo e que ainda demorou um ou dois meses. Mas que nunca colocou em causa o meu sentimento em relação ao meu bebé mais bebé.”

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