O primeiro dia de 2024 deverá trazer mudanças nos pagamentos digitais, que vão afetar as pessoas que têm contas bancárias mas não têm cartões associados (porque não querem pagar anuidades ou porque não precisam deles). Pagamentos de serviços, compras online, pagamentos ao Estado, entre outros, podem deixar de ser feitos de forma digital se a conta não tiver um cartão associado.

A mudança foi anunciada pela SIBS, dona da rede Multibanco e do MBWay, como algo que decorria de uma obrigação do Banco de Portugal. Mas a polémica intensificou-se quando o mesmo Banco de Portugal decidiu fazer uma nota de esclarecimento público em que recusa responsabilidades. Saiba como as mudanças – caso sigam mesmo em frente – podem afetá-lo e compreenda a polémica entre a SIBS e o Banco de Portugal.

O que vai mudar a 1 de janeiro de 2014?

Nos últimos dias vários bancos têm contactado alguns clientes, através de e-mail ou carta, indicando que a partir do início do ano vai deixar de ser possível fazer pagamentos digitais sem que a conta utilizada tenha um cartão bancário associado.

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Ou seja, se costuma usar, por exemplo, o homebanking ou a app do seu banco para fazer pagamentos de compras e serviços, como carregamentos de telemóveis ou pagamentos ao Estado, só vai conseguir continuar a fazê-lo se tiver na carteira um cartão dessa conta. Isto aplica-se tanto a clientes particulares como empresas.

Tenho uma conta sem cartão. Vou precisar de pedir (e pagar) um?

Se já tiver cartão bancário associado à sua conta, que é o mais frequente, não precisa de fazer nada – não deverá sentir qualquer diferença na forma como costuma fazer estas operações. Mas se costuma fazer este tipo de pagamentos digitais em contas sem cartão associado, aí vai ser afetado pela mudança que foi anunciada.

Na prática, se se mantiver a intenção manifestada pela SIBS (através dos bancos), vai passar a ter de ser gerado um cartão para através dele serem canalizadas as operações que, atualmente, são feitas sem qualquer cartão bancário envolvido.

O que foi comunicado aos clientes é que teria de haver um cartão, sendo que os cartões físicos normalmente implicam o pagamento de anuidades que rondam, regra geral, os 20 euros). As primeiras notícias sobre o tema não falavam em alternativas aos cartões físicos mas a SIBS veio esclarecer que não é necessário haver um cartão físico – pode ser apenas um cartão virtual emitido eletronicamente pelo banco. Porém, nem todos os bancos oferecem já essa opção (nem é claro se todos o fazem gratuitamente).

Isto vai afetar muita gente? Quantas contas sem cartão é que existem?

A SIBS falou em “algumas situações muito pontuais poderá ser necessária a associação de um novo cartão, real ou virtual, dependendo da oferta do prestador de serviços de pagamento ou instituição financeira”. Segundo disse fonte oficial da SIBS ao Jornal Económico, serão menos de 1% dos 23 milhões de contas bancárias que há em Portugal, garante a empresa liderada por Madalena Cascais Tomé – ou seja, perto de 230 mil contas (no máximo).

Mas há quem considera que estes números estão subavaliados, tendo em conta que há cerca de 1,5 milhões de Pequenas e Médias Empresas (PME) que, naturalmente, têm contas bancárias mas muitas, embora façam pagamentos digitais, não têm necessidade de ter um cartão associado porque não movimentam dinheiro através de pagamentos nos vulgares terminais PoS nem utilizam caixas ATM.

Outros casos serão os de estrangeiros que têm contas em Portugal mas não precisam de cartão porque usam contas de outros países e cartões emitidos por outras entidades internacionais, alheias à rede Multibanco (exclusiva de Portugal). E, ainda, emigrantes que estão no exterior e mantêm contas bancárias em Portugal, para ir fazendo alguns pagamentos, mas não precisam de ter um cartão.

Tenho uma conta sem cartão e não faço pagamentos digitais. Mas tenho débitos diretos – vou ser afetado?

Não. Pela informação recolhida pelo Observador, nada muda nos débitos diretos. Estes são considerados transferências e não pagamentos digitais, pelo que estão fora do âmbito das alterações que estão a ser preparadas.

Porque é que surgiu esta alteração?

A SIBS alega que esta é uma mudança relacionada com o esforço que a empresa está a fazer para garantir a “conformidade com a evolução da regulamentação Europeia e em cumprimento de Determinação Específica do Banco de Portugal em 2022 à SIBS”.

Eis o que está em causa, em termos simples: em 2015 surgiu uma nova regulamentação europeia na área dos pagamentos que foi transposta em Portugal em 2018 e no ano seguinte, em 2019, passou a ser mais ativamente monitorizada pelo Banco de Portugal. Foi ao abrigo dessa regulamentação que o Banco de Portugal pediu à SIBS que as operações de pagamento digital passassem a ter as mesmas “taxas de intercâmbio” que as operações baseadas em cartões (passando a ter as limitações às comissões que podem ser cobradas).

Com base nisso, a SIBS decidiu agora que, então, todas as contas usadas para fazer pagamentos digitais devem ter um cartão associado. E fez chegar esse aviso aos clientes, através dos bancos.

Porque é que o Banco de Portugal veio desmentir a SIBS?

Foi um sinal claro de que existe muita tensão na relação entre o Banco de Portugal e a SIBS, supervisor e supervisionado. Aliás, sabe o Observador, tinha havido uma reunião no início da semana passada, entre as duas entidades, em que esta questão foi abordada.

Poucas horas depois de a SIBS alegar que a mudança surgia para dar cumprimento a uma ordem do Banco de Portugal, o supervisor achou necessário fazer um esclarecimento público em sentido contrário: “a exigência de detenção de um cartão para a realização de operações de pagamentos de serviços, pagamentos ao Estado e carregamentos de telemóveis no homebanking das instituições não resulta de qualquer imposição direta do Banco de Portugal, nem da aplicação de regulamentação europeia ou nacional”.

“A SIBS FPS e os prestadores de serviços de pagamento tomaram a decisão, que é da sua exclusiva responsabilidade, de passar a exigir a detenção de um cartão para continuar a realizar essas operações no homebanking”, acrescentou o Banco de Portugal, garantindo que as instruções que deu à SIBS não eram “prescritivas quanto à forma como a SIBS FPS deveria conformar as operações de pagamento disponibilizadas na rede Multibanco com a legislação aplicável, deixando ao critério daquela entidade a melhor forma de o fazer”.

Mas o que diz, afinal, a regulamentação?

A regulamentação em causa é o “Regulamento (UE) 2015/751 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo às taxas de intercâmbio aplicáveis a operações de pagamento baseadas em cartões”. Está disponível nesta ligação, no site do Banco de Portugal.

O artigo 2.º estabelece, no número 7, que uma “operação de pagamento baseada num cartão” é “um serviço baseado na infraestrutura e nas regras comerciais de um sistema de pagamento com cartões para efetuar operações de pagamento por meio de cartões, dispositivos ou programas de telecomunicações, digitais ou informáticos, que dá origem a uma operação com cartões de débito ou de crédito”.

A interpretação do Banco de Portugal, que terá sido comunicada à SIBS, é que a legislação não obriga a que haja um cartão bancário envolvido mas admite outras soluções técnicas como a emissão de cartões virtuais ou outras.

No comunicado do Banco de Portugal, está dito que na “determinação específica” aplicada à SIBS (em 2022), “de entre os requisitos cujo incumprimento importava corrigir, não se incluía a obrigatoriedade de detenção de um cartão na realização de operações de pagamentos de serviços, pagamentos ao Estado e carregamentos de telemóveis no homebanking das instituições”.

Mas esse foi o entendimento da SIBS, que disse à imprensa que “apenas cumpre as determinações do regulador”.

Porque é que a Deco veio falar em abuso por parte da SIBS?

A Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (Deco) interveio na polémica dizendo que a decisão da SIBS era “abusiva” e não tinha enquadramento legal. O jurista Vinay Pranjivan, da Deco, disse à TSF que a SIBS não pode mude as regras unilateralmente, numa iniciativa que seria depois “multiplicada pelos diferentes bancos”.

“Como veio a ser comprovado pelo comunicado do Banco de Portugal (…), [a SIBS] não tem justificação para esta exigência”, disse o jurista. A DECO disse-se “totalmente contra porque não faz de todo sentido que seja agora obrigatório ter de ter um cartão de débito ou de crédito para efetuar pagamentos quando de facto não há nenhuma obrigação nesse sentido, em termos regulatórios, na exigência do supervisor”.

Recomendando aos clientes que reclamem contra esta situação, Vinay Pranjivan admitiu que, até chegarmos a 1 de janeiro, ainda poderá haver “alguma correção” desta iniciativa por parte da SIBS.

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