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De Faro a Melgaço são 561 quilómetros. Essa linha reta, que a Norte começa na foz do Rio Trancoso e a Sul termina no Cabo de Santa Maria, liga as duas extremidades de Portugal e marca a distância máxima do país. A fronteira da Polónia com a Bielorrúsia é quase a mesma: ao longo de 407 quilómetros, os dois países estão colados e isso explica muito do nervosismo que se vive em Varsóvia. A Rússia enviou ogivas nucleares para Minsk e o Presidente da Bielorrússia garante que parte delas já chegaram ao país, esperando novos reforços até ao final do ano. Seja por despeito político, seja por cautela estratégica, a Polónia quer estar à altura do vizinho com quem tem uma relação complicada e pede à NATO o que parece ser impossível: ogivas nucleares no seu território.
A 11 e 12 de julho, na próxima semana, a Aliança Atlântica reúne-se em Vilnius, capital da Lituânia. Se depender da Polónia, o assunto vai estar em cima da mesa. Não será uma discussão fácil e o país do Leste Europeu já teve de ouvir “não” a este pedido em momentos anteriores.
Os especialistas ouvidos pelo Observador — o major-general Arnaut Moreira e o diretor do departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma, Luís Tomé — não acreditam que o assunto vá ser objeto de discussão alargada na cimeira ou de algum tipo de comunicação posterior. Além disso, poderia abrir um precedente perigoso. “Se houvesse armas nucleares na Polónia, os Países Bálticos iam, com certeza, reivindicar o mesmo para o seu território por se sentirem ameaçados pela Rússia, com a agravante de serem antigas repúblicas soviéticas”, diz Luís Tomé.
Varsóvia insiste na ideia de ter armas nucleares
Não é a primeira vez que a Polónia pede armas nucleares ao abrigo do programa de partilha nuclear da Aliança Atlântica, mas nenhuma das três potências nucleares da NATO — EUA, França e Reino Unido — deverão aceder ao pedido polaco. Aliás, os norte-americanos são os únicos que, até à data, partilham ogivas nucleares com outros países.
Atualmente, cinco Estados membros da NATO têm esse tipo de armas estacionadas no seu território, em seis bases diferentes. Na Bélgica, o local escolhido foi a Base Aérea de Kleine Brogel, na Alemanha encontram-se em Büchel, nos Países Baixos em Volkel e, na Turquia, há ogivas guardadas na base de Incirlik. Apenas a Itália tem o armamento dividido por duas bases, Aviano e Ghedi.
“Este pedido tem antecedentes, não surge repentinamente”, salienta Luís Tomé, professor catedrático da Universidade Autónoma de Lisboa ao Observador. “Já tinha sido feito em 2015, muito por causa da anexação russa da Crimeia, depois em 2020, e, em outubro do ano passado, de novo, através do Presidente polaco.” O motivo, esclarece o especialista em Relações Internacionais, esteve sempre relacionado com a ameaça nuclear da Rússia. “Agora volta a fazê-lo a pretexto da instalação de armas nucleares na Bielorrússia.”
Em 2015, a primeira vez que a Polónia falou do assunto, vivia-se no rescaldo da anexação da Crimeia, península ucraniana ocupada ilegalmente pela Rússia até hoje. Também no Donbass — províncias ucranianas de Donetsk e Lugansk — o conflito com os separatistas pró-russos tinha começado há um ano. Naquela altura, foi o vice-ministro polaco da Defesa, Tomasz Szatkowski, quem afirmou que estavam a ser dados “passos concretos” para entrar no programa de partilha nuclear.
O Ministério da Defesa da Polónia acabaria por clarificar a declaração, desvalorizando-a, frisando que Varsóvia não pretendia adquirir armas nucleares (partilhadas ou próprias).
Em 2022, com a guerra russo-ucraniana em curso, foi o Presidente Andrzej Duda quem voltou a lançar o tema. Desta vez, sem espaço para dúvidas ou segundas interpretações: “Há sempre a hipótese de participar no programa de partilha nuclear. Conversámos com líderes americanos sobre se os Estados Unidos consideram essa possibilidade. É uma questão em aberto”, disse o chefe de Estado polaco numa entrevista à Gazeta Polska.
Polónia e Bielorrússia: uma vizinhança complicada
A relação difícil da Polónia com a Bielorrússia e a sensação de ser um país no caminho da vontade expansionista do Presidente da Rússia, Vladimir Putin, justificam, de certa forma, a ideia de Varsóvia querer aumentar as defesas domésticas.
“Tenho uma ideia feita sobre esta situação. Trata-se de responder politicamente àquilo que se passou em Minsk. Entre a Polónia e a Bielorrússia tem vindo a desenvolver-se um clima de grande hostilidade, pelo menos retórica, sobretudo a partir do momento em que a Bielorrússia abriu as suas fronteiras para deixar passar para a Polónia um conjunto de pessoas que não chegaram à Bielorrússia por acaso”, argumenta o major-general Arnaut Moreira, contactado pelo Observador.
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O militar na reserva, professor de Geopolítica e Geoestratégia da Universidade Nova de Lisboa, fala da crise migratória de 2020-21. Nessa altura, com as relações deterioradas a Ocidente, Minsk abriu o país a milhares de imigrantes do Médio Oriente e do Norte de África, aumentou voos para essas regiões do globo, e passou informações erradas sobre como entrar no espaço europeu. Segundo testemunhos de migrantes, as autoridades bielorrussas ensinavam como e onde atravessar a fronteira para entrar na União Europeia, além de cederem ferramentas para cortar as cercas fronteiriças.
Na altura, o Presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, no poder desde 1994, ameaçou “inundar” a União Europeia com “drogas e migrantes”, enquanto Polónia, Lituânia e Letónia avançaram com a ideia de construir muros para proteger a fronteira.
“Estas pessoas chegaram à Bielorússia porque, de alguma maneira, Minsk as convenceu de que aquilo era o grande caminho para entrar na Europa. A partir desse momento, as relações entre a Polónia e a Bielorrússia azedaram muito”, recorda o major-general. Além disso, a rivalidade dos dois países vem agora ao de cima, na opinião de Arnaut Moreira — que diz não ter certeza absoluta de que Lukashenko tenha mesmo recebido armas nucleares de Moscovo.
“Esta colocação de armas nucleares na Bielorrússia criou aqui um sentimento de disputa política sobre a importância relativa de cada um destes países. A Bielorrússia sentiu-se importante porque recebeu, por parte do seu aliado, um depósito de confiança acrescido e subiu o seu nível de relacionamento político”, acrescenta o major-general que entrou na reserva com 38 anos de carreira militar. “Ao receber armas nucleares dos EUA, isso era também o reconhecimento simbólico de uma importância especial da Polónia.”
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▲ A bomba nuclear B61 pode ser lançada de aeronaves como como F-16, F-15E, F-35A (na imagem), caças Tornado e o bombardeiro B-2 Spirit
Bloomberg via Getty Images
Além da Bielorrússia, os olhos dos políticos de Varsóvia estão especialmente focados no Kremlin e naquilo que podem ser os desejos de Vladimir Putin. Isso fica claro nas declarações do primeiro-ministro polaco, no final do mês passado. “Uma vez que a Rússia pretende implantar armas nucleares táticas na Bielorrússia, pedimos novamente a toda a NATO que participe no programa de partilha nuclear”, disse Mateusz Morawiecki, a 30 de junho. “Não queremos ficar de braços cruzados enquanto Putin escala todo o tipo de ameaças.”
A posição geográfica do país de Leste, e a proximidade à Rússia, têm de fazer parte da equação. “O pretexto é sempre a ameaça russa. A Polónia sente como uma ameaça maior para si própria tudo aquilo que é uma ameaça russa sobre a Ucrânia. O argumentário da Polónia tem sido sempre: aquilo que a Rússia possa fazer em países ex-soviéticos, a começar pela Ucrânia, pode a seguir tentar fazer num país não ex-soviético, a começar pela própria Polónia”, argumenta Luís Tomé.
Por isso mesmo, defende o especialista em Relações Internacionais, a Polónia é dos países mais vocais nas críticas à Rússia: o primeiro-ministro polaco equiparou as tentativas de diálogo com Vladimir Putin a negociar com Hitler ou Estaline. Em contrapartida, é dos países que mais apoiam a Ucrânia. “Há cerca de 20 mil polacos a combater na Ucrânia, a Polónia é também dos países que tem dado mais armamento à Ucrânia, foi dos primeiros a entregar tanques Leopard e, portanto, o pedido de armamento nuclear faz sentido nesse quadro”, conclui Luís Tomé.
Um “sim” dos Estados Unidos podia levar a Rússia a escalar na ameaça nuclear
No mesmo dia em que o primeiro-ministro polaco falou, o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos respondeu. “Não tenho nada a dizer sobre qualquer negociação desse tipo”, disse John Kirby, numa conferência de imprensa, repetindo algo que já tinha dito no passado. Os Estados Unidos “não têm indicação alguma” de que a Rússia planeie usar armas nucleares.
No dia seguinte, 1 de julho, foi o antigo Presidente da Rússia quem reagiu às declarações de Mateusz Morawiecki. “O único perigo decorrente do pedido de envio de armas nucleares para a Polónia é que tais armas serão usadas” pelo país, disse Dmitri Medvedev, atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia.
Portanto, há vantagens de os Estados Unidos cederem ao pedido da Polónia? O major-general Arnaut Moreira não encontra nenhuma, por dois motivos principais: “A primeira razão é que os EUA dispõem de capacidade suficiente nuclear nos seus meios móveis para não terem de apostar em instalações de natureza fixa, mais vulneráveis e menos controláveis. E não pretendem dar à Federação Russa motivos para ir sempre subindo na escalada nuclear.”
O militar português explica que os meios nucleares estão, hoje em dia, assentes em plataformas de grande mobilidade, ou seja, os EUA “facilmente colocam uma arma nuclear, que esteja num bombardeiro estratégico, em poucas horas em qualquer sítio do mundo”. Para isso, não precisam de as ter implantadas num determinado país, o que, pela natureza das armas, implica proteção, armazenamento especial e manutenção. “A despesa com armamento, com a manutenção, é uma despesa brutal. Estar a disseminar armas é estar a aumentar a despesa e a manutenção de todo este sistema”, argumenta Arnaut Moreira.
Polónia podia usar armas nucleares sozinha, como diz Medvedev?
A hipótese, avançada por Dmitri Medvedev, de que a Polónia poderia usar sozinha as armas nucleares contra a Rússia não faz sentido, da mesma forma que também não existe o perigo de os países que guardam ogivas norte-americanas decidirem usá-las sem autorização.
“Não acredito que seja um risco. A Polónia não iria tomar a iniciativa de roubar armas e utilizá-las. Mas não tenho qualquer dúvida de que se o país recebesse armas nucleares, a retórica da Bielorrússia e da Rússia, sobretudo, iria escalar drasticamente”, defende Luís Tomé.
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Além de ser pouco provável que Varsóvia optasse por esse caminho, há toda uma rede de segurança em redor das B61 — bombas termonucleares com uma potência de 340 quilotons (a de Hiroshima tinha 15 quilotons) — cujo modelo foi originalmente desenhado no Laboratório Nacional de Los Alamos em 1961.
As ogivas são guardadas em cofres subterrâneos WS3 (Weapons Storage and Security System), que têm sistemas eletrónicos de controle, e são ativadas por códigos PAL (Permissive Action Link), disponíveis apenas ao pessoal norte-americano. Estes códigos são usados para evitar a detonação não autorizada e usam a regra de dois homens (com o objetivo de impedir lançamentos acidentais).
Toda esta informação é avançada pelo Centro de Controle e Não Proliferação de Armas (CACNP), que estima que entre 100 a 150 bombas nucleares norte-americanas estejam espalhadas pelos cinco países europeus com os quais foram partilhadas. A B61 pode ser lançada de caças F-16, F-15E, F-35A, caças Tornado e o bombardeiro B-2 Spirit.
“A Polónia, ou qualquer país que receba as armas dos Estados Unidos, não tem capacidade absolutamente nenhuma de as poder utilizar em proveito próprio, nem sequer de iniciar o armamento e o acionamento desses meios. Isto está completamente fora de causa. Aliás, a grande maioria dos países aderiu ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e, portanto, declarou que não pretende constituir-se como Estado nuclear”, explica Arnaut Moreira.
O tratado vigora desde 1970 e foi assinado por 189 países, em momentos diferentes da história. A China e a França, por exemplo, só o ratificaram em 1992. O Brasil só em 1998. A Coreia do Norte, que era signatária, retirou-se em 2003. Desde 2007, apenas Índia, Israel e Paquistão se recusam a assinar o acordo.
Quando surgiu, o tratado servia para limitar o armamento dos cinco Estados que se reconheciam como potências nucleares — Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França e China (os cinco membros permanente do Conselho de Segurança da ONU com poder de veto) — que ficavam também obrigados a não partilhar informação sobre como obter armas nucleares, nem cedê-las, aos países que não tinham a tecnologia.
Estes, por seu lado, concordavam em não desenvolver armas não nucleares, podendo investigar esta energia para fins pacíficos, desde que sob o olhar atento da Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA).
Com o programa de partilha da NATO, os países que aceitaram ser não nucleares não têm controle sobre as armas. “Teoricamente não”, explica Luís Tomé. “A decisão cabe sempre ao país detentor e, no quadro deste programa da NATO, a decisão é tomada pelo grupo de planeamento de armas nucleares. Se for necessário utilizá-las, essa decisão cabe a esse grupo e precisa da dupla decisão do Presidente dos Estados Unidos e do primeiro-ministro britânico.”
O país onde estão armazenadas as armas nucleares pode participar nas discussões, mas não é o decisor último, justamente porque o armamento não é seu.
Pedir armas ao abrigo da NATO é uma forma de fugir ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear?
Para muitos críticos do programa de partilha da NATO, explica Luís Tomé, o receio é de que o país que tem as armas nucleares no seu território possa, de uma forma ou de outra, acabar por condicionar e influenciar a decisão do verdadeiro detentor das ogivas. “Este programa é muito contestado porque é visto como uma forma enviesada de estar a violar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear”, explica o professor catedrático. No entanto, detalha Luís Tomé, não é verdadeiramente uma infração, já que estes países não têm armas nucleares. “Têm, no seu território, armas nucleares que outros legalmente possuem, como os Estados Unidos.”
Outro problema mais evidente, na perspetiva do especialista em Relações Internacionais, seria a violação do Ato de Fundação da NATO-Rússia de 1997. Aprovado depois da Guerra Fria, a Aliança Atlântica declarava não ter planos para colocar armas nucleares nos território de membros que viessem a juntar-se à NATO depois dessa data. A Polónia aderiu em 1999.
O programa de partilha nuclear, a crescer desde 2009, permitiu instalar armas nucleares na Bélgica, na Alemanha, na Itália, nos Países Baixos e na Turquia. “Os polacos invocam esse precedente. A questão é que esses outros países, que têm em seu território cerca de 150 armas nucleares americanas, são todos membros da Aliança Atlântica desde antes de 1997”, recorda Luís Tomé. “Se houver uma cedência de armas à Polónia é uma violação desse compromisso, que estipulava precisamente que a Nato não tinha qualquer intenção, razão ou plano para instalar armas nucleares estratégicas ou táticas em territórios dos Estados-membros que viessem a aderir à Aliança Atlântica depois disso.”
Além disso, seria o precedente para os Países Bálticos pedirem o mesmo.
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▲ Exercício militar da NATO, em 2023, no Mar Negro
AFP via Getty Images
A violação de compromissos da NATO, relembra o professor, tem feito parte da narrativa de Vladimir Putin para justificar a invasão da Ucrânia. Destacar armas para a Polónia só reforçaria os argumentos da Rússia. “Mesmo que não se dê credibilidade à narrativa de Putin, há uma parte do mundo que iria ver essa partilha nuclear com a Polónia como uma pressão dos Estados Unidos, dando razão à Rússia para se sentir ameaçada. Nesse sentido, não vejo grande vantagem de os norte-americanos darem esse passo.”
Por outro lado, Luís Tomé frisa que há uma tese de que o ataque ao Nord Stream foi feito por ucranianos a partir do território polaco e há muitos polacos a lutar ao lado de Kiev. “Há uma parte de estrategas polacos cujo objetivo é ter armas nucleares americanas no seu território. A Polónia está na linha da frente, está na fronteira com a Ucrânia, tem, de longe, o maior número de refugiados ucranianos, mas tem sido dos países que mais tem procurado arrastar a Aliança Atlântica para níveis perigosos de confrontação direta com a Rússia”, conclui.
Portanto, embora perceba o interesse polaco em ter mais um mecanismo de dissuasão, Luís Tomé diz que dar armas nucleares à Polónia seria um passo perigoso: “Permitia a escalada russa e dava munições a Putin para cultivar a narrativa de que a NATO ameaça o seu país, enquanto a Rússia se limita a defender-se.”